domingo, novembro 27, 2011

A fé em tempos de crise

Estamos em tempo de advento. Não apenas porque a liturgia nos coloca nesse dinamismo, nos quatro domingos antes do Natal, em atitude de recordação (olhando para o passado) do tempo de espera da encarnação.
Sem ocultar esse dinamismo, falar de advento deve recordar-nos, antes, que a fé cristã nos coloca em tensão para o futuro, o que confere à nossa primeira afirmação, um novo sentido, tão urgente e relevante, nestes tempos de crise, marcados pela neblina que parece abater-se sobre a esperança. Na verdade, se nos interrogarmos, com atitude disponível para ouvir a resposta, sobre o que é a fé cristã, não poderemos, de modo algum, aceitar que ela se define, primeiramente, como crença num conjunto de verdades, mais ou menos obscuras e de difícil compreensão. A fé, a ser assim, seria algo próximo do esoterismo, incapaz de fecundar a vida, a existência humana. Não sou eu que o afirmo, simplesmente. Valerá, aliás, a pena recordar afirmações de Joseph Ratzinger (actual papa Bento XVI), em Dezembro de 1969: «o que quer dizer, à luz da Bíblia, «ter fé»? E constatamos que não significa um sistema de meias verdades, mas sim uma decisão sobre a existência – a vida vivida na perspectiva de um futuro que Deus nos concede mesmo para lá das fronteiras da morte. Esta direcção é que dá à vida o seu peso e a sua medida, as suas prioridades e, por isso mesmo, a sua liberdade. Com certeza que uma vida vivida na fé parece mais uma escalada de montanha do que um sonho à lareira, mas aquele que se empenha nessa viagem sabe e experimenta sempre mais que vale a pena viver a aventura para a qual é convidado pela fé.»
A fé é, assim, antes de mais, uma decisão pelo sentido da existência, preparando, no hoje, um futuro que se antecipou na História. Esta mesma história vem demonstrando que o apagamento desta tensão para o futuro, inerente à fé cristã, tem contribuído, de modo decisivo, para a condição angustiada das sociedades modernas, incapazes de construir um futuro feito de esperança, mas antes vazio e vão (cheio de vaidade – vanitas, em latim, de que deriva «vaidade», quer dizer «vazio, vão»). É o mesmo Ratzinger que o confirma: «O fenómeno curioso do nosso tempo é que, no preciso momento em que se consuma o sistema do pensamento moderno, nesse mesmo momento tornar-se-á patente a sua insuficiência por incorrer necessariamente no relativismo.»
Estou certo de que a História fará justiça a Bento XVI por ter escolhido o combate contra o relativismo como o maior desafio do seu pontificado. Confirmam esta preocupação a encíclica «caritas in veritate», que inverte o adágio Paulino «a verdade na caridade», sublinhando, assim, a importância da verdade, contra os sentimentalismos efémeros e que nivelam a verdade e a opinião, com os resultados que a crise actual permite verificar, assim como os pedidos repetidos de correspondência à verdade, junto dos grandes líderes mundiais, sejam políticos, económicos, religiosos, ou outros.
É que Bento XVI sabe, e tem-no repetido, que é a busca da verdade que abre o homem ao amanhã. Sem essa busca, que abre ao futuro, o homem basta-se com o que já é e conquistou, acomodando-se. É a tensão pela descoberta da verdade que o envia para além de si, que o faz transcender-se.
«Houve seres humanos que tiraram a vida a si próprios para não terem de morrer, como bem formula Emmanuel Mounier. Esta é uma contradição que, no entanto, põe de modo inaudito perante os nossos olhos a específica condição humana: sem futuro, até o presente se torna insuportável para os homens - aliás, por esta razão é que não ousamos, na maior parte das vezes, revelar aos doentes incuráveis a verdade sobre o seu estado, porque nada é mais difícil de suportar para os homens do que a ausência de futuro.»
Estamos em advento («aproximar-se de…, chegar a…») se não perdermos a fé. Ela é a condição de realização do Homem, sem a qual o futuro se some nas utopias que mais não são do que projecções do presente, que se esfumam como tantos moinhos de vento que o homem perseguiu, até hoje. Em tempos de crise, é urgente recuperar o sentido de advento, de caminho consistente em direcção ao Amanhã definitivo, legitimação de toda a real esperança.

