O nosso sistema eleitoral apresenta fragilidades
significativas (para ser eufemístico!). De acordo com o sistema atualmente
vigente, o voto dos cidadãos não tem valor igual em todos os círculos
eleitorais. É, aliás, evidente que o voto de Lisboa, Porto, Braga, Setúbal ou Aveiro é
claramente mais relevante do que o voto de Portalegre, Bragança, Beja, Guarda ou Évora.
Mas, supostamente, os cidadãos destes últimos
distritos são tão portugueses como os restantes.
Com efeito, o sistema eleitoral português prevê que
se calcule, antes de eleições, qual o número de deputados a eleger por círculo,
sendo feito esse cálculo com base no número de eleitores recenseados.
Tal situação tem um motivo associado à perspetiva
de que cada deputado represente o eleitorado que o elegeu.
Se tal fosse efetivo, poderíamos aceitar esta
solução como um mal menor.
Contudo, depois do célebre caso do ‘orçamento do
queijo limiano’, em 2001 e 2002, em que um deputado eleito pelo círculo de
Viana do Castelo viabilizou o orçamento de um governo minoritário, a troco de
investimento na sua região, o que lhe valeu a expulsão do seu partido e acesa
discussão, no país, sobre a legitimidade da sua ação, ficou claro que os
círculos eleitorais não representavam qualquer valia acrescida para os
cidadãos, constituindo-se, pelo contrário, num eventual fator de injustiça (em termos de sistema eleitoral) que
deveria merecer acesa discussão por parte dos portugueses. Senão, vejamos.
O sistema eleitoral em vigor permite, entre outras
coisas, maiorias absolutas sem que se tenha uma maioria absoluta de votos.
Basta que se tenha a sorte (ou desenvolvido estratégia matemática para tal) de se ser mais votado nos círculos onde mais deputados são eleitos.
Por absurdo, pode ocorrer que tenha maioria no
parlamento um partido que seja, por exemplo, o menos votado, ainda que a
probabilidade seja baixa.
Tomemos um exemplo.
Aveiro, que apresenta, segundo mapa publicado em 1
de março de 2019, 645.212 eleitores, constitui-se como um círculo eleitoral
onde serão escolhidos 16 deputados. Bragança, que tem 142603 eleitores, elege 3
deputados.
Imaginemos, por absurdo, que o dia de eleições se
apresenta, por terras de Aveiro, tentadoramente quente e apetecível para uma
visita à praia. Imagine-se, ainda, que tal favorece uma abstenção que ronde os
80%. Vão votar, em Aveiro, nesse dia, 129 mil eleitores. Bragança, por oposição, não
bafejada pelo mar, tem chuva todo o dia e consegue ter uma participação quase
absoluta. Os votantes rondam os 130 mil.
Bragança e os seus 130 mil elegem 3 deputados,
enquanto Aveiro, com os seus 129 mil, elege 16 deputados.
Imagine-se este cenário aplicado na relação entre
os círculos mais populosos - Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Aveiro que elegem,
juntos, 141 deputados - em contraste com Portalegre, Bragança, Beja Évora e
Guarda, que elegem, em conjunto, 14 deputados.
Imagine-se que a abstenção é avassaladora, nos
primeiros cinco, e quase nula, nos últimos. A relação entre estes fatores
poderá criar um cenário em que partidos menos votados, no total, mas cujos
votos recaem sobre os cinco primeiros círculos, conseguem uma maioria
parlamentar que, afinal, não corresponde à maioria dos votos dos participantes
nas eleições.
Face a esta constatação, depreende-se, antes de
mais, que importa ter coragem para enfrentar esta questão que é de justiça e
procurar soluções. A justiça e a verdade deveriam prevalecer sobre o tacticismo
e os interesses instalados. A não ser assim, quando os cidadãos se convencerem
de que o sistema é injusto, será o próprio regime a ser questionado. Importa,
por isso, ser prudente e previdente, a fim de evitar os danos mais gravosos por
não se ter tido coragem para ir procurando soluções adequadas.
Uma das primeiras alterações a ponderar era de
pequena monta e mais não é do que uma alteração de procedimento. Em vez de se
calcular o número de deputados a eleger com base no número de eleitores
(potenciais) deveria calcular-se aquele número com base na participação real
dos votantes. Só no fim das eleições e depois de apurar a abstenção e o número
total de votantes é que se apuraria qual o número correspondente a cada
círculo, com base no número efetivo de votantes em cada um deles.
Tal teria uma consequência efetiva e muito
provável: a diminuição da abstenção, pois os cidadãos perceberiam, no imediato,
que a sua não participação afetaria a sua representação nacional. Quantos menos
votantes num círculo, menor o número de deputados na assembleia da República.
Outra consequência seria a maior valorização, em
tempo de campanha, dos círculos com menos votantes, pois importaria mobilizar
todos os eleitores pois, até ao momento das eleições, não passariam de
potenciais votantes. Seria necessária a sua mobilização para que se tornassem ‘votantes’
e não apenas potenciais ‘votantes’, como agora acontece.
Uma terceira consequência verificar-se-ia nas escolhas
dos membros das listas que deixariam de corresponder a uma estratégia de
escolha dos círculos mais expressivos para redundar num reconhecimento da igual
e justa condição de todos os círculos.
Tudo isto em resultado de uma pequena alteração que
ainda não chega à de fundo que é haver um sistema eleitoral em que não há
desperdício de votos. Tal é praticamente impossível num sistema em que a
eleição ocorre por círculos eleitorais. Só através de listas nacionais seria
possível superar este problema.
E, nesse caso, seria de ponderar uma solução. A
lista seria nacional, mas articulada com os círculos eleitorais em que, como
resultado da participação eleitoral, se tornaria obrigatório que determinado
partido repercutisse no número de deputados a compor a sua bancada uma
percentagem correspondente às votações, por cada círculo. Este modelo juntaria
o melhor de dois mundos: a certeza de que não se perderiam votos (todos eram
contados e distribuídos, a nível nacional), mas repercutindo-se, de seguida, a
votação obtida em cada círculo, por partido, na sua representação, em termos de
bancada. Para exemplificar: se um partido obtivesse votação nacional que
permitisse, por exemplo, eleger 5 deputados, eles teriam de provir dos círculos
onde a sua votação correspondesse, em termos relativos, à sua maior
representatividade.
Soma-se, a esta preocupação com a justiça eleitoral e efetiva
repercussão do desejo expresso pelos votantes, uma outra que venho defendendo, há
uns 10 anos (veja-se este artigo publicado em fevereiro de 2011: http://teologicus.blogspot.com/2011/02/tres-sugestoes-para-democratizar.html):
a relevância do voto expresso pelos que participam nas eleições,
manifestando-se não representados por qualquer dos partidos submetidos a sufrágio e que
anulam ou deixam o seu voto em branco. Defendo, desde então, que as bancadas
devem ficar vazias, até ao limite constitucional dos 180 deputados, limite
abaixo do qual se imporia a obrigação de realização de novas eleições.
É também matéria a discutir, pois deverá considerar-se muito distinta a
opção de quem se abstém (pode ter razões ou total falta delas!) em relação à de
quem participa mas anula ou deixa em branco o seu voto. É uma manifestação de
vontade e opinião que deveria repercutir-se no hemiciclo.
Este pode não ser mais do que um exercício teórico, mas que parte da
real situação em que se toma a decisão
sobre quem nos deverá governar, pelo que aos cidadãos também caberá ter uma
palavra em tão decisiva matéria.