As palavras deste texto, apesar de postas por
escrito, não saíram sem que tivesse de me recompor diversas vezes. Elas saem-me
do fundo da alma. Parei muitas vezes para as escrever. As lágrimas tomam-me e embargam-me
a escrita, por ainda me ser difícil encontrar consolo. Vale-me a esperança de
que, no hoje da eternidade, a bondade do D. António Francisco vela por nós
junto de Deus-Amor.
D. António Francisco criou, em cada um dos que com
que ele se cruzaram, a certeza de haver alguém que era, no agora da história,
presença do Amor, sinal de que se era amado de modo singular. A todos espantava
a importância com que ouvia o que se lhe dizia, o afeto com que olhava e,
sempre, a surpresa de verificar que, muito tempo decorrido desde o primeiro
encontro, sabia tudo o que lhe tínhamos contado.
Um dia, após uma conferência aos professores de
EMRC, no Porto, e depois de dezenas de encontros onde todas as pessoas tinham
um nome e uma vida que o senhor dom António tinha como sua e parecia conhecer
com detalhes de quem está atento a todos como seus muito chegados, não resisti
a dizer-lhe, em tom de graça: ‘um dia, escreverão sobre si: «à incrível memória
do sr. D. António Francisco»’.
Uma fecunda memória que uma das suas histórias de
vida ilustra na perfeição. Quando, na década de 70, se fazia uma história da
diocese de Lamego, o autor ter-se-á socorrido da sua ímpar capacidade de
memorizar e, convidando-o para percorrer as sepulturas do cemitério da cidade,
guardar recordação dos conteúdos das lápides das figuras a referir no livro. Ao
chegarem ao Seminário, o autor ter-lhe-á dito: ‘agora, António, diz-me que
datas estavam nas lápides’.
Esta é uma história cujos contornos não consigo
precisar com mais detalhe, mas que me foi contada por ocasião da referida
conferência, em 17 de setembro de 2016, há precisamente um ano. Se corresponde,
em absoluto, ao ocorrido, não consigo estar certo, mas ninguém duvidará de que
nunca esquecia uma pessoa, a família a que pertencia, o sítio onde vivia, o
drama em que se via ou estivera envolvida. Como quando visitou Fermelã, em
2007. Nessa ocasião, soube da morte de um colaborador paroquial, cuja filha se
encontrava no final da gravidez. Para surpresa de todos, deslocou-se a casa
destes para confortar e dar esperança. Anos mais tarde, ao reencontrar aquela
mãe, logo a reconheceu assim como a sua bebé, recordando, com clareza, o
contexto em que se tinham encontrado, pela primeira vez. Este reencontro ficou
perpetuado em fotografia ainda hoje guardada com carinho por aquela família.
A surpresa e o espanto de se saber que aquele homem
sempre atento e cuidadoso, verdadeiro pastor com «o odor das suas ovelhas», acolhia
no seu coração cada palavra e dor transmitidas deixavam a certeza de que o
eterno se tornava presente no efémero.
Espantou-me, sempre, saber que toda esta dedicação
era a de alguém que sabe que o tempo é finito e que, por isso, o esticava até
que ele se tornasse eterno. Mas não era a dedicação de quem pretende, com ela,
encontrar justificação para não agir. Dom António Francisco foi, também, um
homem de ação muito eficaz, sensata e inteligente.
Quanta dívida têm para com ele os diocesanos de
Aveiro que, em 2013, assistiram ao vento de mudança e renovação que foi a
missão jubilar! Os diocesanos de Aveiro terão sentido comoção ao ver as
palavras que foram recolhidas na pagela oferecida nas exéquias de Dom António
Francisco, reproduzindo a homilia feita na peregrinação da Diocese do Porto a
Fátima, no dia 9 de setembro, dois dias antes da sua morte: «Igreja do Porto:
vive esta hora!».
Aveiro era diocese amada como o foram, seguramente,
também a do Porto e a de Braga. O coração do Dom António não se dividia:
dilatava-se para todos caberem. A sua própria morte é símbolo da sua vida. Quem
tanto amou, foi pelo coração que chegou à eternidade!
Muitos outros poderão atestar esta ação eficaz do
Dom António Francisco. Que o digam, também, os professores de EMRC que nele encontraram
um dedicado membro da comissão episcopal da educação cristã que conseguiu
negociar alterações legislativas que contribuíram para um reforço da
credibilidade da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica, junto dos
que pretendiam fazer dela uma disciplina menor. D. António Francisco foi,
sempre, neste domínio, um insistente defensor de que os professores de EMRC
deveriam exigir de si mesmos o melhor. Ouvi-lhe, diversas vezes, comentar, com
delicadeza, que determinados amadorismos na atuação eram de evitar e não poderiam
continuar a alimentar-se. Os alunos (que tanto amava; via-se, no brilho com que
falava do seu tempo de professor!) mereciam o melhor.
Confirma-o, também, o impulso que conferiu aos
processos de canonização da venerável Sílvia Cardoso Ferreira da Silva e do
Bispo D. António Barroso.
A sua vida foi dedicação e amor. Um profundo amor a
Deus, de quem falava com o coração, de forma simples, autêntica, sem
artificialismos. Deus era o seu respirar. E dessa fonte brotava todo o sentido
das suas decisões.
Tinha sempre tempo para dar. Sempre!
Não esquecerei que, por ocasião da operação da
minha filha, em 2015, em pleno período pascal, passados os dias mais
absorventes, o senhor D. António telefonou, dizendo-me que estava a sair do
Paço Episcopal para nos visitar no Hospital de S. João. A convalescença tinha
sido rápida e estávamos, precisamente, a regressar a casa. Ficou feliz com a
notícia do regresso e disse-me que nos tinha tido presentes, de modo especial,
naquela Páscoa. Também nós tínhamos vivido um calvário de que, agora, se
vislumbravam os sinais da Páscoa da Esperança.
Foi o primeiro a compreender o total alcance de
termos escolhido o nome de «Maria Marta». Quando lho dissemos, os seus olhos
brilharam e repetiu: «Maria»… «Marta»… A contemplação e a ação! Conseguia ver
para além do que para outros não passava de curiosidade. Por ocasião do dia de
Santa Marta, enviava mensagem, lembrando a nossa filha e perguntando como
estava a menina, associando, sempre, um abraço ao João. Sabia o nome de ambos e
tinha-os como seus muito queridos.
Não o fazia por um qualquer privilégio nosso. Fazia
assim com todos os que lhe tinham manifestado algum sinal de dor e sofrimento. Compadecia-se
de imediato e fazia sua a dor do outro. Os que me leem e o conheceram saberão
que são palavras autênticas. O dom António Francisco sabia que, por si, Deus
agia na história dos que com ele se cruzavam. Um legado que cabe honrar a todos
os que fomos brindados com a ventura de fazer parte de algum tempo do seu tempo
eterno.
O amor com
que se nos dedicou, Dom António Francisco, é o amor que por si temos, certos de
que, na eternidade do regaço de Deus, escutará com o sentir da alma a verdade
do que lhe dizemos.