O
país ainda está atónito com a sucessão de notícias de corrupção que envolve
altas figuras do Estado. A presunção da inocência de cada um deve ser
pressuposto para qualquer reflexão. A frequência e vertigem com que as notícias
se sucedem devem, porém, ser pensadas como uma oportunidade para uma análise
que não se satisfaça com a identificação de uns quantos que possam sossegar as
consciências adormecidas, como se neles se encarnasse o papel de bodes
expiatórios. Esta é uma oportunidade para a reflexão. Para a reflexão sobre o
que deva ser a política e sobre como se criam as condições para, no seu
exercício, se gerar a corrupção.
Coincido
com os que pensam que não se chega à grande corrupção começando por aí.
Partilho, aliás, do que, no início do ano, já afirmara o presidente do Tribunal
de Contas, Doutor Guilherme d’Oliveira Martins, na revista Visão: «A cunha, o
pequeno favor, feitos por amizade, são o primeiro passo da corrupção».
Tipologias de corrupção
Na
realidade, como reconhecem muitos que se vêm dedicando ao estudo deste
fenómeno, entre os quais se destaca, em Portugal, a associação «Transparência e
Integridade, a corrupção pode tipificar-se em quatro perfis, numa espiral
progressiva que se alimenta dos perfis anteriores: a corrupção esporádica ou fragmentada, a corrupção estrutural ou cultural, a corrupção sistemática ou política, de alta frequência e de elevados
recursos e a corrupção
metassistemática ou de ‘colarinho branco’, envolvendo quantias avultadas,
mecanismo de troca sofisticados e tendencialmente transnacionais e uma
permeabilidade entre política e mercado. Esta tipificação pode encontrar-se no
precioso ensaio do presidente da referida associação, Luís de Sousa, intitulado
«Corrupção» e editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Quem
não é no pequeno não é no grande
Estas duas referências, quer ao presidente do
Tribunal de contas, quer a esta arrumação formulada pelo presidente da «Transparência
e Integridade», obrigam-nos a assumir que a corrupção se combate, não apenas
detendo os corruptos e corruptores, mas também transformando a cultura, o caldo
em que estes fenómenos encontram terreno favorável. Na verdade, considero que,
parafraseando Camões e adaptando a sua ideia, «o rei fraco convém à fraca
gente», isto é, a tolerância da sociedade perante a corrupção ocorre porque a
própria sociedade beneficia dessa aceitação dos comportamentos pouco
verdadeiros e honestos.
Paulo Morais, vice-presidente da associação acima
referida contava, há tempos, numa conferência promovida em Aveiro, pelo Iscra,
que, em Itália, só foi possível o combate eficaz contra a Máfia quando a
sociedade deu sinais de que se tinha tornado intolerante perante as práticas
mafiosas.
Só quando, como o Papa Francisco reconhece num
artigo escrito em 1991, com o título «Corrupção e pecado», se entender a
gravidade do que representa esta atitude corrupta é que se criarão as condições
para o seu combate e a construção de uma outra sociedade.
«Poderíamos dizer que o pecado se perdoa, mas a
corrupção não pode ser perdoada. Simplesmente porque na base de toda a atitude
corrupta há um cansaço de transcendência: perante o Deus que não se cansa de
perdoar, o corrupto ergue-se como suficiente na expressão da sua saúde:
cansa-se de pedir perdão. (p.27)» É difícil ser mais veemente e acutilante.
Importa perceber que a dureza destas palavras se deve ao facto de a corrupção
gerar em quem participa nela uma atitude de progressiva aceitação e
autojustificação, como diz, mais adiante, o Papa Francisco, no mesmo artigo: «A
corrupção leva a perder o pudor que custodia a verdade, aquilo que torna
possível a veracidade da verdade. O pudor que custodia, além da verdade, a
bondade, a beleza e a unidade do ser. […] Talvez se compreenda melhor com
algumas comparações. Roubar uma carteira a uma senhora é pecado e o ladrão é
levado para a esquadra. A senhora conta o sucedido às suas amigas e todas
concordam em como o mundo está cada vez pior, que as autoridades deveriam tomar
medidas, que já não se pode sair à rua, etc. A senhora em questão, a assaltada
pelo ladrão, não pensa no modo como o seu marido, nos negócios, burla o Estado
não pagando os impostos, como despede os funcionários de três em três meses
para evitar passá-los a contrato sem termo, etc. O marido, e talvez ela também,
faz gala publicamente destas manhas empresariais e comerciais – a isto chamo
desfaçatez pudica.» (pp.39-40)
A
corrupção alimenta-se a si mesma e abomina os incorruptos
O Papa alerta aqui para a facilidade com que o
corrupto, aquele que adotou uma cultura de falta de verdade, se autojustifica e
se considera acima de qualquer suspeita, pretendendo legitimar a sua visão e
prática. O Papa é ainda mais claro, quanto a este aspeto: «Para alguém volátil,
uma pessoa que procura conhecer bem os limites morais e que não os negoceia é
um fundamentalista, um antiquado, um tacanho, uma pessoa que não está à altura
dos tempos. E aqui aparece outro traço típico do corrupto: a maneira como se
justifica.» (p.34) Quem nunca sentiu que a busca de conferir honestidade e
verdade aos negócios esbarrava com a prática instituída de ser desonesto:
«todos fazem assim!» é a frase mais ouvida.
