É
sabido que, na escolha do seu nome, cada Papa (Pai) afirma como que um programa para o seu pontificado. Assim
ficou claro com os antecessores do Cardeal Bergoglio que, enquanto Bento, João,
Paulo ou João Paulo, pretenderam situar-se na senda dos que ostentaram cada um
destes nomes. Ao escolher o nome de «Francisco», o cardeal que foi trazido
quase do fim do mundo definiu as marcas que se tem provado pretenderem, desde a
primeira hora, marcar o código genético do Pontificado. Na verdade, é difícil
encontrar nome de santo que suscite, no imediato, tanto apreço e cumplicidade junto
de todos e cada cristão. Nele se reconhecem a coragem, o humor, o
desprendimento, a coragem, o desejo de reformar a Igreja de Jesus. Um desejo que,
nas ruínas da destruída igreja de S. Damião, em Assis, se expressou através de
uma voz em que Francesco Bernardone reconheceu o desafio de Jesus Cristo:
«Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Vai reconstruí-la.»
A
densidade deste nome é tal que os próprios brasileiros decidiram atribuí-lo
àquele que é conhecido, entre eles, como o rio da unidade nacional: S.
Francisco. Quando o ouvi anunciado, na tarde de 13 de março de 2013, a surpresa
que o seu significado fazia emergir e o desconhecimento sobre quem seria o
cardeal eleito fizeram-me duvidar se outros não seriam os Franciscos aludidos:
Francisco de Sales? Francisco Marto? Francisco Xavier? Quereria dar um sinal
sobre a importância da educação (São Francisco de Sales é o patrono dos
salesianos), sobre o seu sentido mariano (Francisco Marto) ou sobre a nova
evangelização da Ásia (S. Francisco Xavier é considerado o «apóstolo do
oriente»)?
Mas
o sentido era o que a primeira surpresa parecia denunciar. A hora era de
reforma, de reconstrução da igreja. Uma reforma que começa por fazer-se pela
capacidade de surpreender, quer pelo humor, quer pela simplicidade e humildade.
Aliás, não será sem sentido ver proximidade etimológica entre «humor» e
«humildade». Só se ri de si quem tem a capacidade de se reconhecer no seu
limite. Recordo, a pretexto disto, uma cena de humor que é contada pelo grande
Chesterton (um inglês de inícios do século XX, convertido ao catolicismo cuja
leitura devia ser obrigatória, tal a sua genialidade) na biografia que ele
publicou sobre «S. Francisco de Assis e que retrata belissimamente muito do
comportamento cristão necessitado de reforma. Conta Chesterton que
um certo bispo se queixava de que um não-conformista [reformador dentro da
Igreja Anglicana nos séculos XVI-XVIII] chamava “Paulo” ao Apóstolo em vez de o
tratar por “São Paulo”. E acrescentava o bispo: “Podia ao menos tratá-lo por
Sr. Paulo”.
Esta é a
familiaridade que Francisco, o Papa, parece pretender trazer para o seio da
Igreja. Uma familiaridade e humildade que temo que muitos estejam a pretender
confinar à cúria romana, necessitada, seguramente, de uma «eminentíssima
reforma» (para usar palavras do nosso Frei Bartolomeu dos Mártires, que João
Paulo II elevou aos altares, fazendo-o beato). Na verdade, muitos parecem
continuar a não reconhecer que quando dizemos que a Igreja necessita de reforma
é a toda a Igreja que tal se refere. Toda inclui todos e cada um dos cristãos.
O estado de permanente renovação e conversão é condição cristã. Estamos sempre
na tensão do «já» e «ainda não», essa dinâmica que, sendo marca da escatologia
cristã, face às outras escatologias, expressa o ADN do ser-se cristão. Não é só
Roma que necessita de reforma. Quantas comunidades continuam presas a supostas
tradições que impedem que se renovem os caminhos? Quantos cristãos ameaçam
bater com a porta só porque não é feita a sua vontade? Quantos de nós
continuamos a pretender uma Igreja à nossa medida, como se fôssemos nós mesmos
sacerdotes autoinstituídos? A Igreja necessita daquela verdadeira reforma em
que se reconhece, toda ela, não o fim para onde todos devem caminhar, mas, como
diz a oração publicada em 1916 e designada como oração de S. Francisco, «o
instrumento da paz» de Jesus Cristo. É este o desafio de Francisco: devolver o
centro àquele que o deve ocupar.