A assembleia da República prepara-se, com um não solicitado consentimento da sociedade, para legalizar a maternidade de substituição, vulgarmente designada como «barriga de aluguer», situação que estava claramente vedada pela Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, lei que era, no entanto, já extremamente permissiva. Na verdade, esta legislação abrira as portas à possibilidade da procriação heteróloga, isto é, com recurso a gâmetas (óvulos, espermatozoides e, mesmo, embriões) de fora do casal, afigurando-se a muitos, entre os quais me incluo, como errada, na medida em que só por decisão discricionária do legislador se podia determinar quem era o pai ou a mãe, deixando de se ter por referência a natureza. As consequências de uma tal aleatoriedade levantar-se-ão à medida que a lei for atingindo a maioridade e, com ela, os que tiverem nascido em resultado das suas determinações. Que direito prevalecerá quando alguém pretender conhecer o seu pai ou mãe biológicos, a quem foi garantido que permaneceriam anónimos? Quem poderá garantir que os muitos filhos de um determinado dador não lhe virão a reivindicar direitos de herança, por exemplo, ainda que a lei positiva assim o afirme, pois, se os critérios objetivos já foram esquecidos, porque não há de o legislador mudar a lei que fez? E se for garantido o anonimato, que certeza poderá ter alguém de não casar com um seu meio-irmão ou meia-irmã?
O poder não é critério ético
Então, como hoje, estou convencido
de que a prudência, que a ética sempre nos pede que tenhamos, não foi tida em
conta. Então, como hoje, a realidade demonstra-nos que o poder não é, por si
só, critério ético. «Poder fazer algo» não é sinónimo de «ter legitimidade para
o fazer». Esta distinção parece estar a sumir-se no pensamento de muitos, para
quem as possibilidades técnicas, abertas pela biomedicina, são tomadas como
certeza de que, necessariamente, deverão aplicar-se e difundir-se como recursos
eticamente legítimos. Então, como hoje, apenas se visou garantir as condições
de um exercício erradamente considerado como livre, quando, na verdade, é puro
arbítrio incondicionado, esquecendo o pressuposto antropológico de que somos
cultura, bem certo, mas, também, natureza.
Tais pressupostos estão, mais uma
vez, sumidos da discussão que se está, veladamente, a realizar na assembleia da
república. O texto, que se encontra em discussão ou na iminência de ser
publicado, falará, como sempre, de que o cenário que se abre com a legislação
produzida será apenas uma exceção. Contudo, já em tempos o Conselho Nacional de
Ética para as ciências da vida alertava para o chamado efeito de «plano
inclinado», em que tendem a deixar-se resvalar as matérias que concernem à
ética da vida. Tudo começa com uma primeira exceção que, rapidamente, se torna
a regra. Quem duvida, hoje, por exemplo, de que está implantada, na sociedade
portuguesa, uma lógica eugénica, suportada no princípio (dito excecional) de
que se pode abortar, até às vinte e quatro semanas em virtude de o filho ser
portador de uma qualquer malformação? E tudo começou por ser entendido como
exceção. Hoje, porém, a perspetiva é a de que abortar o filho com malformação é
a regra. As pressões para tal são muitas. Que o digam os casais a quem foi dada
a notícia de que os seus filhos poderiam ser portadores de uma qualquer doença…
tratável com a morte!
Crítica da maternidade de substituição: do filho como um direito ao filho
como pessoa
No que concerne à maternidade de
substituição, o quadro justificativo não é diferente e o cenário que a exceção
abrirá também não se distinguirá, no futuro. Hoje, será a exceção; amanhã, a
regra para todos os que não pretendam passar pelo incómodo da gravidez,
quaisquer que sejam os motivos. Aliás, a tendência é para se sumirem os motivos.
Os motivos serão úteis, apenas, até se mudar a lei. Depois, tornar-se-á
ilegítimo perguntar por eles, em nome de uma suposta liberdade e respeito pela
intimidade.
Acresce a este quadro, que,
certamente, estamos a pintar com cores carregadas, o facto de, na discussão
sobre a legitimidade da barriga de aluguer tudo ser feito assente num sofisma
que importa denunciar. A argumentação que é, habitualmente, sustentada, afirma
a legitimidade do seu recurso por compaixão para com os casais que, por
qualquer motivo, estão privados da possibilidade de desenvolver uma gravidez.
Em si, o argumento da compaixão parece esvaziar qualquer refutação. Contudo,
ele nasce de uma presunção errónea que importa, desde já, denunciar. O filho
não é um objeto ou um qualquer bem a que se tem direito. É, em si, um outro
alguém a quem deve respeitar-se. Assim, em rigor, temos o direito a não ser
impedidos de ter filhos, mas não poderá dizer-se que ter filhos é um direito em
si mesmo. Estas palavras devem ser bem entendidas, a fim de não serem
manipuladas no sentido do que não pretendem dizer. O que afirmam é a
anterioridade do filho em si mesmo em relação ao direito a ser pai ou mãe. Só
esta leitura pode impedir a objetualização do filho que é, porém, uma abordagem
muito difundida. E é neste quadro antropológico que não é admissível a
maternidade de substituição (barriga de aluguer). A pergunta a fazer será,
então, acerca do dever de proteger cada filho de toda a agressão, incluindo a da
rejeição. Não será admissível, a esta luz, aceitar que alguém, suportado pela
lei, gere um filho para o abandonar na hora de ele nascer e o entregar a outrem.
Gerar para abandonar é contraditório e não deve merecer a tutela do Estado de
direito. Tal como não deveriam ser admitidas as situações de orfandade predeterminada
legalmente, em que aquilo que se pretende evitar para todas as crianças
(ficarem órfãs) é criado para algumas, em nome do exercício do livre arbítrio
que se torna inumano. Na verdade, o pressuposto que aqui temos em conta é
aquele que muitas vezes ouvi recordar ao grande mestre da bioética, Dr. Jorge
Biscaia, que sempre lembrava que ainda mesmo antes que a mãe tivesse
consciência de que estava grávida, já o seu corpo respondia aos sinais que o
filho lançava ao corpo da mãe. Entre a mãe e o filho gera-se uma relação de
intimidade que só tende a crescer com o progredir da gravidez. Esta convicção é
confirmada pela corrente fenomenológica que, nas palavras de Merleau-Ponty, verifica
que fazemos a experiência do «corpo vivido». Aquilo que vivemos na nossa
corporeidade deixa marcas profundas no que somos. E isto desde a primeira hora
da nossa existência. A fase da gravidez não é, então, um período obscuro e
insignificante. Pelo contrário, é profundamente marcante, pelo que deve merecer
toda a proteção e atenção cuidada de quem tem a obrigação de salvaguardar o que
é relevante. Entre os que a têm conta-se, certamente, o Estado como entidade
que deve fazer prevalecer o que é mais importante sobre a discricionariedade e
a arbitrariedade. Estou certo de que, para muitos, esta é uma batalha que já há
muito consideram perdida: a da defesa da vida humana frágil e débil, nos seus
inícios e no seu fim. Contudo, a história de conquista que foram os últimos 2000
anos demonstra o contrário. Diante da barbárie, foi possível conquistar terreno
que, recentemente, parece estar, de novo, a tomar conta da terra cultivada. Mas
a colheita só se fará quando a história terminar. E, nessa hora, importará
estar do lado certo da história.