É bom constatar que a desonestidade dos que
desempenham funções públicas seria rapidamente denunciada e repreendida se os
cidadãos assumissem esta como uma causa sua.
Enquanto, porém, aos cidadãos convier a
desonestidade e a mentira, dificilmente as leis serão eficazes, no combate a
esta chaga que corrói a sociedade e mina a confiança no Estado. Ilustra bem
quão difundida está esta falta de verdade uma pequena história, infelizmente
semelhante a outra ocorrida em Portugal, bem recentemente. Esta história é
contada por Steven Levitt e Stephen Dubner, em «Freakonomics, o estranho mundo
da economia»: «em 1987, num dia de Primavera, à meia-noite, sete milhões de
crianças americanas desapareceram de repente. A pior onda de raptos da
história? Não. Foi na noite de 15 de abril, e os serviços de finanças acabavam
de mudar uma norma. Em vez de muito simplesmente declarar o número de filhos
dependentes, passou a ser exigido aos contribuintes que dessem o número de
Segurança Social de cada filho. Dum momento para o outro, sete milhões de
crianças – crianças que só tinham existido como deduções fantasmas nos antigos
impressos de declaração de rendimentos – desapareceram, representando dez por
cento de todas as crianças dependentes nos Estados Unidos.» Recentemente, em
Portugal, quando se impôs a obrigatoriedade de registar os filhos nos vários
serviços do Estado, recorrendo ao número de contribuinte, também então
«desapareceram» algumas centenas de crianças. Desapareceram porque nunca
existiram. Apenas na mentira dos seus inventores.
Como
combatê-la?
Uma cultura deste teor, em que cada um quer crescer
a qualquer custo, em que ser político é oportunidade para se servir e não uma
missão de serviço, em que a verdade não é condimento pressuposto das relações
económicas, sociais, é uma cultura corrupta, em que as detenções de uns quantos
são sempre apenas a ponta do iceberg.
O segredo passará, assim, por cada cidadão escolher
estar do lado da verdade, por um lado, mas também, por criar mecanismos que
protejam os que pretendem ser honestos. Concretizo esta alusão, com recurso a
duas sugestões que venho preconizando, desde há algum tempo:
- criarem-se mecanismos de anonimato, nas
instâncias em que são aprovados projetos que envolvem dinheiros públicos. Para
ser mais claro. A sugestão que aqui formulo toma por referência o que ocorre
nos exames nacionais do ensino básico e secundário. Ao exame de cada aluno é
atribuído, por uma equipa independente, um código que permite ocultar a
identidade do autor do exame. A partir desta fase, mais ninguém sabe a quem
pertence o referido exame, sendo, por isso, corrigido sem que se saiba a quem
pertence. Só no final de todo o processo, já com classificação atribuída, é que
a folha de identificação e o código são cruzados, de modo a saber-se a quem
pertence. Nas autarquias, nos ministérios ou em outras instâncias em que se
decide a quem atribuir determinada obra de avultado valor, poderia praticar-se
um modelo semelhante. A possibilidade de corrupção diminuiria
consideravelmente.
- criar-se uma instância independente da assembleia
da República que legisle sobre matérias que concernem aos legisladores e aos
políticos. Sabendo-se, como refere Paulo Morais, em diversas intervenções e no
seu livro «da corrupção à crise», da promiscuidade entre a assembleia da
república e os interesses económicos, só separando, efetivamente, os poderes,
sendo coerente com este princípio que já nos vem desde Montesquieu e está
chancelado pela Constituição, é que se poderá efetivar um combate bem-sucedido
a este fenómeno tão enraizado.
Mas, acima de tudo, é necessário que se deseje,
efetivamente, que este combate seja travado e que tudo não fique por discursos
periódicos, surgidos à medida da emergência das notícias.
Para que seja o rei forte a tornar forte a fraca
gente e não o rei fraco a convir à fraca gente.