sábado, setembro 28, 2019

Cuidarmos uns dos outros? Decidimos que apenas nos toleramos!


Imagine-se a seguinte cena: alguém, no cimo de uma encosta, sentado, de olhar fixo num belo pôr-do-sol, inebriado com as cores que a refração da luz lhe proporciona e sentindo o calor daquele momento. Estranhamente, porém, quanto mais o sol ‘se põe’, maior é o calor que sente como que abrasar-lhe as costas, até que, quando o sol, em definitivo, desaparece do horizonte, percebe que, afinal, o calor que sentia não lhe vinha do que viam os olhos, mas de um enorme incêndio que se engrandecia, nas suas costas. Estivera todo o tempo a olhar para o ocaso do dia sem se aperceber da degradação que se abatia atrás de si. Não quisera ver ou, simplesmente, não lhe fora possível aperceber-se?
Parecemos a figura desta curta parábola. Ardem-nos as costas, degradam-se as nossas relações, mas vamos, airosamente, assistindo à decadência, convencidos de que o calor que sentimos nos vem do sol a cujo ocaso assistimos e não à real destruição da montanha onde deveríamos assentar morada.
De que decadência estaremos a falar?
Deveria ser evidente que, antes de sermos indivíduos, somos pessoas. Para um olhar distraído, pode não parecer senão um jogo de palavras, mas, de facto, a história da palavra (e da ideia de) ‘pessoa’ demonstra-nos a densidade que se esconde nela.
E é essa densidade que está a degradar-se e a queimar-nos sem que nos apercebamos, distraídos com mil pores de sol.
Tudo o que fazemos mostra, de modo inequívoco, que não podemos viver sem os outros, que não podemos fazer negócios sem os outros, que não podemos aprender sem os outros, que não nos podemos reproduzir sem os outros, que não podemos subsistir sem os outros, enfim, que só por ilusão (que gerará desilusão!) podemos pensar-nos sem os outros.
Esta condição de intrínseca inter-relacionalidade é o que se diz quando nos designamos como ‘pessoas’: somos um nó indestrutível de relações. (Recordo, sempre, a afirmação de um filho de um suicida, reproduzida num estudo de psiquiatria promovido por uma Faculdade de medicina brasileira, que dizia que ‘quem se suicida não se mata só a si, mas a todos os seus com ele’). Quando, pelo contrário, nos vemos como indivíduos, reduzimo-nos à condição da unicidade, qualificando-nos pelo prisma da quantidade. Individuar é identificar enquanto ‘um’. E o facto de se ser ‘um’ nada diz sobre a natureza dessa realidade quantificada. Podemos, aliás, designar como ‘indivíduo’ toda a realidade isolada, por estar de facto isolada, sem mais dizermos ao vê-la nesse prisma. Podemos designar um cão como um ‘indivíduo da espécie canina’, um gato como um ‘indivíduo da família dos felídeos’, ou, mesmo, individuar uma borracha, um caderno, um computador, etc. De todos esses ‘entes’ isolados podemos dizer que individuam a realidade de que fazem parte, são ‘indivíduos’, ‘individuações’, mas sem dizer nada sobre a sua natureza. E muito menos poderemos designá-los, enquanto tal, por ‘pessoas’. ‘Pessoa’ diz algo que está totalmente ausente da ideia de ‘indivíduo’. Já veremos o quê.
É, por isso, muito pouco pretendermos construir uma sociedade que nada mais seja do que a soma de indivíduos. Deveríamos ser ‘pessoas’, nós ativos de relações, nós densos de relacionamento que se preocupam e cuidam uns dos outros contra as adversidades da realidade suficientemente difícil e exigente para não nos distrair desse dever de cuidarmos uns dos outros sem nos deixarmos arrastar para a complicação de nos tornarmos adversários uns dos outros.
Isto deveria ser uma sociedade (!), correspondendo, aliás, à etimologia altamente simbólica da palavra ‘sociedade’ (em latim, ‘socius’ é ‘amigo’).
Mas decidimos que uns em relação aos outros não passamos de estranhos sobre uma superfície designada ‘Terra’, ainda por cima, com sinais de poder estar a prazo (pelo menos, assim no-lo dizem os novos milenarismos!).
Como genialmente reconheceu Paul Valéry, ‘estamos fechados fora de nós próprios’, porque já não há densidade humana em cada um de nós. A condição de humanidade diz de nós que somos seres indigentes uns em relação aos outros. Nenhum de nós é pleno, completo, e, por isso, nenhum de nós é autossuficiente. Mas – ilusão das ilusões! – queremos convencer-nos de que não precisamos dos outros porque nos enredámos numa ideia de liberdade que reduzimos à busca desenfreada de satisfação do que a vontade nos pede. E, como sabemos, a vontade é imensa, incapaz de se satisfazer e vê nas outras vontades um limite que tem de eliminar e abater.
A liberdade não é exercício da vontade. É a marca da racionalidade e da relacionalidade nos seres humanos. Bastaria, para isto concluir, a verificação de que só os seres humanos (e Deus!) são detentores de liberdade.
Mas os animais têm vontade. Isso não chega para serem livres?
De facto, não!
Falta-lhes a racionalidade que os faz reconhecerem a importância da relacionalidade. E é isso que os humanos possuem mas parecem querer apagar.
Será que, em definitivo, desistimos de cuidar uns dos outros para, simplesmente, passarmos a tolerar a existência dos outros até que decidam deixar de existir?
Triste sociedade esta se disto se convencer! Já não será uma sociedade de humanos, mas um roteiro de indivíduos paradoxalmente sem rumo!

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