O mundo da educação, aquele onde fermenta a minha
vida quotidiana, está, muitas vezes, marcado por uma espécie de fatalismo que,
frequentemente, me provoca a interrogação sobre onde ficará a liberdade e a
responsabilidade pessoal. São tantas as razões invocadas para justificar o
insucesso e a tibieza que parece ficar sumida a pessoa numa tempestade
invencível de causas, de tal modo que o ser humano sobre quem recai o olhar se
torna uma mera vítima, onde a condição de pessoa é uma miragem. Não posso
deixar de sublinhar que revejo, neste fatalismo, uma espécie de reminiscência
do destino trágico que definia o enredo do teatro grego, onde o herói mais não
era do que uma vítima da moira, do fatum (de que vem o nosso «fado»), essa
força incontrolável, que o encaminhava, sem contradição, para o fim previamente
definido. Contemporaneamente, o grande Gabriel Garcia Márquez, escritor
colombiano de renome mundial e vencedor do Nobel da literatura em 1982,
recuperou a mesma ideia na sua «crónica de uma morte anunciada», uma espécie de
versão sul-americana do «processo» de Kafka. O homem, em todos estes palcos,
não é livre, não tem capacidade de romper com um destino predeterminado que ele
apenas cumpre.
Ora, tal não é, nem poderá ser, a visão católica
sobre a vida humana. É sabido que o protestantismo, em virtude da forte
influência nominalista que recebeu, via Guilherme d’Ockham, não dispensou esta
visão, que é mais vincada, porém, no calvinismo do que no luteranismo. E
compreende-se porquê. A intenção de reconhecer apenas a Deus a origem da
salvação humana (também o Catolicismo afirma a iniciativa de Deus, contudo)
assegurava-se sumindo o papel do homem. Restava, então, atribuir a uma
libérrima e inacessível vontade divina o conhecimento sobre o destino de cada
um. O contributo efectivo da pessoa humana ficava, assim, silenciado. (Uma
atitude genuinamente ecuménica não poderá, contudo, deixar de ter a sabedoria
de colher, do protestantismo, esta condição de acolhimento gratuito dos dons de
Deus e, do catolicismo, este movimento não fatalista, em vez de se fixar nos
limites e extremos de uma e outra opção).
Não deverá, insisto, ser essa a leitura católica.
Mesmo que as circunstâncias façam crer que se é vítima de um destino
pré-traçado, a que nada pode opor-se, importa confiar que não é assim e que o
homem é aquele com quem Deus fala «como a amigo», como refere a Dei Verbum 2.
Ilustro estas afirmações com uma história
verdadeira, contada por Tim Harford, no seu recente livro de título sugestivo: «adapte-se:
o sucesso começa sempre pelo fracasso».
É a história de um rapaz, nascido em 1937, em
Verona, na Itália, de nome Mario Capecchi (lê-se «Mário Capéqui»). Uma história
que tinha tudo para o enredo de uma tragédia de Sófocles. Ou quase tudo… Com
pouco mais de 3 anos, Mario vê a sua mãe ser-lhe tirada, às mãos de soldados
nazis que a levam para um campo de concentração, ficando com o seu pai, um
homem violento, de quem não guarda memória de sinais de amor. Durante cerca de
um ano, a vida de Mário divide-se entre a agressividade do pai e as fugas de casa,
oportunidade para se refugiar na rua, onde pretendia sumir-se à violência
paterna. Como recorda Tim Harford, citando o próprio Mario, «por entre os
horrores da guerra, talvez a coisa que, enquanto criança, me tenha sido mais
difícil de aceitar fosse ter um pai que era violento comigo». Por volta dos
seus quatro anos e meio, perde o pai, vítima de um ataque aéreo, iniciando-se,
aqui, um período de cinco anos em que a sua vida se faz de orfanato em
orfanato, cujas condições eram terríveis: «não havia cobertores nem lençóis, as
camas eram postas lado a lado, e não havia nada para comer excepto uma côdea de
pão e uma chávena de chicória.». Aos nove anos, reaparece a mãe,
irreconhecível, após cinco anos passados num campo de concentração. Leva-o para
a América… Em 2007, Mario Capecchi recebe o prémio Nobel da medicina, por
investigações na área da genética.
Num registo fatalista, a vida de Mário Capecchi
teria redundado numa história de marginalidade e tristeza. Um outro registo,
feito de responsabilidade pessoal, de reconhecimento de que a história se realiza
no encontro entre Deus e o Homem, e não como mero cumprimento de um destino
pré-traçado, permite vislumbrar sentido e conferir sentido ao que parece ser antecâmara
para o abismo.
Quantas mensagens e desafios se ocultam nesta
história real, nestes tempos em que a tentação de invocar o «terrível fado»
parece aquietar e acomodar, como que esperando que a resposta surja
espontaneamente! O Cristianismo é, porém, desafio de encarnação, isto é, de
assunção de que se não se encarnar a condição humana, algo ficará por fazer…
Por paradoxal que pareça, a acção de Deus não se fará sem a resposta
comprometida dos humanos. Deus é espírito, sopro, não «furacão».