Esta
reflexão decorre da minha condição de cidadão português e europeu e de cristão
de matriz católica. Não vincula, por isso, qualquer das instituições a que
pertenço. Entendo, como pressuposto a esta análise, que a catolicidade tem como
traço marcante a busca de não deixar ninguém de fora: perante as tentações de
confinar a uma leitura particularista, a catolicidade define-se pela
universalidade. ‘Nada do que é humano [nos] é estranho’.
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quinta-feira, julho 11, 2019
O estranho caso do inexistente apelo ao voto
Estabelecido
este pressuposto, importa orientar a nossa atenção para o assunto que aqui
discutiremos.
Uma
imprensa que serve a verdade e não agendas obscuras
Em meados
de maio, um jornal de tiragem nacional publicava que o ‘Patriarcado partilhou
apelo ao voto no Basta’.
Quando vi a
notícia, e vendo-a no específico jornal em que tal ocorreu, fiz a pergunta que
sempre faço quando leio uma manchete: a quem serve esta notícia? [O leitor pode
aplicar o critério a este próprio artigo: sirvo a causa dos mais frágeis (desde
a conceção à morte natural) e faço-o por entender que nenhum humano vale mais
nem menos do que qualquer outro. Ninguém tem legitimidade para matar ninguém!
Ninguém! Sou, por isso, contra todo e qualquer atentado contra a vida humana!
Aborto, tortura, pena de morte, eutanásia, eugenismo, violência sobre quem é
mais frágil, etc., são faces diversas do mesmo desrespeito pela inviolabilidade
da vida humana!].
Antes de
mais desenvolvimentos, detenho-me no motivo da interrogação acima referida.
Há muito
que defendo que os meios de comunicação social deveriam fazer declaração de
interesses. Assim é, por exemplo, na imprensa que pertence às dioceses. É
conhecida de todos a sua matriz, mas, ainda assim, esta imprensa diocesana é
obrigada a explicitar o seu estatuto editorial e as suas conceções
estruturantes. O mesmo preconizo para a imprensa nacional.
Defendo,
aliás, que os grandes jornais deveriam explicitar as suas motivações e não, sob
a capa de neutralidade, veicularem agendas que um olhar atento facilmente
descortina, mas que se teima em pretender ocultar, de forma obscura, acusando,
aliás, de obscurantismo aqueles que, afinal, têm as suas matrizes mais
explícitas.
Feito este
excurso, regressemos ao ponto que justificou a interrogação.
Quando,
logo pela manhã, vi a manchete, sabendo da posição oficial da Conferência
Episcopal sobre não assumir posição partidária, mas sem se inibir de denunciar
o desrespeito por valores que considera estruturantes para a vida em sociedade,
facilmente concluí que alguém pretendia matar à nascença um assunto que se
presumia ser incómodo.
Não
precisei de muito para que tal se tornasse evidente.
A forma
como a notícia era dada, para além de ser falsa (o ‘Basta’ não era o único
partido que correspondia ao suposto ‘apelo’, sendo que os católicos não votam
num certo sentido porque se lhes diz que é neste ou naquele partido que deve
votar-se. Muitos querem continuar a cultivar essa ideia de menoridade quando o
voto da maioria dos católicos não subscreve as suas opções!), desrespeitava as
mais básicas regras do jornalismo, uma vez que não assegurara o contraditório,
pois a entidade envolvida no post (não o Patriarcado, mas sim a Federação
Portuguesa pela Vida) nunca foi interrogada nem entrevistada por quem fez a
notícia.
Porquê
tanta pressa em denunciar um post de facebook?
Porquê,
então, esta prontidão em denunciar um post de facebook?
Porque não
havia tempo a perder. Importava matar à nascença (abortar, mais uma vez!) uma
criatura que se vislumbrava ser incómoda. Os autores da manchete sabiam que o
quadro feito pela Federação Portuguesa pela Vida não era uma fake new (‘falsa notícia’)! Explicitava
o que cada partido pensava sobre as matérias que, para a referida Federação,
têm sido motivo das suas principais preocupações, desde a sua fundação. E, em
tempos como estes, clarificar ajuda o eleitorado a posicionar-se, o que vai ao
arrepio do que se pretende em tempo de campanha eleitoral (!).
Constatemos
que a mesma imprensa não se insurgiu contra a Igreja quando, supostamente,
apelou ao voto, em relação a outras matérias, o que evidencia que a intenção da
associação República e Laicidade de acusar o Patriarcado é estratégia de moreia
que sai da sua cavidade para lançar o alarme, para, de seguida, recolher ao
mesmo lugar.
Vejam-se, a
título de exemplo, algumas manchetes, anteriores à data em que rebentou o
escândalo da Igreja defender que a política não deve apoiar o aborto, a
eutanásia, a legalização da prostituição ou outras matérias do âmbito da defesa
da vida humana mais frágil.
Em 12 de
maio, ‘o Cardeal D. António Marto critica «ideologias populistas e nacionalistas
de intolerância e exclusão’. Em 2 de maio, ‘Papa alerta para «ressurgimento» de
nacionalismos que podem comprometer projeto europeu’. Em 27 de abril, ‘D. José
Cordeiro pede «políticas geradoras de emprego» para o interior do país.’ Em 21
de abril, na homilia de Domingo de Páscoa, o Bispo do Porto afirmava que ‘a
abertura dos supermercados e dos centros comerciais ao Domingo [é] expressão de
um certo subdesenvolvimento humano e mesmo económico.’
Sublinhemos,
para que não restem dúvidas. A Igreja tem direito, e, para além de tudo, dever
de denunciar quando a política não serve a dignidade da pessoa humana. Sempre!
