Começo o artigo desta edição com uma homenagem devida àquela que muitos designam como a «pequena imprensa», a imprensa regional, recebida na simplicidade dos lares portugueses e daqueles que, pelo mundo fora, levam a língua de Camões aos mais recônditos recantos da Terra. Esta homenagem nasce de uma constatação. À dita «pequena imprensa» se tem devido a coragem de romper as agendas em que se oculta a dita «grande imprensa». Na verdade, as agendas dessa dita «grande imprensa» nem sempre coincidem com o sentir mais genuíno e autêntico do povo português. Sob a capa da liberdade, que, quanto mais certa menos autêntica, essa mesma «grande imprensa» cumpre os desideratos de quem se esconde, veiculando valores e convicções que se vão consolidando, ao arrepio do real quadro moral dos seus leitores, embalando-os num discurso que, quando despertam, já não conseguem repudiar por se sentirem isolados.
Foi a grande imprensa que fez os referendos do
aborto, em 1998 e 2007; foi a dita «grande imprensa» que legitimou, sob a capa
de defender direitos humanos, a legalização de modelos de casamento pretendendo
equiparar o que não era comparável; será a «grande» imprensa que, um dia,
legalizará a prostituição ou envolverá o Estado nos negócios da maternidade e
paternidade de substituição, para tal bastando-lhe procurar os veículos para
legitimar o que a sensibilidade ética denunciaria como ilegítimo… Mas é,
também, a grande imprensa que oculta as notícias quando elas não confirmam as
suas agendas. Nessa hora, cabe à «pequena imprensa» desvendar, com parcas
armas, as sombras deixadas pelo gigante.
Vem isto a propósito de dois acórdãos do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos que a grande imprensa se encarregou de abafar e
fazer de conta que não tinham existido.
Após ter-se combatido, durante cerca de uma década
(entre 1998 e 2007), a dura luta da defesa da vida humana no ventre materno,
perdida para os que entendiam que a vida humana só é inviolável às vezes, e que
se escudavam no pretexto de que abortar pudesse ser um direito humano, o
Tribunal Europeu dos Direitos humanos deliberou, sem possibilidade de recurso,
em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é
um direito humano e, por isso, é legítimo que os Estados o penalizem.
No mesmo sentido, mas agora sobre matéria de
candência mais recente, o mesmo tribunal veio, em 9 de junho de 2016, afirmar,
inequivocamente, que a convenção europeia dos direitos do Homem não reconhece
que o casamento homossexual seja um direito humano e, por isso, não obriga nenhum
Estado a abrir o direito ao casamento a um casal homossexual. É, ainda, mais
interessante esta decisão porque confirma anteriores decisões no mesmo sentido,
de 24 de junho de 2010, de 16 de julho de 2014 e de 21 de julho de 2015, sendo
que a deliberação de junho passado, reconhecida como definitiva em 9 de
setembro, teve a aprovação dos 47 juízes que compõem a Câmara que assumiu tal
posição. Para algum leitor mais curioso, deixo aqui o link para que possa
confirmar a verdade destas afirmações: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-163436
Após ler estas linhas, estou seguro de que qualquer
leitor se sentirá, no mínimo, defraudado com a dita «grande imprensa» por
verificar que alguém não anda a contar toda a verdade. A pergunta que se impõe
terá de ser: «a quem serve esta ocultação da verdade?», seguida de uma outra
interrogação não menos inquietante: «como deixámos que nos tomassem por
ingénuos?». Na verdade, a estratégia da retórica da «grande imprensa» é sempre
a mesma: conduzir à convicção de que as mudanças são imparáveis e que, afinal,
só uns quantos irredutíveis é que ainda não mudaram. E, como não há tempo para
pensar e não se quer ficar do lado dos ultrapassados, somos levados na vertigem
de ir para algum lado, nem que não se saiba bem para onde. Se é certo que, em
matéria de turismo, esta até pode ser uma atitude interessante, em matéria
moral e ética, este experimentalismo comporta consequências nefastas. Que o
digam os mais de 17 mil abortados que não puderam, em cada ano, depois de 2007,
ver a luz do dia. Que o digam os mais jovens de entre nós, para quem ser
família é, hoje, uma realidade difusa, raramente marcada pela estabilidade e
pelo respeito pela diferença. Alguns interrogam-se sobre como pudemos ter uma
das mais baixas taxas de natalidade do mundo. E procuram nas razões económicas
o seu fundamento. Julgo que erram no alvo. O motivo mais profundo está num
progressivo corroer do que significa realizar-se na diferença e no respeito
pelo outro, anterior à convicção egoísta de que o outro terá é de me respeitar
a mim. Descentrámo-nos dos outros e concentrámo-nos em nós e isso não pode dar
bom resultado. Como diz, com graça, um amigo de longas discussões: quando se
redigiu a «declaração universal dos direitos humanos» alguém se esqueceu de lhe
associar a «declaração universal dos deveres humanos». É que o centro deve
estar nesta reciprocidade de aceitar que não nos realizamos sem os outros e que
é no encontro com os outros que nos fazemos mais humanos. De outro modo, a
nossa liberdade acaba nos outros em vez de se realizar com os outros. E esse
tem sido o erro em que nos temos vindo a afundar. Urge uma nova agenda da
«grande imprensa» que não sirva interesses de secretos e ocultos desejos, mas
seja autêntico serviço em prol de uma sociedade da diferença e do respeito. Uma
sociedade em que as discussões sobre o que importa não se façam sobre a espuma
das ondas momentâneas, mas com tempo e capacidade de distinguir para não
confundir.