Imagine-se a seguinte cena: alguém, no cimo de uma
encosta, sentado, de olhar fixo num belo pôr-do-sol, inebriado com as cores que
a refração da luz lhe proporciona e sentindo o calor daquele momento.
Estranhamente, porém, quanto mais o sol ‘se põe’, maior é o calor que sente
como que abrasar-lhe as costas, até que, quando o sol, em definitivo,
desaparece do horizonte, percebe que, afinal, o calor que sentia não lhe vinha
do que viam os olhos, mas de um enorme incêndio que se engrandecia, nas suas
costas. Estivera todo o tempo a olhar para o ocaso do dia sem se aperceber da
degradação que se abatia atrás de si. Não quisera ver ou, simplesmente, não lhe
fora possível aperceber-se?
Parecemos a figura desta curta parábola. Ardem-nos
as costas, degradam-se as nossas relações, mas vamos, airosamente, assistindo à
decadência, convencidos de que o calor que sentimos nos vem do sol a cujo ocaso
assistimos e não à real destruição da montanha onde deveríamos assentar morada.
De que decadência estaremos a falar?
Deveria ser evidente que, antes de sermos
indivíduos, somos pessoas. Para um olhar distraído, pode não parecer senão um
jogo de palavras, mas, de facto, a história da palavra (e da ideia de) ‘pessoa’
demonstra-nos a densidade que se esconde nela.
E é essa densidade que está a degradar-se e a queimar-nos
sem que nos apercebamos, distraídos com mil pores de sol.
Tudo o que fazemos mostra, de modo inequívoco, que
não podemos viver sem os outros, que não podemos fazer negócios sem os outros,
que não podemos aprender sem os outros, que não nos podemos reproduzir sem os
outros, que não podemos subsistir sem os outros, enfim, que só por ilusão (que
gerará desilusão!) podemos pensar-nos sem os outros.
Esta condição de intrínseca inter-relacionalidade é
o que se diz quando nos designamos como ‘pessoas’: somos um nó indestrutível de
relações. (Recordo, sempre, a afirmação de um filho de um suicida, reproduzida
num estudo de psiquiatria promovido por uma Faculdade de medicina brasileira,
que dizia que ‘quem se suicida não se mata só a si, mas a todos os seus com
ele’). Quando, pelo contrário, nos vemos como indivíduos, reduzimo-nos à
condição da unicidade, qualificando-nos pelo prisma da quantidade. Individuar é
identificar enquanto ‘um’. E o facto de se ser ‘um’ nada diz sobre a natureza
dessa realidade quantificada. Podemos, aliás, designar como ‘indivíduo’ toda a
realidade isolada, por estar de facto isolada, sem mais dizermos ao vê-la nesse
prisma. Podemos designar um cão como um ‘indivíduo da espécie canina’, um gato
como um ‘indivíduo da família dos felídeos’, ou, mesmo, individuar uma
borracha, um caderno, um computador, etc. De todos esses ‘entes’ isolados
podemos dizer que individuam a realidade de que fazem parte, são ‘indivíduos’,
‘individuações’, mas sem dizer nada sobre a sua natureza. E muito menos
poderemos designá-los, enquanto tal, por ‘pessoas’. ‘Pessoa’ diz algo que está
totalmente ausente da ideia de ‘indivíduo’. Já veremos o quê.
É, por isso, muito pouco pretendermos construir uma
sociedade que nada mais seja do que a soma de indivíduos. Deveríamos ser
‘pessoas’, nós ativos de relações, nós densos de relacionamento que se
preocupam e cuidam uns dos outros contra as adversidades da realidade
suficientemente difícil e exigente para não nos distrair desse dever de
cuidarmos uns dos outros sem nos deixarmos arrastar para a complicação de nos
tornarmos adversários uns dos outros.
Isto deveria ser uma sociedade (!), correspondendo,
aliás, à etimologia altamente simbólica da palavra ‘sociedade’ (em latim,
‘socius’ é ‘amigo’).
Mas decidimos que uns em relação aos outros não
passamos de estranhos sobre uma superfície designada ‘Terra’, ainda por cima,
com sinais de poder estar a prazo (pelo menos, assim no-lo dizem os novos
milenarismos!).
Como genialmente reconheceu Paul Valéry, ‘estamos
fechados fora de nós próprios’, porque já não há densidade humana em cada um de
nós. A condição de humanidade diz de nós que somos seres indigentes uns em
relação aos outros. Nenhum de nós é pleno, completo, e, por isso, nenhum de nós
é autossuficiente. Mas – ilusão das ilusões! – queremos convencer-nos de que
não precisamos dos outros porque nos enredámos numa ideia de liberdade que
reduzimos à busca desenfreada de satisfação do que a vontade nos pede. E, como
sabemos, a vontade é imensa, incapaz de se satisfazer e vê nas outras vontades
um limite que tem de eliminar e abater.
A liberdade não é exercício da vontade. É a marca
da racionalidade e da relacionalidade nos seres humanos. Bastaria, para isto
concluir, a verificação de que só os seres humanos (e Deus!) são detentores de
liberdade.
Mas os animais têm vontade. Isso não chega para
serem livres?
De facto, não!
Falta-lhes a racionalidade que os faz reconhecerem
a importância da relacionalidade. E é isso que os humanos possuem mas parecem
querer apagar.
Será que, em definitivo, desistimos de cuidar uns
dos outros para, simplesmente, passarmos a tolerar a existência dos outros até
que decidam deixar de existir?
Triste sociedade esta se disto se convencer! Já não
será uma sociedade de humanos, mas um roteiro de indivíduos paradoxalmente sem
rumo!