Esta é a história de uma criança sem rosto, mas com
nome: Rodrigo. A ela associa-se o drama da impossibilidade de se preparar o
nascimento de uma criança marcada pela deficiência porque, por uma suposta
(ainda não demonstrada) negligência médica, a informação sobre a real condição
deste Rodrigo foi omitida.
Esperava eu que fosse disto que se estivesse a
falar: da preparação para o nascimento de uma criança marcada pela deficiência.
Mas a insistência noutra tecla permitiu-me
despertar do sonho em que estava.
O que se discutia não era a gravidade da
negligência que tornou impossível preparar, com cuidado, e envolvendo a família
e a sociedade, o nascimento de uma criança a quem deveria proporcionar-se o
máximo de conforto, aconchego e cuidado para que pudesse nascer com amor e, se
a tal estivesse destinada pela natureza, morrer acompanhada.
Mas despertei deste sonho.
O que se discutia era que a informação sobre o
estado da criança teria sido importante para determinar o seu fim.
Despertei de um sonho para acordar num pesadelo.
Não é esta a mesma sociedade que (muito bem!) se
mobiliza em prol da equiparação dos atletas paraolímpicos aos demais atletas,
não é a mesma que discute a inclusão da deficiência nas nossas escolas, que
inclui em governos pessoas portadoras de deficiência porque ela não deve ser
fator de discriminação?!
Mas, ao ouvido, esta mesma sociedade sussurra,
maviosamente: ‘respeitamos-te muito e dizemos que te queremos incluir, mas, se
fosse por nós, não terias nascido’!
Assusta esta vertigem eugenística, disponível, de
forma subtil e progressiva, para aceitar uma sociedade de perfeitos, de puros.
Uma sociedade como a que, entre o início do século XX e a II Guerra Mundial,
criou a cultura favorável ao que veio a acontecer, às mãos dos grandes eugenistas
da história, cujo nome nos deveria bastar para não repetir tamanhas
atrocidades.
O que deveria estar a discutir-se, para além da
obrigação da verdade da informação, era se é justa uma lei que prevê que, por
se ser malformado, se pode ser impedido de nascer. Esta é uma lei, aliás, que
gera conflitos como o que se verificou, na França, a propósito do celebérrimo caso
‘Perruche’, iniciado por ocasião do nascimento, em 1982, de uma criança da
família Perruche com malformações não detetadas durante a gravidez, a qual
pediu indemnização por ter sido impedida de ser abortada. Após muitas disputas,
avanços e recuos, em 2002, foi promulgada a Lei nº 2002-303, de 4 de março de
2002, que sustenta que não existe um direito a não nascer.
Mas é bom sublinhar que o conflito nasceu no
momento em que se permitiu que a legislação (a francesa como a portuguesa)
desblindasse a proteção da vida humana, permitindo a sua eliminação por motivo
de deficiência.
Esta deveria ser uma matéria a retomar, não para,
como pretendem alguns, alargar os prazos para além das 24 semanas atualmente
legisladas, mas para nos interrogarmos em conjunto sobre se, de facto,
pretendemos ser consequentes com o nosso princípio de que a inclusão da pessoa
portadora com deficiência é para ser efetiva e não uma hipócrita sensibilidade
momentânea. A sermos consequentes, perante a pessoa com deficiência, não
podemos considerar que a sua situação é um problema das famílias de que elas
fazem parte, mas um dever para todos nós. Quanto se concede do orçamento de
Estado para o efetivo apoio destas famílias? Quanto consagramos dos espaços de
lazer para o acolhimento destas famílias? Para quando a definição de famílias
de cuidado capazes de apoiar, em proximidade, as que integram pessoas
portadoras de deficiência? Onde estão as equipas de apoio às famílias a quem é
comunicada a notícia de que a sua criança vai (ou pode vir a) ser portadora de
uma deficiência, equipas que deveriam ajudar a acolher e a encontrar esperança
quando tudo pode parecer nebuloso? Quem garante que não se fica só perante esta
notícia, mas, pelo contrário, se é acompanhado e auxiliado a acolher a vida,
qualquer que seja a sua condição? São tantas as interrogações que deveríamos
colocar-nos para nos pormos em busca das melhores soluções para que a
deficiência fosse uma presença efetiva e acolhida na nossa sociedade!
Na
capacidade que uma sociedade tem de integrar os seus mais frágeis é que se
evidencia a sua capacidade de humanização e a sua densidade civilizacional.
De outro modo, estaremos prontos a gritar a plenos
pulmões que esta é uma sociedade não inclusiva quando, ao ouvido, sussurramos
aos ouvidos daqueles que dizemos proteger que a sua vida está a mais.
De que lado queremos estar? É que o lado da
deficiência é o lado de todos os humanos, pois, de algum modo, todos somos
imperfeitos. Nos portadores de deficiência, a nossa comum imperfeição é, porém,
mais visível, e, por isso, mais incómoda. Não nos queremos reconhecer frágeis
na sua fragilidade.