A
sociedade portuguesa vive sob o peso de um mito que nos tem levado a adotar
medidas que a história demonstrará não serem acertadas sendo que, nas próprias
circunstâncias, já havia elementos para concluir que o caminho não era por ali.
O peso desse mito é, porém, tão opressivo que a ousadia de alertar para a sua
influência é logo arredada, sob a suspeita de se estar perante mais um indivíduo
padecente de uma qualquer teoria da conspiração.
Mas o
mito existe e é eficaz.
Esse
mito pode definir-se como a «convicção da permanente bondade de toda a
mudança». Aliás, é frequente ouvir-se que ‘mudar é sempre bom’.
Uma
certa forma de relatar a história parece dar razão aos que defendem que esse
não é um mito, mas uma constatação a aceitar sem reticências. A força
impressiva do relato de como se foram conquistando terrenos ao inculto
território do desrespeito dos direitos humanos parece somar razões a essa
convicção.
Há,
porém, que ler com atenção a história. Nem toda a mudança foi sempre no sentido
da humanização e da realização máxima das possibilidades da humanidade. Um dos
casos mais exemplares de como o caminho nem sempre foi de conquista e de que o
‘progresso’ nem sempre significou crescimento da humanidade é o que se esconde
por detrás das decisões políticas eugénicas, nos inícios do século XX, em nome
da ciência e da aplicação das possibilidades que as descobertas da genética
colocavam na mão dos decisores políticos. Essa é uma história poucas vezes
contada, mas que importa fazer emergir à memória viva para que, antes das
mudanças, se tenha a coragem de formular a pergunta sobre se crescemos como
humanos ao tomar determinada decisão.
O
eugenismo não foi, contrariamente ao que se pretende fazer crer, um exclusivo
do nazismo. A prática infame deste regime totalitário foi sendo ‘preparada’ por
todo o mundo através de um real efeito de «rampa deslizante» que começa com o
inebriamento perante as conquistas que a descoberta da seleção natural (em
meados do século XIX) proporcionava quanto ao conhecimento sobre como
funcionava a evolução das espécies até às descobertas de como manipulando a
genética se poderia melhorar determinada espécie. Perante o fascínio legítimo
que a ciência ia proporcionando, logo foram emergindo cenários de oportunidade
quanto à sua aplicação à humanidade. E o que poderia haver de melhor do que
tornar a humanidade perfeita, num momento em que, afinal, já podíamos dispor de
meios técnicos para isso? Este tinha sido o momento certo para constatar o que
a ética personalista recorda, permanentemente: a da não coincidência entre
‘poder fazer’ e a ‘legitimidade ética para o fazer’ (‘dever fazer’). Quando se
perde esta noção, tudo se torna resvaladiço.
Somou-se
a isto um outro dado. A relativização do conceito de dignidade.
É
curioso constatar, com André Pichot, no seu livro ‘o eugenismo: geneticistas
apanhados pela filantropia’, que o eugenismo quase não se manifestou, neste
período de final do século XIX até meados do século XX, em países católicos,
dado o reconhecimento de que a dignidade humana confere caráter de
inviolabilidade a todos e cada ser humano. Nos países anglo-saxónicos, de
influência liberal mais acentuada, o eugenismo ganhou terreno significativo,
como é particularmente contado por Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma:
autobiografia de uma espécie em 23 capítulos’
Como
conta este autor, no referido livro, que replico em ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’
(livro editado pela Tempo Novo), «em 1901, o Estado do Indiana, nos Estados
Unidos da América, aprovou a primeira lei de esterilização obrigatória dos
deficientes mentais, criminosos e violadores. Entre 1910 e 1935, trinta Estados
da União apresentavam, no seu quadro jurídico, leis de esterilização
obrigatória. A lei da restrição da imigração (Immigration Restriction Act) de
1924 limitava a entrada nos Estados Unidos de sujeitos provenientes do Leste ou
do Sul da Europa por serem considerados «biologicamente inferiores», enquanto
favorecia a admissão de pessoas provenientes do Norte e Oeste da Europa. Não se
confinando a este período, houve Estados que mantiveram leis e políticas de
atuação eugénica até períodos muito próximos de nós. Destaquemos o caso do
Estado da Virgínia que manteve, até à década de 70 do século XX, práticas de
esterilização compulsiva de doentes mentais, contribuindo, deste modo, para as
cerca de 100000 pessoas que terão sido esterilizadas, nos Estados Unidos da
América, invocando-se razões como as que invocara o Juiz Oliver Wendell Holmes,
no processo «Buck versus Bell», de que resultou a esterilização de Carrie, que
vivia com a respetiva progenitora e era, então, mãe de uma menina de 7 meses:
«três gerações de imbecis são suficientes». […] «A América, o bastião da
liberdade individual, esterilizou mais de 100000 pessoas por serem débeis
mentais com base em mais de 30 leis estaduais e federais aprovadas entre 1910 e
1935. Mas, embora a América fosse a pioneira, seguiram-se outros países. A
Suécia esterilizou 60000. O Canadá, a Noruega, a Finlândia, a Estónia e a
Islândia colocaram leis de esterilização coerciva nos seus livros e
utilizaram-nas.» (Cfr. Ridley, Matt – Genoma: autobiografia de uma espécie em
23 capítulos. Lisboa: Gradiva, 2001, 300).
