Muitos estão convencidos de que o que muda o mundo é a ação. E não estarão totalmente errados, desde que não seja esquecido o facto de que o homem, enquanto animal racional, age movido por ideias. A ação é como que a planta que germina porque se adubou, previamente, a terra. O adubo são as ideias, a terra fértil, durante muito tempo silenciosa e discreta, à espera do momento oportuno.
Vem isto a propósito das decisões que se vêm tomando sobre matérias concernentes à família. Muitos estão convencidos de que elas são espontâneas e imparáveis. Mas a verdade é mais profunda do que esta superficial e imediata conclusão. Terá de se procurar entre as ideias preconizadas em livros que repousam sob a capa de séculos de pó. Ideias que alguns, poucos, leram, mas que muitos repetem até à exaustão e que vão fazendo «cultura». Vale a pena recordar, aliás, que «cultura» é um particípio futuro latino que quer dizer, precisamente, «as coisas que serão cultivadas e colhidas». As ideias germinarão no futuro. É isso a cultura.
Ora, estou convencido de que teremos de recuar até meados do século XVII para encontrar a terra adubada em que germinaram as condições necessárias para que, tantos séculos decorridos, se achasse legítimo o que, em verdade, não o será mas tem todo o aspeto de o ser.
Thomas Hobbes defende, no seu livro «leviatã», publicado em 1651, que «todos os homens têm direito a tudo». Esta é a obra que tornou tristemente célebre a afirmação de que «o homem é lobo do homem», fazendo assentar a sociedade, não sobre o respeito de uns para com os outros, mas sobre o conflito. Para a nossa análise interessa mais, porém, recordar o alcance da ideia de que todos têm direito a tudo. A base do direito, para Hobbes, não terá de se encontrar na dignidade da pessoa, mas no seu desejo. O que se deseja é um direito.
Tal identificação pareceria, num primeiro momento, encantadora porque encantatória, mas não passa, numa segunda análise, de uma pura falácia, pois, se é certo que os direitos correspondem a desejos legítimos profundos, nem todos os desejos podem, contudo, configurar-se como direitos.
Veja-se, a título ilustrativo, a atual discussão sobre o direito à adoção, reivindicado pelos pares homossexuais. A interrogação peca, no imediato, por escolher como ponto de partida para a discussão uma referência que não é a ajustada. Na verdade, em rigor, não são os pais que têm direito a ter filhos, mas os filhos que têm direito a um pai e a uma mãe, entendido como superior interesse da criança, como estabelece a convenção dos direitos da criança (1989). Para além disto, o facto de se ter desejo a ser pai ou ser mãe não se configura, no imediato, como direito absoluto, pois é sabido que muitas são as circunstâncias em que o Estado, no exercício legítimo dos seus deveres, pode suspender o exercício da tutela paternal e maternal, na defesa dos direitos dos filhos.
Mais ainda, restará saber se pode considerar-se que uma determinada estrutura jurídica que não reúne os elementos formais e materiais de uma outra figura jurídica pode assumir as funções desta última. Sendo mais claro. Será que o casamento, enquanto estrutura essencialmente heterossexual, na qual se deposita a legítima expectativa de poder assegurar o nascimento de descendentes, pode ser assumida, nas suas funções, por uma outra estrutura não heterossexual? A resposta é evidente, ainda que não se queira ver.
Acrescente-se, por fim, que são muitos os que invocam o direito positivo registado na declaração universal dos direitos humanos para legitimar o reconhecimento dos eventuais direitos dos homossexuais a adotar crianças. Também aqui as falácias e suposições de que estará escrito o que, de facto, não está, são muitas. Na verdade, a declaração preconiza um modelo de família claro. Veja-se o que diz o artigo 16º: «1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião.» Muitos poderão dizer: mas, em rigor, não se estabelece aqui a reciprocidade entre homem e mulher que seria definidora da ideia de uma estrutura heterossexual! Contudo, no mesmo ponto 1, diz-se, ainda: «Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais.» Este «ambos» define uma reciprocidade que não deixa margem para dúvidas.
A esta luz, só de forma artificial e ideológica, assente na ideia hobbesiana de que o que se deseja é um direito, é que se poderá continuar a sustentar a legitimidade da adoção pelos pares do mesmo sexo. Bem certo que a lei da adoção apresenta uma fragilidade que parece não ser compaginável com o superior interesse da criança: a possibilidade de adoção por uma só pessoa. É estranha esta possibilidade que, agora, é utilizada como forma de entreabrir possibilidades para a co-adoção.
Neste quadro, valerá a pena deixar a pergunta sobre os motivos pelos quais se preconiza o direito dos homossexuais a adotarem e não se refere o mesmo aos bissexuais, por exemplo. É certo: lá chegaremos, mas pretende-se que o percurso se faça de forma indolor. A sociedade vai sendo insensibilizada, de forma progressiva. Admitir esse direito para os bissexuais seria abrir a porta para a poligamia, à qual a sociedade não está ainda recetiva. Mas os tempos tornar-se-ão propícios, pois assim se tornaram, também, para outras matérias.
Importa perceber que esta posição não visa preconizar qualquer tipo de discriminação. Na verdade, discriminar é impedir o acesso a algo legítimo. Seria ilegítimo, por exemplo, o acesso a um lugar de emprego, a uma tarefa concreta, com base na interrogação sobre este tipo de matérias. Não será, porém, discriminar não reconhecer a um desejo a condição de um direito pelo simples facto de que esse desejo não é compaginável com a natureza da estrutura jurídica a que se quer fazer corresponder o desejo. O facto de eu desejar um bem que é de outro não confere a esse desejo a condição de direito, isto é, por eu desejar o que é de outro não me torno seu proprietário. Mas para muitos é mesmo assim!