Luís Silva

quarta-feira, novembro 02, 2011

A esperança contra o sonambulismo

Os tempos não estão fáceis para quem ainda quer ousar pensar. Vivemos tempos de vertigem, que pedem persistência e resistência. As mais inusitadas decisões são-nos apresentadas como fatalidades e os seus opostos considerados como passadistas e superados.
Querem fazer-nos crer que nada mais resta do que aceitar o rumo de uma história que parece movida pela força trágica de um destino invencível.
Nada mais errado do que deixar-se abater por esta convicção generalizada, que atrofia a liberdade e amarfanha a humanidade que subsiste em cada um.
Parecemos personagens de «o senhor das moscas», obra de Golding que retrata o naufrágio de um grupo de alunos de uma academia militar que se refugia numa ilha, perdida no oceano. Nos primeiros tempos, todos os náufragos parecem reunir-se em torno da esperança de que alguém virá salvá-los. Porém, o passar do tempo vai arrefecendo a esperança, e começa a emergir um grupo, liderado pelo terrível Jack, que desiste de esperar e começa a viver o dia-a-dia sem amanhã. Sem futuro, este grupo passa a viver do prazer de comer e de caçar javalis, revoltando-se contra os que continuam a entender que devem manter acesa a chama da esperança de que ainda virão a ser salvos da ilha. Nesta voragem de fruir do presente, o grupo dos que perderão a esperança começa a viver uma submissão cega ao líder, Jack, que vive para o prazer de cada momento, iniciando uma perseguição mortal aos que resistem.
Um a um, os que tinham alguma réstia de esperança vão sucumbindo, seja por desistirem, seja às mãos dos que já não acreditam que haja futuro fora da ilha. Até que só restará Ralph, o líder dos que mantém acesa a chama da esperança. Inicia-se uma última perseguição, que põe a ilha a ferro e fogo. Tudo arde e Ralph vai-se escondendo como pode e consegue. Até que é descoberto e perseguido pelos caçadores, que o seguem até às areias da praia, onde tudo parece estar acabado. Nesse momento, porém, os perseguidores despertam da sua cegueira ao descobrirem que, ali mesmo, encontram-se os helicópteros dos que vêm salvá-los.
- «O que fizestes?» – é a pergunta com que se encerra o drama, ficando a ecoar aos ouvidos como recuperação da consciência que andara adormecida e que inaugura o reconhecimento do sem-sentido de tudo o que fora feito até ali.
É a interrogação que muitos querem silenciar, pretendendo adormecer-nos sossegados enquanto o mundo arde.
Confesso que é frequente ocorrer-me a recordação deste enredo quando me deparo com a indiferença com que se fala dos números do aborto, como se de mera estatística fosse. E ainda que fossem só dados estatísticos já não seriam pouco. Na verdade, após a mudança da legislação, decorrente do referendo de 11 de Fevereiro de 2007, realizaram-se, até Dezembro de 2010, 62254 abortamentos a pedido da mulher. Se tivermos em conta que nasceram, em 2010, cerca de 101 mil crianças e que se realizaram, nesse mesmo ano, 18911 abortos a pedido da mulher, estaremos a falar de quase 20% de portugueses da espécie humana que poderiam nascer nesse ano e a quem tal não foi permitido.
- «O que fizestes?»
Muitos têm invocado que a mudança legislativa decorre de um processo imparável de progresso rumo à modernidade, como se fosse um caminho para diante. Porém, nada mais enganador. Na verdade, de moderno e de progresso nada têm estas decisões, antes são um retrocesso de mais de 2000 anos. Basta, com efeito, recordar que já o juramento de Hipócrates (no século V-IV a.C.) previa a proibição de «aplicar pessário em mulher para provocar aborto», permitindo supor que era uma prática existente. Também uma carta do século II d.C., dirigida a um desconhecido Diogneto, reconhecia que os cristãos «casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os recém-nascidos.» Era prática, entre os povos ditos clássicos, o infanticídio, o aborto, o abandono dos idosos. É o Cristianismo que, ao reconhecer a igual dignidade de todos os humanos, enquanto imagem e semelhança de Deus, afirma o carácter sacramental de cada vida humana e, por isso, merecedora de total respeito.
Pretender-se entregar à discricionariedade de alguém (seja o Estado, seja o partido, seja a mãe ou o pai, etc.) o poder de decidir se outrem merece ou não viver é retroceder não vinte ou cinquenta anos, mas dois mil. É deitar por terra as conquistas lentas da civilização ocidental, na qual puderam emergir a ciência e o reconhecimento dos direitos humanos. É regressar à barbárie. Com a agravante de se julgar que se está a escapar a ela, o que é ilusão maior e mais difícil de reconhecer e, por isso, de ultrapassar.
A história parecia ter-nos ensinado que é admissível errar uma vez, mas persistir no erro denuncia pouca sabedoria, pois, como dizia Cícero, «errar é humano, manter-se no erro é de néscio.»
Que resposta estaremos em condições de dar quando, finalmente, a consciência nos perguntar «o que fizestes?»? Ou lavaremos as mãos porque os outros é que fizeram por nós?

Luís Silva - professor
(Artigo publicado no jornal «Terras do Vouga»)

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