Esta
vertigem eugenística influenciou grande parte do mundo de então, «não lhe resistindo
países como o Canadá, a Noruega, a Finlândia, a Estónia, a Islândia ou a
Suécia, para além, naturalmente, da Alemanha Nazi que, em apenas dezoito meses,
gaseou 70000 doentes psiquiátricos entretanto já esterilizados. (Cfr. estas e
outras informações em Ridley, Matt – Genoma: autobiografia de uma espécie em 23
capítulos. Lisboa: Gradiva, 2001, 300-301, e em Vidal, Marciano – Moral de
Actitudes, II-I parte: Moral de la persona y bioetica teologica. Madrid:
Editorial Perpétuo Socorro, 19918, pp.698-704).
Esta é
uma história negra que deveria fazer-nos pensar. Mudar nem sempre é bom!
Particularmente quando a mudança belisca a intocabilidade da dignidade humana.
Também a
forma como os Estados ocidentais adotaram, de 1973 para cá, leis pró-abortistas
é outra narrativa que a História demonstrará ser uma réplica do que já
ocorrera, no início do século XX com as leis eugénicas. Mas a memória é curta.
O mito
de que quem se opõe ou obriga a pensar perante estas mudanças é ‘Velho do
Restelo’ entrou profundamente na mentalidade portuguesa, mas deveria ser
articulado com um outro mito: o de Cassandra. Cassandra é uma figura da
mitologia clássica que padece de uma maldição. Tem a capacidade de antecipar o
futuro, mas está amaldiçoada com o impedimento de que os outros acreditem nela.
Quando alerta os troianos para os perigos do Cavalo de Troia que os gregos lhes
colocaram junto às muralhas, as suas palavras soam vãs e são rejeitadas pelos
seus concidadãos que fazem com que os gregos entrem dentro da sua fortaleza
através da armadilha por eles próprios montada. Quando os troianos dão conta de
que Cassandra dizia verdade, já é tarde e os gregos tomam conta da cidade.
Não
defendo a imutabilidade e o imobilismo, mas a abordagem crítica de todas as
possibilidades, sem censuras nem preconceitos (os mais recorrentes, hoje,
socorrem-se de epítetos como os de ‘conservadores’, ‘ultraconservadores’ ou
outros termos de igual pendor) em particular porque toda a decisão e ação
implica uma leitura ética. E, contrariamente ao que costuma pensar-se, nada há
de mais progressista do que a ética, pois, perante uma possibilidade imediata de
solução, a ética interroga sobre se, no futuro, essa opção se constituiu como
uma resposta positiva ou se mais negativa do que a solução que pretendia ser,
no momento imediato.
Veja-se o
que significarão, no futuro, as aparentemente bondosas barrigas de aluguer, os
filhos da reprodução heteróloga (com gâmetas de fora do casal), a educação num
registo de ideologia de género que expressa uma falta de amor por si mesmo e
pelo outro tal como é desde a sua origem, educando para a confusão e a
indiferença, defendendo-se o absoluto da autodeterminação solipsista… veja-se o
que significará cada uma destas opções quando cada um se sentir só, isolado, e
num registo de conflitualidade progressiva. Aquilo que parecia ser bondosa
solução afigurar-se-á como promotor de novos e mais entranhados conflitos.
Nessa hora, já ninguém lembrará a voz de Cassandra, nem ali estarão já os que
defenderam a bondade das decisões avulsas tomadas outrora.
Estes
tempos exigem tempo, exigem ponderação. Decidir no meio da tempestade nunca foi
sinal de sensatez. E estamos em tempos de tempestade. Há que ter a sensatez de
não seguir rumos que se afigurem irreversíveis e sem retorno.
Mas quem
quer ouvir Cassandra?