Causa-me perplexidade ver a facilidade com que nos
estamos a habituar à ideia de que nos é legítimo destruir os nossos só porque
são nossos. Uns, de facto, outros, de direito.
De facto…
É inacreditável como se vêm avolumando as notícias
de que as relações que deveriam ser de amor estão envolvidas em violência.
Porquê?
É inacreditável como abandonamos e rejeitamos os
mais frágeis de entre nós, seja na fase do berço, seja já adultos, fazendo
desta uma sociedade que se satisfaz em proclamar princípios, mas que os
contradiz, a cada instante.
Mas não deixa de ser igualmente inquietante ver como
deixámos que se tornasse legítimo destruir os nossos, no plano do direito.
De direito…
Deixámos que se instalasse, de direito, a violência
de uma mãe sobre o seu filho ainda não nascido. Deixámos, legitimando,
aplaudindo e chegando a rejeitar os que ousam retomar a inquietude que nunca
nos deveria ter abandonado.
Como podemos, depois de legitimar tal violência,
ficar surpreendidos que haja outros sinais de violência quando permitimos e
acolhemos como boa a violência naquele que é o último porto seguro da nossa
existência: o do colo da mãe?
E, agora, depois de termos legitimado tal
violência, propomo-nos dar mais um passo.
Já não nos bastava ter legitimado a violência da
mãe sobre o filho. Faltava-nos legitimar a violência do filho sobre a mãe.
O Parlamento prepara-se para a legitimar,
legalizando a eutanásia. De mansinho, bem certo. Já assim fora, em 1984 e nos
referendos de 1998 e 2007. Os mais de 185 mil abortos entretanto realizados
demonstram que a exceção se tornou banalidade.
Como, depois, poderemos ficar surpreendidos que se
agudizem os sinais da violência numa sociedade que a assume como um direito?
E muitos defendem tal direito em nome de um suposto
avanço. Como se não tivéssemos, ao longo da história, já percorrido tais
caminhos que a vitória da civilização e da humanidade sobre a incivilização e a
desumanidade tinha deixado para trás. (Não posso deixar de recordar, neste
contexto, o que já repetidas vezes fui recuperando, em alguns dos meus textos: o
Tribunal Europeu dos Direitos humanos deliberou, sem possibilidade de recurso,
em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é
um direito humano e, por isso, é legítimo que os Estados o penalizem.)
O que fazemos, agora, não é andar para diante: é
regressar a lugares onde pensávamos já não querer voltar.
Também os gregos já abandonaram os seus idosos e
abortaram e rejeitaram os seus débeis (Hipócrates, que viveu entre 460 e 370
a.C., afirmava, no seu célebre juramento: ‘não darei a nenhuma mulher uma
substância abortiva’, o que permite concluir ser uma prática então existente
que Hipócrates repudia); o mesmo se passava entre os povos do centro da Europa
que venceram os romanos ou no Oriente longínquo e em tantas e tantas tribos daqui
e dali. Mas a civilização marcadamente personalista e humanizada foi vencendo
tais práticas e realizando o ideal do respeito inviolável pela pessoa humana.
O que se está, portanto, a pretender, não é
avançar, mas retroceder. E se fosse um passo em frente seria semelhante ao de
alguém que, vestindo um especial fato domingueiro, se apercebesse de que este
ficara preso a um pequeno prego. Se der um passo adiante, tal significará abrir
um rasgão provavelmente irreparável. Constatando tal obstáculo, melhor será dar
um passo atrás que assegure que se desprendem as vestes de tal entrave. Avançar
significará consolidar o rasgão e decretar o fim da tão amada veste.
Estamos aqui! O rasgão está a abrir-se, de forma
cada vez mais profunda. Haveria que dar o passo atrás (que, como vimos, seria o
verdadeiro progresso rumo à humanização da sociedade, contrariando o que muitos
pretendem dizer, ao rotular de posição conservadora ou passadista!) para
garantir que não se rompe, em definitivo, a solidez do nosso tecido (social).
Mas insiste-se na indiferença para com o risco associado ao prego a que se
prendeu o nosso fato.
Até quando continuará a abrir-se o rasgão? Até
quando resistirá o tecido tão penosamente elaborado em demorado tear?