(Artigo publicado no jornal Terras do Vouga. Uma versão mais cuidada será publicada na revista Brotéria)
Confesso que escrevo estas linhas não sem algum
receio. Na verdade, uma certa linha dominante foi gerando uma espécie de
censura coletiva que vai criando inibição e medos quando se trata de discutir a
matéria que me proponho abordar. Estou convencido de que tal censura tem origem
em preconceitos (pré-conceitos) e curtos-circuitos que, neste tempo sem tempo,
não há contexto para consciencializar. Pelo que o melhor é não pensar no
assunto e dá-lo como certo.
O curto-circuito e pré-conceito a que me refiro diz
respeito à (ainda possível?) análise crítica sobre as orientações sexuais que
se vão somando, dia após dia, à propalada causa LGBTI.
E importa, por isso, quebrar, à partida, esse
curto-circuito. Invoco, desde já, situar-me num registo de compreensão em que a
dignidade da pessoa humana faz dela um ser inviolável. De tal pressuposto
decorre que nada (circunstância alguma) legitima a violência sobre outrem.
Daqui não resulta, porém, a afirmação de que,
então, todo o comportamento é aceitável em nome da aceitação da pessoa e da sua
dignidade. Como costumo sintetizar: «como cristão, tenho o dever de acolher
toda a pessoa, ainda que não o de aceitar todas as ideias». Não há, nesta
afirmação, nem relativização da inviolabilidade da pessoa, nem posição
fundamentalista, antes proteção contra o relativismo. E esse é o problema do
nosso tempo. Em nome da tolerância para com a pessoa (no cristianismo, é muito
mais do que tolerância: é acolhimento e compaixão, enquanto «sofrimento com o
outro»!), cai-se no relativismo em relação aos comportamentos e opiniões. É o
tal curto-circuito! Que fique claro: a defesa da pessoa não redunda em
relativismo; a defesa dos princípios morais e éticos não redunda em legitimação
da violência contra os que não correspondem aos modelos.
Em muitos casos, aquele é um curto-circuito que
parece colher entre os próprios cristãos. Como se essa fosse a atitude de Jesus
Cristo. Mas a inteligência do Mestre era maior do que a que pretende esse mesmo
curto-circuito.
Por exemplo, na cena evangélica em que Jesus acolhe
a mulher adúltera (Jo 8, 1-11) o acolhimento da pessoa não significa a
legitimação do comportamento.
Jesus diz «quem te condenou? Eu também não te
condeno», mas também «vai e não voltes a pecar». A pessoa é acolhida, mas o
comportamento é criticado.
Este passo evangélico supera o curto-circuito. Mas
o nosso tempo quer restabelecer o curto-circuito.
Mobilizemos, agora, o nosso olhar, transferindo-o
desta reflexão mais geral para o âmbito da educação.
É estranho que, num tempo tão sensível a todas as
causas - ambiental, animal, de civismo rodoviário, etc. - em que é claro que há
modelos a propor, comportamentos a apresentar como modelo e linhas vermelhas a
não transpor, se exclua do trabalho de educar o âmbito da sexualidade. Como se
este fosse o único âmbito em que educar não passasse por apresentar modelos,
evidenciar propostas de condutas, mas apenas fosse legitimar comportamentos.
Mas esta é, de facto, a questão fundamental. O que é, afinal, educar? E a
sexualidade está fora da educação?
Saberíamos falar se não nos ensinassem? Saberíamos
fazer contas, saberíamos pintar, saberíamos adotar comportamentos de
honestidade e de justiça se não nos educassem? Teríamos, aliás, alguma vez
consciência de nós mesmos se não fosse por efeito da ação dos outros em nós?
Então, mas a sexualidade fica fora desta tarefa
educativa? No caso dela, não há tarefa em que os outros possam apontar-nos
modelos e rumos? Será o único âmbito em que só resta legitimar o que a vontade
pretende?
É, aliás, estranho que se designe a educação da
sexualidade como «educação para a sexualidade». Confesso que não entendo esta
formulação. ‘Educação para a sexualidade’?
A sexualidade é um valor ou uma realidade de que se
parte? Não somos, afinal, todos sexuados? Ou será, exatamente, essa a intenção?
Gerar a ideia de que a sexualidade não é condição é, apenas, uma construção?
Pois não sou dos que fazem esta segunda leitura. A
sexualidade é, numa perspetiva de antropologia personalista, uma realidade
prévia em que todos nos situamos. Ela é uma força que nos afeta em tudo o que
somos. E, precisamente, por isso, é preciso educá-la. Faz sentido, assim, falar
de ‘educação da sexualidade’. Quando a sexualidade não é educada, mobilizada
por valores de respeito e abertura ao outro, diverso e diferente de nós,
torna-se uma força violenta. Tal como tantas outras forças que nos constroem
como pessoas: se não as educarmos, tornam-se descontroladas.
Ora, penso ser esse o trabalho da educação:
sublimar o que nos degradaria. E, por isso, faz sentido falar de «educação da
sexualidade» e não de «educação para a sexualidade».
Mas vamos mais longe.
O
documento «Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória» que considero
muito interessante, mobilizador e com uma visão que respira a grandeza de
alguns dos grandes mestres da educação em Portugal (destaco o Professor
Guilherme d’Oliveira Martins e o Doutor Joaquim de Azevedo) refere que uma das
áreas de competência a desenvolver, em cada aluno, é a da «consciência e
domínio do corpo», detalhando que se espera que os alunos sejam capazes de «ter
consciência de si próprios a nível emocional, cognitivo, psicossocial, estético
e moral por forma a estabelecer consigo próprios e com os outros uma relação
harmoniosa e salutar.»
À
luz desta formulação, não pode deixar de se concluir que sairão goradas as
tentativas de alguns defensores da ideologia de género que se propõem fazer
chegar às escolas uma visão neutral sobre a transexualidade e a assexualidade.
Na verdade, quer a transexualidade, quer a assexualidade são abordagens não
«harmoniosas» para consigo mesmo. Como poderão ser propostas em igualdade de
circunstâncias com uma abordagem da sexualidade como força que une a totalidade
do que somos em abertura ao outro que nos completa? Mais, ainda. Não será a
aceitação da ideia de que alguém se sente «um homem num corpo de mulher ou uma
mulher num corpo de homem» a aceitação de um platonismo antropológico muito
pouco compaginável com a visão sistémica da identidade pessoal que une corpo,
alma e espírito numa unidade indissolúvel? Quando nos serve, unimos; quando nos
convém, já subscrevemos outra conceção antropológica. E o que fica para o
educador? A mera tolerância vazia e neutra? Até tolerarmos o intolerável… O
respeito pela pessoa e pela sua integridade pode exigir que se interpele à
compreensão de que não há existência sem ser numa realidade concreta, corpórea
e finita. Cada um não é só o seu pensamento, mas todo o nó de relações que a
corporeidade realiza e opera; de outro modo, estaremos a percorrer âmbitos
muito próximos do gnosticismo, que reduzia o humano à sua alma. Estaremos, de
novo, aí?