quinta-feira, agosto 18, 2022

Na Igreja, todos têm lugar, mas nem tudo tem lugar

 

Estarmos em crise, em tensão, em busca, define-nos, enquanto humanos e, de modo particularmente denso, enquanto cristãos. Mas os tempos parecem ser de particular perplexidade e, segundo alguns, de caos.

Onde fica o cristianismo, perante a vertigem que parece tomar conta de tudo? Deverá reconhecer que nada mais tem a dizer de novo e aceitar como legítimo todo o comportamento apresentado como sinal de progresso e revolução? Deverá, porém, bastar-se em adotar uma atitude de fixação e fixidez, ‘porque sempre assim se pensou’?

Comecemos por denunciar o registo que as nossas interrogações permitem evidenciar: será muito redutor se tudo se confinar a um dualismo que se basta em rotular como sendo ‘progresso’ ou ‘tradição’, ‘progressismo’ ou ‘conservadorismo’, como se o avanço ou a conservação fossem, por si mesmos, necessariamente bondosos. Caberá sempre perguntar sobre ‘para onde progredimos’ e sobre ‘o que conservamos’. De outro modo, estaremos em simples movimentos (para diante ou para trás) que nada significam.

Esvaziemos, por isso, o dualismo e tomemos como referência outro critério: o da busca sincera da verdade. Essa, sim, coloca-nos numa tensão - o homem é um ser tensional, encaminha-se para algum lugar, encaminha-se para um horizonte… se não for assim, vive, apenas, seduzido pelo ‘aroma de um tempo flutuante’, como pertinentemente diagnostica Byung-Chul Han -, tensão que nos faz caminhar de algum lugar para outro lugar, num dinamismo digno de um verdadeiro peregrino, metáfora que considero ser das mais pertinentes para definir a condição humana, mas que a pós-modernidade vai esvaziando, subsumindo o homem na mera soma de agoras...

Ora, regressemos à ideia da busca da verdade…

Muitos são os que, hoje, defendem que o cristianismo tem de ser fiel a Jesus Cristo (e tem! Tem, mesmo!), mas tomam de Jesus Cristo o que Ele tem de agradável, ‘aromático’ (para evocar Han), mas não o tomam no todo.

Jesus Cristo revolucionou, bem certo, mas não foi um revolucionário político, como tantos pretendem. A sua revolução é a da verdadeira conversão de coração e de corações. E essa revolução ainda está a operar-se. Ninguém é proprietário dela, pelo que se impõe grande humildade (espero tê-la, ao longo desta reflexão…).

Tomemos, então, como critério a ação de Jesus Cristo.

Em matérias que respeitam ao comportamento humano, à moralidade e à relação entre o agir concreto e a normatividade, é particularmente significativa a ação de Jesus Cristo perante a mulher apanhada em adultério, como nos é contada pelo evangelista João (8,1-11).

É, com efeito, a ação de Jesus, tal como se no-la apresenta o evangelista, que mais tem suscitado discussão e dificuldades de encontro, nestes tempos em que matérias de moral (em particular de moral sexual) são descritas como sendo daquelas em que o cristianismo mais dificuldade tem evidenciado (dizem-nos) em corresponder ao que Jesus Cristo pretende dele.

Olhemos a narrativa apresentada por João que proponho que seja lida com atenção, para que seja notória a surpresa em relação ao excerto escolhido (sigo aqui a edição disponibilizada em http://www.paroquias.org/

“1*Jesus foi para o Monte das Oliveiras. 2De madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo vinha ter com Ele. Jesus sentou-se e pôs-se a ensinar. 3Então, os doutores da Lei e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério, colocaram-na no meio 4e disseram-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar em flagrante adultério. 5Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais mulheres. E Tu que dizes?» 6Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa armadilha e terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se a escrever com o dedo na terra. 7Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!»  8E, inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na terra. 9Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio deles. 10Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» 11Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: «Também Eu não te condeno.” […]

Muitos são os que terminam a sua análise aqui.

Se, de facto, o evangelho terminasse aqui, caberia defender um cristianismo que, em nome do acolhimento de todos, deveria acolher tudo, sem restrições.

Há, porém, que recordar, com honestidade, que o evangelho termina com a afirmação “Vai e de agora em diante não tornes a pecar.” (Jo 8,11b)

E este é o ‘detalhe’ que os tempos relativistas parecem pretender esquecer. É bom, aliás, recordar que Jesus, nesta perícope, está a ser confrontado pelos especialistas na Lei, pelo que sabia que não podia colocar em causa a lei, sem que tal comportasse para Ele custos elevados. A sua abordagem é, aliás, inteligentíssima: responde, apresenta o novo, sem, porém, colocar em causa o que lhe é transmitido pela tradição, sabedoria que a pós-modernidade parece ter perdido: responde, apresenta o novo, mas não sabe recolher o que recebe da tradição. Como recorda Lipovetsky, no seu livro ‘o império do efémero’, a categoria fundamental deste tempo é a forma ‘moda’, entendida como a busca permanente do ‘novo’, num frenesim infinito…

Não é essa, porém, a atitude de Jesus Cristo, nesta cena tão humanamente profunda: uma é a pessoa; outra bem distinta é a sua ação.

