A liberdade é condição que decorre da racionalidade
humana e não, primeiramente, da vontade, sendo, por isso, muito mais uma
matéria de inteligência do que do desejo. Uma certa linha de pensamento
contemporâneo tem, porém, invertido esta constatação, estando tal inversão a
chegar, de forma paulatina, ao direito e à educação. Na verdade, ao longo dos
últimos dois milénios e meio, educar sempre foi o esforço por conduzir o
indivíduo à submissão da vontade aos ditames da razão, da inteligência. Os
esforços dos iluministas faziam crer, também, que essa dinâmica saísse
confirmada, mas a exaltação do indivíduo a que se associou o esforço iluminista
fez prevalecer o desejo do indivíduo sobre a exaltação da razão e, nesta prevalência,
poderá encontrar-se o motivo de um erro que é urgente corrigir.
A inversão que, como acima se apontava, fez
deslocar a noção de liberdade de uma matéria da razão para uma matéria da
vontade está a manifestar-se, nas últimas décadas, no âmbito do direito como
uma confusão entre o que se deseja e aquilo a que, de facto, se tem direito.
Por absurdo, pode ilustrar-se esta verificação afirmando que não é por desejar
muito um bem de alguém que determinado indivíduo se constitui como proprietário
desse mesmo bem. Mas este curto-circuito está a acontecer, em muitos assuntos
de direito e de política. «Desejar» parece significar «ter direito».
Também no âmbito da educação esta inversão está a
ter os seus custos. Os desejos da vontade nunca foram o ponto de referência
para educar, desde que os pedagogos gregos se propuseram a «educação da
criança» à luz do «logos» e na busca da verdade. Pelo contrário, moldar a
vontade à luz da iluminação da inteligência era, sim, o horizonte que definia a
ação educativa.
Muito longe se está destas referências quando se
preconiza, para a novíssima disciplina de cidadania e desenvolvimento, a
desistência perante a preocupação em moldar a vontade à verdade sobre a
condição humana, atendendo ao que a inteligência evidencia sobre a importância
da corporeidade para a definição da identidade pessoal e a substitui por uma
ideologia que defende que é a vontade e o desejo o que define o significado da
corporeidade.
Denota esta deslocação de conceção a definição que
é proposta em guiões disponibilizados para a educação pré-escolar: «O termo
sexo é usado para distinguir os indivíduos com base na sua pertença a uma das
categorias biológicas: sexo feminino e sexo masculino. O termo género é usado
para descrever inferências e significações atribuídas aos indivíduos a partir
do conhecimento da sua categoria sexual de pertença. Trata-se, neste caso, da
construção de categorias sociais decorrentes das diferenças anatómicas e
fisiológicas.» (Guiões de Educação Género e Cidadania – pré-escolar – in
http://www.dge.mec.pt)
E explicam os mesmos guiões que «assim, o termo
sexo pertence ao domínio da biologia e o conceito de género inscreve-se no
domínio da cultura e remete para a construção de significados sociais.»
Só por si, tal enunciação parece inócua, o que se
desvanece quando verificamos que um dos domínios que se pretende obrigatório em
todos os ciclos é a ‘igualdade de género’ que, pela definição, percebemos que
já não é a discussão sobre a desigualdade de oportunidades entre o sexo
masculino e o feminino, mas uma outra coisa que só uma leitura minuciosa fará
perceber. Sob a capa de ‘igualdade de género’ oculta-se
a igualdade entre ‘todos os géneros’.
Soma-se a este aspeto de ordem programática um
outro que concerne às temáticas a abordar na referida disciplina.
Como se explica, no documento de estratégia
nacional de educação para a cidadania, «os diferentes domínios da Educação para
a Cidadania estão organizados em três grupos com implicações diferenciadas: o
primeiro, obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade (porque se
trata de áreas transversais e longitudinais), o segundo, pelo menos em dois
ciclos do ensino básico, o terceiro com aplicação opcional em qualquer ano de
escolaridade.»
Entre os temas considerados obrigatórios em, pelo
menos, dois ciclos do ensino básico, está «Sexualidade (diversidade, direitos,
saúde sexual e reprodutiva)».
Não se propõe, já, uma discussão sobre o que será a
sexualidade e que lugar é que ela pode desempenhar, na realização humana (o que
obrigaria a um envolvimento ativo dos pais e encarregados de educação e a uma
definição precisa da matriz antropológica em que tal deveria enquadrar-se,
necessariamente e por respeito ao direito constitucional dos pais à escolha do
modelo educativo para os filhos), mas preconiza-se, apenas, uma problematização
de ordem fenomenológica que facilmente redundará na pura legitimação dos
comportamentos. O papel de moldagem da vontade à inteligência está,
notoriamente, ausente, presumindo-se, aliás, a ideia de que o que a vontade
individual desejar, nesta matéria, deverá ser reconhecido como direito a
descrever e subscrever.
A surpresa manifestada por alguns a propósito de um
inquérito realizado em escola do Porto em que se interrogavam alunos do segundo
ciclo sobre se se sentiam atraídos por homens, por mulheres ou por ambos, não
poderá, de modo algum, nascer do conhecimento do que se preconiza para a
disciplina em cujo contexto se realizou. Atendendo a que se obriga a abordagem da
temática em, pelo menos, dois ciclos do ensino básico, e ao facto de aquele
inquérito se ter aplicado no segundo ciclo, só restará supor que se defende que
a proposta recaísse em turmas dos ciclos restantes, a saber, do terceiro e do
primeiro ciclos (!), cabendo, ainda, perguntar como é que o Ministério da
Educação pensaria que se poderia concretizar aquilo que o mesmo pede que se
faça.
Mas a pergunta mais profunda que deverá colocar-se,
perante a gravidade do problema, terá mesmo de ser: o que se pretende com a
educação? O que é, afinal, educar? Legitimar os comportamentos existentes ou,
ainda, desenvolver atitude crítica sobre o comportamento humano, procurando
adequá-lo ao que a razão ilumina? Ou já deixaram as escolas de ser lugar da
razão e inteligência, não passando de redutos em que se somam vontades
aleatórias, egocêntricas e impossíveis de moldar? Que liberdade pretende
defender-se na educação: um puro voluntarismo (arbitrário e solipsista) ou
liberdade verdadeiramente humana, entendida como a possibilidade de escolher o
que a razão evidencia como melhor?