Sem medo e sem esquizofrenia.
Uma
patologia grave da política
O que
esteve em causa, neste escândalo do suposto apelo ao voto, foi uma questão que
denuncia uma esquizofrenia na política. Os pronunciamentos da Igreja parecem
bem-vindos se não se meterem em matéria de família e defesa da vida humana. Mas
também em relação a matérias de moral social há assuntos em que não se lhe quer
permitir que se intrometa, como veremos, de seguida.
O que parece
estar em causa, de facto, é a proteção da vida humana! Sim, parece que não é
tanto a matéria de doutrina social da Igreja, pois essa pensa-se que recolhe consensos.
Valerá a pena, porém, recordar que a mesma Doutrina Social da Igreja defende o
princípio da subsidiariedade, enunciado, pela primeira vez, em 1931, e que
afirma que, quando a sociedade é capaz de, de forma justa, encontrar respostas
para problemas nela existentes, não devem ser as instâncias superiores a
supri-las, sob pena de agirem de forma injusta. É a esta luz que é justo que
haja colégios da sociedade e que o ensino público não se reduza às escolas de
iniciativa estatal ou que não deva permitir-se a criação de monopólios de
qualquer tipo (privado ou estatal) que impeçam que a sociedade continue a
procurar as melhores soluções para os problemas. Bem certo que esta página da
doutrina social da Igreja é incómoda e deve ser rasgada!
Também a
página que defende o legítimo direito à posse de bens, desde que em articulação
com o destino universal dos bens, é incómoda, quando se defende o fim da
propriedade privada ou quando, pelo contrário, se pretende defender um direito
ilimitado à posse. É um princípio incómodo para todos – direita e esquerda –
mas é assim a DSI. Não é coutada de ninguém, mas desafio para todos. Ninguém
fica excluído. É isso que importa dizer. Ninguém fica excluído, segundo a DSI:
nem os imigrantes, nem os ainda não nascidos; nem os que são marginalizados
pelos seus comportamentos, nem os que estão em situação de limite de vida; nem
os que cometeram graves crimes ou os mais inocentes de todos. Para a DSI, todos
são dignos. E é isso que torna ridícula uma certa forma de fazer política. Só
alguns parecem merecer respeito e reconhecimento. Os outros ficam ao abrigo da
arbitrariedade ou da vontade de poder.
Lições
e desafios de uma decisão
A pergunta
que muitos fizeram, perante a clareza de que não tinha havido um apelo ao voto
(apenas a replicação de um quadro que esclarecia sobre o posicionamento dos
partidos que tinham respondido ao questionário da Federação Portuguesa pela
Vida) e que, em rigor, se se tratasse de um apelo ao voto, tal não seria num só
partido, era: porquê, então, o ‘recuo’ do Patriarcado?
Num tempo
tão dado a polémicas gratuitas, o ‘recuo’ do Patriarcado extinguiu a chama que
ameaçava distrair do que era importante. Manter um post que a imprensa já tinha
obrigado a pensar que constituía um apelo ao voto num partido xenófobo era
alimentar uma discussão inútil e que desvirtuava a intenção que assistira à sua
publicação: informar.
Mas o recuo
também obriga a refletir. A estratégia adotada pelo jornal que se apressou a
dizer como devia ser interpretada a intenção do Patriarcado é suficientemente
profissional para se perceber que regressará sempre que for possível e
necessário. E essa é uma interrogação que deverá colocar-se com honestidade e
transparência, nos areópagos onde se problematizam as fake news: devemos continuar a acreditar na imprensa que critica os
que criam fake news quando ela mesma
se socorre de igual estratégia para chegar aos seus objetivos?
E deverá,
em definitivo, considerar-se que a defesa da intrínseca dignidade da vida
humana ficará confinada ao âmbito dos partidos populistas ou de extrema?
A
defesa da vida humana devia ser causa de todos
A memória
obriga a reconhecer os riscos que tal comporta. Norberto Bobbio, autor que já
recordei diversas vezes, definia-se como descrente e socialista, mas não
ocultava que lhe causava estranheza que a defesa da vida humana ficasse
entregue apenas aos crentes (e, hoje, poderia acrescentar: ‘e, entre estes, já
só alguns!’). Hoje, tal é cada vez mais inquietante: o que está em causa diz
respeito a todos; a dignidade humana, mesmo quando escondida, recôndita, é
intrínseca a cada ser humano; esteja ele onde estiver, tenha ele a idade que
tiver, esteja ele na condição em que estiver. A dignidade de cada um torna uma
ofensa a cada um um problema de todos. Não pode deixar de gerar perplexidade,
por isso, que não se reconheça o dever de proteção ao ser humano e que ele
possa ficar disponível à vontade de alguns, quando, por oposição, se chega ao
ponto de fechar um campo de futebol porque uma ave protegida decidiu iniciar a
construção do seu ninho. (Nada contra, desde que não se fosse contraditório na
abordagem jurídica. Bem sabe o legislador que é preciso proteger desde o
início, mas parece esquecê-lo quando se refere aos humanos!). Refiro-me a um
caso acontecido nos Estados Unidos (Nova Jérsia) envolvendo o borrelho-de-dupla-coleira.
O que está
em causa é a coerência. E sabemos que, quando os regimes se entregam ao
discricionário, ao arbitrário, favorecem a emergência de ditadores para quem as
leis não devem respeitar princípios comuns a todos e inatacáveis, mas
dependentes da vontade de quem tem poder. E, hoje, esse poder está em quem tem
as armas para agitar as massas, para as levar a pensar o que quer que pensem.
Como o sabe fazer uma certa imprensa em Portugal! Não é isso, afinal, o
populismo?
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