E esta é a novidade que o cristianismo tem para apresentar, neste contexto. E é isto que é difícil de entender.

Nas discussões em que se problematiza a ação do cristianismo deveria explicitar-se de que se está a falar: de leis morais? Se sim, a lei moral, no prisma cristão é clara: há atos bons e atos maus; há atos ordenados e atos desordenados; há atos humanizadores e atos desumanizadores; há atos bondosos e atos maldosos; há pecado e virtude. Se estamos no plano da discussão sobre a lei, então, o cristianismo tem a apresentar que todo o ato humano é moralmente interpretável, pois não há atos neutros e inócuos.

E, enfim, se estamos a falar das leis do Estado, então, elas devem ser abstratas, abeirar-se, tanto quanto possível, da bondade moral e, por isso, a atitude cristã deve ser clara: a lei deve ser justa, sob pena de redundar num sentimentalismo que pode gerar injustiça.

Se, porém, estamos a falar sobre a pessoa concreta que os realiza, a atitude de Jesus Cristo é a do acolhimento daquele que apresenta um coração verdadeiramente disponível para a conversão. [Mas, antes de progredirmos na reflexão, sublinhemos este detalhe: o da disponibilidade para a conversão. Na verdade, em muitas das discussões sobre matérias de natureza moral (sejam elas do âmbito da moral social - a atitude perante a pobreza, a injustiça, a desigualdade, etc. – sejam do âmbito da moral pessoal – sobre o adultério, a violência sexual, as diversas orientações, etc.), a pergunta sobre o que tem o cristianismo a dizer deveria sempre pressupor a disponibilidade para a conversão, sem a qual o cristianismo fica reduzido a um moralismo e a uma descrição normativa, por um lado, aparentando ser arrogante a atitude dos que parecem pretender ter a norma final sobre como deverá pensar-se o próprio cristianismo. A tentação é, hoje, vulgar: em lugar de acolher o desafio que Jesus Cristo faz à conversão dos comportamentos arrisca-se legitimar os comportamentos pressupondo que Jesus Cristo os legitimaria. Não o fez, em relação ao adultério; não nos parece que o fizesse em relação a outros mais modernos… Quem é acolhida é a mulher, a pessoa; não o seu ‘pecado’.]

À luz desta análise, há que concluir que o cristianismo tem a apresentar uma proposta que é, efetivamente, única, singular. É única e singular porque encontra o adequado equilíbrio entre dois extremos hoje tão radicalizados: nem, em nome da permanência da lei, se define como legalista, moralista ou indiferente à pessoa; nem, em nome do acolhimento da pessoa, redunda num relativismo.

É este, como recordava Karl Barth, o ‘terrível’ «e» católico: firmes nos princípios «e» acolhedores para com as pessoas. Nem a firmeza da lei sem o acolhimento da pessoa; nem o acolhimento sem a firmeza da lei.

Face a isto, caberá concluir que, nas comunidades cristãs, todos têm lugar, mas nem tudo tem lugar, pois há comportamentos que realizam a pessoa, na sua integralidade, na sua abertura ao outro e ao Outro, e há comportamentos que não a realizam e denunciam por si mesmos o fechamento em si próprio ou se bastam na busca do igual a si mesmo, como se o outro não nos merecesse um amor integral, mas fosse reduzido a uma condição de alter-ego.

Acolher o outro não significa, neste registo, aceitar a bondade das suas ações. Pode significar, mesmo, o dever de, em nome da correção fraterna (tão presente nas primeiras comunidades e, ainda hoje, nas ordens religiosas: porque não nas demais comunidades cristãs?), lhe evidenciar que a sua ação não é bondosa ou humanamente plena, mas que a pessoa que ele é, e sempre disponível à conversão, é acolhida por Deus, acolhimento que se expressa, de forma concreta, na comunidade.

Daqui dimana um desafio duplo: para a sociedade, aceitando este repto feito pelo cristianismo de acolher todos, ainda que problematizando os comportamentos; para as comunidades cristãs, sabendo distinguir entre o dever de evidenciar a verdade da integralidade do agir moral, sem, porém, deixar de acolher cada um que nelas procura refúgio e cuidado.

É a atitude do Bom pastor, tão belamente retratado na igreja de Santa Madalena, em Vezelay, numa das colunas onde Jesus Cristo é apresentado como carregando aos ombros o traidor e suicida Judas Iscariotes. Tomá-lo em ombros não significa legitimar a traição e o suicídio, mas permitir o ‘gotejar’ da esperança numa boca sequiosa…

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