domingo, agosto 05, 2018

Pode a sexualidade escapar à educação?

(Artigo publicado no jornal Terras do Vouga. Uma versão mais cuidada será publicada na revista Brotéria)

Confesso que escrevo estas linhas não sem algum receio. Na verdade, uma certa linha dominante foi gerando uma espécie de censura coletiva que vai criando inibição e medos quando se trata de discutir a matéria que me proponho abordar. Estou convencido de que tal censura tem origem em preconceitos (pré-conceitos) e curtos-circuitos que, neste tempo sem tempo, não há contexto para consciencializar. Pelo que o melhor é não pensar no assunto e dá-lo como certo.
O curto-circuito e pré-conceito a que me refiro diz respeito à (ainda possível?) análise crítica sobre as orientações sexuais que se vão somando, dia após dia, à propalada causa LGBTI.
E importa, por isso, quebrar, à partida, esse curto-circuito. Invoco, desde já, situar-me num registo de compreensão em que a dignidade da pessoa humana faz dela um ser inviolável. De tal pressuposto decorre que nada (circunstância alguma) legitima a violência sobre outrem.
Daqui não resulta, porém, a afirmação de que, então, todo o comportamento é aceitável em nome da aceitação da pessoa e da sua dignidade. Como costumo sintetizar: «como cristão, tenho o dever de acolher toda a pessoa, ainda que não o de aceitar todas as ideias». Não há, nesta afirmação, nem relativização da inviolabilidade da pessoa, nem posição fundamentalista, antes proteção contra o relativismo. E esse é o problema do nosso tempo. Em nome da tolerância para com a pessoa (no cristianismo, é muito mais do que tolerância: é acolhimento e compaixão, enquanto «sofrimento com o outro»!), cai-se no relativismo em relação aos comportamentos e opiniões. É o tal curto-circuito! Que fique claro: a defesa da pessoa não redunda em relativismo; a defesa dos princípios morais e éticos não redunda em legitimação da violência contra os que não correspondem aos modelos.
Em muitos casos, aquele é um curto-circuito que parece colher entre os próprios cristãos. Como se essa fosse a atitude de Jesus Cristo. Mas a inteligência do Mestre era maior do que a que pretende esse mesmo curto-circuito.
Por exemplo, na cena evangélica em que Jesus acolhe a mulher adúltera (Jo 8, 1-11) o acolhimento da pessoa não significa a legitimação do comportamento.
Jesus diz «quem te condenou? Eu também não te condeno», mas também «vai e não voltes a pecar». A pessoa é acolhida, mas o comportamento é criticado.
Este passo evangélico supera o curto-circuito. Mas o nosso tempo quer restabelecer o curto-circuito.
Mobilizemos, agora, o nosso olhar, transferindo-o desta reflexão mais geral para o âmbito da educação.
É estranho que, num tempo tão sensível a todas as causas - ambiental, animal, de civismo rodoviário, etc. - em que é claro que há modelos a propor, comportamentos a apresentar como modelo e linhas vermelhas a não transpor, se exclua do trabalho de educar o âmbito da sexualidade. Como se este fosse o único âmbito em que educar não passasse por apresentar modelos, evidenciar propostas de condutas, mas apenas fosse legitimar comportamentos. Mas esta é, de facto, a questão fundamental. O que é, afinal, educar? E a sexualidade está fora da educação?
Saberíamos falar se não nos ensinassem? Saberíamos fazer contas, saberíamos pintar, saberíamos adotar comportamentos de honestidade e de justiça se não nos educassem? Teríamos, aliás, alguma vez consciência de nós mesmos se não fosse por efeito da ação dos outros em nós?
Então, mas a sexualidade fica fora desta tarefa educativa? No caso dela, não há tarefa em que os outros possam apontar-nos modelos e rumos? Será o único âmbito em que só resta legitimar o que a vontade pretende?
É, aliás, estranho que se designe a educação da sexualidade como «educação para a sexualidade». Confesso que não entendo esta formulação. ‘Educação para a sexualidade’?
A sexualidade é um valor ou uma realidade de que se parte? Não somos, afinal, todos sexuados? Ou será, exatamente, essa a intenção? Gerar a ideia de que a sexualidade não é condição é, apenas, uma construção?
Pois não sou dos que fazem esta segunda leitura. A sexualidade é, numa perspetiva de antropologia personalista, uma realidade prévia em que todos nos situamos. Ela é uma força que nos afeta em tudo o que somos. E, precisamente, por isso, é preciso educá-la. Faz sentido, assim, falar de ‘educação da sexualidade’. Quando a sexualidade não é educada, mobilizada por valores de respeito e abertura ao outro, diverso e diferente de nós, torna-se uma força violenta. Tal como tantas outras forças que nos constroem como pessoas: se não as educarmos, tornam-se descontroladas.
Ora, penso ser esse o trabalho da educação: sublimar o que nos degradaria. E, por isso, faz sentido falar de «educação da sexualidade» e não de «educação para a sexualidade».
Mas vamos mais longe.
O documento «Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória» que considero muito interessante, mobilizador e com uma visão que respira a grandeza de alguns dos grandes mestres da educação em Portugal (destaco o Professor Guilherme d’Oliveira Martins e o Doutor Joaquim de Azevedo) refere que uma das áreas de competência a desenvolver, em cada aluno, é a da «consciência e domínio do corpo», detalhando que se espera que os alunos sejam capazes de «ter consciência de si próprios a nível emocional, cognitivo, psicossocial, estético e moral por forma a estabelecer consigo próprios e com os outros uma relação harmoniosa e salutar.»
À luz desta formulação, não pode deixar de se concluir que sairão goradas as tentativas de alguns defensores da ideologia de género que se propõem fazer chegar às escolas uma visão neutral sobre a transexualidade e a assexualidade. Na verdade, quer a transexualidade, quer a assexualidade são abordagens não «harmoniosas» para consigo mesmo. Como poderão ser propostas em igualdade de circunstâncias com uma abordagem da sexualidade como força que une a totalidade do que somos em abertura ao outro que nos completa? Mais, ainda. Não será a aceitação da ideia de que alguém se sente «um homem num corpo de mulher ou uma mulher num corpo de homem» a aceitação de um platonismo antropológico muito pouco compaginável com a visão sistémica da identidade pessoal que une corpo, alma e espírito numa unidade indissolúvel? Quando nos serve, unimos; quando nos convém, já subscrevemos outra conceção antropológica. E o que fica para o educador? A mera tolerância vazia e neutra? Até tolerarmos o intolerável… O respeito pela pessoa e pela sua integridade pode exigir que se interpele à compreensão de que não há existência sem ser numa realidade concreta, corpórea e finita. Cada um não é só o seu pensamento, mas todo o nó de relações que a corporeidade realiza e opera; de outro modo, estaremos a percorrer âmbitos muito próximos do gnosticismo, que reduzia o humano à sua alma. Estaremos, de novo, aí?

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