quarta-feira, agosto 13, 2025

'Os Sete Dias da Criação' |3| Luís M. P. Silva: 3 – 'Continuando antes do primeiro dia… Como se construiu a ‘fake’ de que a Idade Média acreditara na planura da Terra…'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Quem nos conta a origem da ‘fake new’ sobre a ‘fé’ da Idade Média na planura da Terra, com o detalhe que não desenvolveremos aqui, é Jeffrey Burton Russell, professor da Universidade de Califórnia, no seu livro Inventing the flat Earth: Columbus and modern historians, a que chegámos pela mão de Jorge Buescu.

Importa, desde já, clarificar que, na Idade Média, houve dois autores que defenderam a ideia da Terra plana: Lactâncio (245-325; Luís Filipe Thomaz indica as datas de c. 250-317) e Cosme Indicopleustes (que viveu no tempo de Justiniano (reinou entre 527 e 565). São, porém, autores menores, sendo que Lactâncio só é descoberto pelos renascentistas pela sua retórica (nos séculos XV e XVI) e Cosme Indicopleustes só é traduzido para latim em 1706 (muito tempo, portanto, depois de qualquer possibilidade de exercer influência nos decisores desta discussão…)[1].

Então, como compreender como aqui chegámos?

Russell descreve 4 momentos, a partir de inícios do século XIX, determinantes para a criação deste mito.

Antes de os enumerar, constatemos, porém, que estamos no rescaldo da Revolução da Francesa e em pleno contexto do iluminismo, que consideravam, por um lado, a primeira, que o passado associado à Igreja era período tenebroso e que havia que centrar tudo, de acordo com o segundo, o Iluminismo, já não na fé, tomada como obscura, mas sim na Razão, entendida como a verdadeira fonte da luz… Em contraste, o passado associado ao cristianismo, o período entre o final da Idade Antiga e o início da Idade moderna, passaria a ser designado como ‘idade média’ (a que fica no ‘meio’) e considerada como ‘idade de trevas’. Edward Gibbon, na sua obra de grande fôlego, ‘Declínio e Queda do Império Romano, obra de 1788, no fulgor deste espírito iluminista, refere-se a ‘as trevas da Idade Média’[2].

Ainda hoje, esta é a visão. Não é, por isso, fortuito que os historiadores que, honestamente, olham para este período, estejam a tentar reabilitá-lo, reconhecendo-o, como diz Seb Falk, professor da Universidade de Cambridge, como ‘a verdadeira idade das luzes’. Mas um pré-conceito, lançado sobre um ‘inimigo’, demora a ser desmontado, se é que o será, algum dia!...

Ora, como chegámos, de facto, à criação de um tal mito que deturpou o que era óbvio (que os autores lidos e seguidos, na Idade Média, defendiam a esfericidade da Terra a que as decisões mais determinantes dos impérios de então tinham sido tomadas com este pressuposto), sem que se tenha contestado?

Como dizíamos, acima, esta é uma ‘tragédia’ em quatro atos.

No primeiro, há um romance da autoria de Washington Irving (1783-1859) que ficciona, no seu História da vida e Viagens de Cristóvão Colombo, publicado em 1828, todo um enredo em que Cristóvão Colombo tem de enfrentar o obscurantismo inquisitorial, convicto da planura da Terra.

Mas, neste primeiro ato, estamos perante um romance…

O assunto ganha outros contornos quando esta tese que, aqui, era literária, passa a ser defendida, em letra de artigo com pretensões científicas, pela pena de um reconhecido geógrafo e eminente cientista de então, Antoine-Jean Letronne (1787-1848). Em 1834, publica ‘Sobre as opiniões cosmográficas dos padres da Igreja’, onde branqueia (não menos obscurantisticamente do que os ‘tenebrosos medievais’!) a história verdadeira, e considera que são mais relevantes Lactâncio e Cosme Indicopleustes do que o que, de facto, são, vincando que até Colombro e Magalhães, se acreditava na planura da terra.

O terceiro ato tem em cena um outro livro, desta feita de um professor de Biologia e Química da Universidade de Nova Iorque, John Draper que, no calor da discussão sobre a relação entre ciência e religião, afirma, em ‘História do conflito entre Religião e Ciência’ (1873) que as universidade medievais negavam a esfericidade da Terra. Observa Jorge Buescu (p. 179) que esta obra teve 50 edições nos Estados Unidos, 21 no Reino Unido, tendo sido traduzida para todo o mundo. O impacto não podia deixar de se esperar e o resultado está à vista de todos. Mesmo os que não lemos esta obra continuamos, mais de 100 anos depois, a defende a mentira ali veiculada…

Falta o quarto ato…

Em 1896, Andrew DIckson White (1832-1918) retoma a mesma tese, confere a Cosme Indicopleustes méritos e reconhecimentos que não tem, definindo-o como ‘típico e influente’, e sustenta que a maioria (já vimos que é falso) dos padres da Igreja tinha a opinião contrária a Agostinho, Orígenes, Isidoro de Sevilha, Beda, o venerável, que ele reconhece que defendiam a esfericidade. A mentira não podia ser maior e obviamente contraditória, pois qualquer leitura honesta constataria que os desconhecidos Cosme Indicopleustes e Lactâncio não podem ter tido maior influência do que a de Agostinho, Orígenes ou, ainda que não citado nesta última lista, São Tomás.

White conseguiu uma influência que suplantou a de Draper, através da Universidade de Cornell que ele mesmo fundou…

Bem certo que, no contexto português, poderemos somar a esta história posterior à revolução francesa, a criação de uma ambiência defensora de um obscurantismo cristão que tem como momento de maior corolário o período pombalino e a sua campanha negra contra a Igreja, em geral, e os jesuítas, em particular.

Henrique Leitão, prémio Pessoa em 2014, em conferência proferida em Aveiro, em 2019[3], contou que o Marquês de Pombal, para poder desenvolver a sua campanha de perseguição aos Jesuítas, ordenou que fossem destruídos os inúmeros azulejos que, nas paredes da Universidade de Évora, apresentavam os diversos passos do tratado da Esfera e outros tratados astronómicos, pois não era enquadrável com a sua tese de que a Igreja era obscurantista, a existência de tais painéis, numa universidade coordenada por Jesuítas…

Estávamos na segunda metade do século XVIII:

Em inícios do século XXI, já com a experiência de desencontros que nos deveriam ter acordado para o dever de servir a verdade, sem pré-conceitos nem entrincheiramentos, continua o Marquês de Pombal a mandar picar os azulejos com que se tornaria óbvia a nossa mentira? E quem tem na mão a picareta com que se executa a sua demanda?

O nosso intuito é promover o encontro. Pousem-se, sobre a bancada, os martelos e picaretas e abramos, em conjunto, um ateliê de restauro. Os azulejos devem voltar a luzir e, com eles, a luz que não se faz, apenas, de razão iluminadora, pois qual lua, ela não é, ainda, a nascente e a fonte da luz: reflete-a, apenas. A autêntica demanda é a da verdade de que só, como lampejos, nos aproximamos, qual peregrinos…


Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, Lisboa, Bertrand Editora, 2021.

Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, Lisboa, Gradiva, 2011.

Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, Lisboa, Gradiva, 2003.

Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, Lisboa, Gradiva, 20192.

Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Tomo I (Parte 1), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2017.


[1] Cfr. Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, pp. 173-174.

[2] Cfr. Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, p. 21.

[3] Cfr. https://agencia.ecclesia.pt/portal/aveiro-ciencia-tecnologia-etica-e-cristianismo-encerram-o-ciclo-de-tertulias-a-quarta/


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

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