(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'
Luís Manuel Pereira da Silva*
Consideremos as etapas anteriores desta nossa reflexão como um autêntico ‘preâmbulo’. ‘Preambulare’ significa, literalmente, ‘antes de começar a andar’… Preparámo-nos para andar, para caminhar.
É hora de andar!
O preâmbulo antecipou o primeiro momento do nosso caminho. A luz, primeiro fruto do ato criador, é particularmente simbólica e significativa para o que aqui nos traz.
Diz o autor bíblico[1]:
«3*Deus disse: «Faça-se a luz.» E a luz foi feita. 4Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. 5*Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia.»
Vale a pena, antes de começar a deixar que o texto ‘fale’ connosco, reparar num detalhe intrigante. Diz o autor que ‘surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia.’ Sempre me intrigou esta sequência.
‘Uma tarde e, depois, a manhã?’
Sim, é a lógica judaica de organização do tempo. O dia começa com o pôr-do-sol. É por isso que o sábado começa na sexta-feira, com o pôr-do-sol, e, pela morte de Jesus, o seu enterramento teve de ser precipitado, porque se avizinhava o fim daquele dia e, com o pôr-do-sol, o início do Sábado da Páscoa, que ‘era um grande dia’ (Jo 19,31)
Regressemos, então, ao que este excerto nos evidencia.
Sublinhemos o simbolismo que radica neste primeiro ato criador. Deus começa a Sua ação com a ‘luz’. Bem certo que uma abordagem concordista[2] da Bíblia vislumbra neste ato a confirmação de que o início da criação se opera por uma ‘grande explosão’, como que subscrevendo a teoria primeiramente sustentada pelo Pe. Georges Lemaître e cunhada como ‘big bang’, pelos seus opositores, entre os quais se destacava, então, Fred Hoyle, defensor de um universo estacionário.
Sigo outra linha…
É simbólico que a luz seja o primeiro ‘fruto’ criado.
É que o autor bíblico tem o cuidado de registar que esta é ‘separada das trevas’ (estas não são fruto do Criador. São uma mera ‘ausência’ da luz que, essa sim, é fruto criado! Santo Agostinho explorará esta constatação para a sua reflexão sobre o mal enquanto ausência do bem. O bem, sim, é fruto de Deus. O mal, enquanto insuficiência do bem, é mera ausência e, por isso, não carece de um criador…).
Mas o autor bíblico acrescenta mais um detalhe que ganha significado quando comparamos o texto bíblico com os textos contemporâneos de então e que marcavam as cosmogonias (as teorias explicativas sobre a origem do mundo) desse tempo. O autor bíblico sublinha que ‘Deus viu que a luz era boa’. A bondade da criação é uma nota específica do texto bíblico. Contrasta, de forma flagrante e nunca sobejamente recordada, com as visões de então (e, apetece dizer, com muitas leituras ainda hoje presentes…). Na visão bíblica, o mundo não é intrinsecamente mau. O mundo, enquanto fruto da ação de Deus, é desejado como bom, é reconhecido como bom.
Mas, e que nos diz de ainda mais relevante o facto de ser a luz o primeiro ato criador?
A luz sempre foi, ao longo dos tempos, sinónimo de bem, verdade, sentido, horizonte, conhecimento.
Acrescentemos, para densificar esta última nota, que o autor bíblico refere todos os atos de criação de Deus como resultando da eficácia da Sua Palavra.
O autor afirma: ‘Deus disse: «Faça-se a luz.»’
E a luz foi feita.
Não é um demiurgo que realiza o mundo, que o concretiza. É a própria Palavra que, na sua eficácia, opera o ato.
Há uma intrínseca ligação entre ‘Palavra’ e ‘Criação’, seja, enquanto ‘ato’ (o ato de criar), seja enquanto fruto (a obra criada), o que coloca todo o mundo em estreita ligação à verdade.
Para percebermos o alcance disto, socorramo-nos do que os gregos diziam sobre a verdade.
Para os gregos, a verdade podia ser pensada em três registos: como ‘orthótês’ (‘coerência), como ‘ousia’ (como a ‘verdade da coisa em si’) e como ‘alêtheia’ (a verdade no intelecto, entendida como ‘desvelamento’, como ‘não esquecimento’).
O que importa desta brevíssima síntese?
Esta síntese permite-nos ver que a verdade, como dizia S. Tomás é, bem certo, ‘a adequação entre objeto e entendimento’ (Suma Teológica (Ia, q. 16, a. 1, sol.), em que subentendem as demais implicações de ‘verdade’, mas que a história virá a explicitar mais claramente.
A verdade deverá, sempre, naturalmente, dizer-se em relação ao sujeito que conhece, mas deverão supor-se as outras duas dimensões: a verdade da coisa em si e a verdade desta coisa em relação ao que Deus quer dela.
Parece subtil, mas desdobremos a ideia.
A verdade deve reconhecer-se ao pensamento que reflete sobre a realidade. Certamente! E tal, num contexto de uma reflexão como a que estamos a fazer (em que ciência e religião se interrogam sobre o mundo, é particularmente implicativo…). O pensamento, para ser válido, tem de ser verdadeiro e, como dizia São Tomás, adequar-se à realidade.
Mas a própria realidade é, isto é, existe como um algo concreto. O sujeito que pensa, que conhece, interroga-se sobre o mundo em si. Não sobre criações mentais sem respaldo na realidade.
Resulta daqui um desafio de ‘regressar à realidade’ (Quantas implicações para os diversos âmbitos do saber que, fechados hermeticamente em si, se vão afastando do mundo, criando ideologias…).
Mas há um outro desafio: o de a própria realidade ser de acordo com o que Deus pretende para ela.
Aplicando ao ser humano, é visível a consequência disto… Ser-se humano é corresponder à humanidade desejada por Deus. O próprio S. Tomás tem isto em conta ao falar do dever de corresponder ao ‘entendimento de Deus’.
Vincar, como afirmava o autor bíblico, que ‘Deus disse… e foi feita’ é vincar que a natureza das coisas realiza-se e fá-las verdadeiras se elas corresponderem ao que Deus quis e quer que elas sejam…
Assegurada a ‘luz’, iluminados pela ‘Verdade’, prossigamos, nas próximas etapas, os ‘dias da criação’… ‘Desvelando’, levantando o véu de trevas que sempre tenta abater-se sobre a realidade, sobre a identidade da realidade e sobre o discurso acerca da mesma realidade.
[1] Sigo a tradução de https://www.paroquias.org/biblia/
[2] O diálogo entre ciência e religião pode operar-se de muitos modos. No que respeita à leitura do que deva recolher-se da leitura bíblica, muitos são os que a interpretam procurando confirmar, na letra do texto, o que as ciências vão estabilizando como saber comummente aceite pela comunidade científica. A esta leitura que coloca em ‘concordância’ a letra da Bíblia com as teorias científicas designa-se como ‘concordismo’.
Defendo, porém, que outra deva ser a leitura. À Bíblia não devem fazer-se as perguntas a que a ciência pretende responder. Outro é o objetivo dos textos bíblicos. Como sintetizava, sabiamente, Galileu, não deveremos perguntar-nos, a partir da Bíblia, ‘como’ é o céu, mas sim como se vai ‘para’ o Céu. A Bíblia é a história de Deus com os Homens e, por isso, narra-nos o olhar de Deus sobre o sentido da História e sobre o sentido do agir humano.
*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'