sexta-feira, março 15, 2024

'Regresso a Ítaca no sonho do Éden' | De Ícaro a Pelágio: asas de cera que elevam o orgulho humano

                   Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ tem-nos levado, pela mão de Ulisses que regressa a casa, em Ítaca, depois de dez anos da guerra de Troia, a estabelecer pontes ou identificar abismos entre aqueles que são dois dos mais robustos pilares da cultura ocidental: a antiguidade grega e romana e a cultura de matriz cristã.

Gregos e cristãos unem-se no reconhecimento dos riscos e perigos do orgulho humano, ainda que a apreciação desse vício não coincida totalmente entre as duas matrizes.

Voemos com Ícaro, para a leitura da apreciação grega, e comparemo-la com o que nos chega da história de Pelágio e do seu polémico confronto com Agostinho de Hipona (o grande S. Agostinho).

Conta-nos Pierre Grimal, no seu ‘dicionário da mitologia grega e romana’[1], que Ícaro é filho de Dédalo (aliás, o mito é sempre contado como sendo de ‘Dédalo e Ícaro’) e de Náucrate. Pai e filho foram encarcerados, por Minos, por vingança, no mesmo labirinto do qual tinham ensinado Ariadne a sair (‘seguir o fio de Ariadne’ é expressão que vem deste mito) e permitido que Teseu entrasse e saísse, matando o Minotauro. Ali presos, mas dados os muitos engenhos de Dédalo, criaram umas asas de cera com que se tornou possível escaparem. Antes, porém, de se elevarem nos céus, Dédalo recomendou ao filho, Ícaro, que se mantivesse num justo equilíbrio: nem demasiado afastado nem demasiado próximo do sol. O orgulho e a arrogância de Ícaro fizeram-no, porém, entusiasmar-se, aproximando-se demasiado do sol. Derreteram as asas e Ícaro despenhou-se, desamparado, no mar que circunda a ilha de Samos. (O mito será, provavelmente, uma etiologia para o nome desse mar, Icário, género também frequente nos próprios textos bíblicos que, pela via de uma história, nos ‘explicam’ a origem de um facto, de um nome, de um modo de ser…)

Demos um salto no tempo em relação à época que entregou à humanidade esta história. Avancemos para finais do século IV e inícios do século V depois de Cristo, ao tempo de Santo Agostinho. Por essa altura, um monge nascido, em 354, na Grã-Bretanha, Pelágio, via difundirem-se, com grande projeção, as suas ideias. (O nome ‘Pelágio’ cria uma simbólica coincidência com o mito de Dédalo e Ícaro, pois ‘pélagos’, em grego, significa ‘mar alto’, ‘um mar determinado’, mas, também, figurativamente, ‘perigo’[2]). A sua ideia fundamental era a de que a natureza humana não era tocada pelo pecado original, sendo capaz, por si própria, de evitar o pecado, pelo que, ‘sem necessidade de nenhum auxílio sobrenatural, evitar todos os pecados e praticar todas as obras boas’[3], não sendo, por isso, necessária a salvação oferecida por Deus, através de Jesus Cristo.

A heresia pelagiana difundiu-se com grande rapidez, dado o seu poder sedutor (ainda hoje, o tique pelagianista continua a atrair, afirmando-se como um otimismo antropológico que parece pensar o ser humano como isento de mácula e atribuindo à sua liberdade a fonte de toda a moralidade…), tendo, mesmo, atraído, num primeiro momento, a adesão do Papa Zózimo que, porém, por intervenção de S. Agostinho, vem a rever a sua posição, na célebre carta Tractoria (418). As teses pelagianas são sucessivamente condenadas no sínodo de Cartago (411), no de Diáspole (415), por Inocêncio I (em 417) e, como dissemos, pelo Papa Zózimo, na carta Tractoria. A condenação definitiva das teses pelagianas ocorre em abril de 418, em Jerusalém. O que ficava em causa, com o pelagianismo, saltava à vista. Se o homem, por si só, consegue obter a sua salvação, que lugar caberia a Deus? E onde ficaria a missão de Jesus Cristo: não seria mais do que um exemplo, escapando-lhe o poder redentor?

A tese fundamental de Pelágio expressava-se de forma particularmente acutilante neste aforismo recolhido de uma das suas cartas: ‘Está em meu pode fazer o bem, sou eu a gerir a minha liberdade.’ (Epist. 216,5)

Ao lê-la, os nossos ouvidos parecem reconhecer os ditames do paradigma contemporâneo. O sol nunca será demasiado próximo para os Ícaros de hoje.

Dédalo continua, porém, a sussurrar-lhe que não ouse elevar-se demasiado, porque são de cera as suas asas.

Mas o homem continua a elevar-se até não ser mais do que um ponto negro no horizonte… Mas convencido de que só a si cabe salvar-se.

O cristianismo, porém, continua a recordar-lhe que a condição humana, na história, está marcada pela debilidade e pela fragilidade, enquanto criatura, debilidade a que Paul Ricoeur, no seu ‘o homem falível’[4], chama ‘falha existencial’. A perda desta consciência é e tem sido causa de arrogância que faz do Homem ‘homini lupus’[5] (homem lobo do homem).

Os voos com asas de cera são, assim, muito mais do que metáforas de um desejo: são a tentação permanente de se arvorar em Deus, abandonando a condição de criatura.

Distingue a leitura grega da cristã a definição da ‘missão’ de Deus perante esta arrogância. Os gregos projetavam nos próprios deuses o orgulho que assomava à alma dos humanos, eternizando a arrogância; o cristianismo liberta o homem, confinando ao ‘território’ da história o poder do orgulho. Na morte de Jesus Cristo, o Humilde por antonomásia, o orgulho é derrotado e fica o reconhecimento da condição ‘indigente’ de quem ama: quem ama não é orgulhoso, não é arrogante – é todo ele abertura ao outro; é todo ele acolhimento do outro.

Mesmo sendo altamente sedutora a tese pelagiana, ela não pode vencer: a afirmação do ‘pecado original’, clarificada com a polémica entre Agostinho e Pelágio, permanece urgente como garante do reconhecimento do limite intrínseco à condição criatural, não porque seja desejada por Deus (que, pelo contrário, dela a redime), mas porque, como reconhece Andrés Torres Queiruga, não poderia ser de outro modo, dado que, na história, o limite é intrínseco[6]. Negar o limite, presumindo-se a ‘ilimitude’ de cada criatura, é fonte de males que vitimizam o próprio humano, desumanizando-o…

Regressa, Ícaro, ao chão de que nasceste, porque és Adão![7]



[1] Sigo a edição portuguesa da Antígona Editores, publicada em 2020.

[2] Isidro Pereira, Dicionário de grego-português e português-grego, Braga, Livraria A.I., 19908.

[3] Cfr. Roque Frangiotti, História das heresias: conflitos ideológicos dentro do cristianismo, São Paulo, Paulus, 1995, p. 114.

[4] Paul Ricoeur, o homem falível, Lisboa, Edições 70, 2019.

[5] Thomas Hobbes, Leviatã.

[6] Andrés Torres Queiruga, Recuperar a salvação: por uma interpretação libertadora da experiência cristã, São Paulo, Paulus, 1999, pp. 97 ss.

[7] ‘O pecado de Adão torna-se ao mesmo tempo a figura do drama humano na sua generalidade e a sua representação simbólica do acontecimento original que é seu ponto de partida.’ (Bernard Sesboüé, História dos dogmas, Tomo 2, O homem e sua salvação, S. Paulo, Edições Loyola, 2003, p. 227)

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