A Europa vive em crise. A Europa está doente. Ninguém
duvida. Ninguém sequer o esconde. E melhor será que assim seja. Nada há pior
para a cura de uma doença do que fazer de conta que não se é padecente.
Reconhecer a condição é o primeiro passo para adotar um adequado tratamento.
Mas não é, ainda, condição suficiente para a cura.
E o problema da Europa tem residido, precisamente,
nas opções por que tem enveredado para encontrar a cura.
Há um mito, neste continente, estranho a todos os
demais continentes. A ideia de que para se poder conviver é exigível o fim das
identidades. A ideia de que a tolerância e o respeito significam sumir a
identidade, como se esta ofendesse só pelo facto de ser, de existir e de se
expressar.
Paradoxalmente, porém, não e preciso fazer grande
reflexão para concluir que o contrário é que é válido!
Como poderá haver diálogo e encontro se não houver
identidades distintas que possam encontrar-se e partilhar visões diferentes?
E este tem sido o ‘mito fundador’ de um certo modo
de construir a Europa, nas últimas décadas. A Europa parece estar a
construir-se como uma espécie de novo Rio Letes, rio onde não há memória e onde
tudo é esquecido.
É bom recordar que, segundo a mitologia grega, o
lugar desse rio Letes era o Hades, o mundo inferior, o lugar onde não há
memória. E não será de somenos importância acrescentar, ainda, que um dos
termos com o qual os gregos designavam a ‘verdade’ era a palavra ‘alêtheia’, a
qual, muito curiosamente, queria dizer ‘ não-esquecimento’, pois ‘lethos’
significa «esquecimento», sendo ‘a’ um prefixo de negação.
Quererá a Europa ser o lugar da perda da
identidade, o lugar onde a condição para se estar e viver é não se possuir uma
marca identitária? Quererá, por isso, a Europa ser o lugar da ‘não-verdade’, o
lugar da ‘não-identidade’?
Porque tem a Europa medo de si e da sua história?
Não há que esconder que a identidade se construiu
também com erros, violências, imposições, mas esse reconhecimento não deve
adotar-se para gerar vergonha de si mesmo, porque a mesma história fez-se de
perdão e encontros, de caminhos cruzados e partilhados, de misericórdia e
acolhimento, de hospitalidade e reconhecimento.
Os sinais desta tentativa de silenciamento da
identidade europeia já não são de hoje. Atingiram o seu cume aquando da
discussão sobre uma eventual Constituição europeia em que a linha laicista saiu
vencedora. De então para cá, os movimentos que propõem o silenciamento da marca
religiosa, particularmente a cristã, vêm melhorando as suas estratégias,
passando pela omissão pura e simples quando a justiça impunha que se dissesse a
verdade.
Tal está a verificar-se na tentativa de apagar, por
exemplo, a marca cristã associada à tragicamente destruída Catedral de
Notre-Dame, em Paris, propondo-se a transformação do monumento num espaço
inter-religioso e não cristão, mas outros exemplos poderão somar-se.
George Weigel discorre sobre esta perturbante
tentativa de silenciamento do papel da religião, no seu livro «O Cubo e a
Catedral» em que, curiosamente, a catedral referida no título é, precisamente,
a de Notre-Dame. O cubo é um gigante edifício geométrico mandado construir, no
tempo de François Mitterrand, na zona de La Défense, à maneira de um sinal com
poder simbólico com que se pretendia afirmar que a Catedral perdia o seu papel
de mais elevado edifício de Paris…
Veio-me à memória a linha reflexiva de Weigel
quando ouvi, recentemente, uma série de programas, numa emissora de rádio de
impacto nacional, em que se fazia um percurso pela importância da cultura na
construção da identidade de um povo, em que se falava de solidariedade, em que
se afirmava a importância das razões para a mobilização dos povos em torno da
resposta a tragédias, etc… A autora conseguiu realizar toda a sua reflexão sem
reconhecer, em momento algum, a importância das motivações religiosas na
construção de simbologias comuns, na construção da cultura, na fundamentação
das motivações para agir em prol dos outros. O exemplo mais claro evidenciou-se
quando a sua narrativa incidiu sobre a história recente de um polícia francês
que decidiu entregar-se a um sequestrador no lugar de uma mulher feita refém,
tendo acabado por morrer em vez daquela mulher. A história verdadeira mostra
que este polícia se convertera, recentemente, ao cristianismo e nele encontrara
as razões para esta decisão. Mas a autora do programa decidira buscar tal
motivação num vago e incipiente sentido de dever de um cidadão em nome da
República.
Dará alguém a vida por uma vaga ideia, por uma
ideia abstrata?
Por um irmão, sim! E essa convicção só nas
religiões poderá encontrar-se.
Alain de Botton reconhece-o, no seu livro «religião
para ateus», apesar de se afirmar, desde a primeira página, um convicto ateu.
Demonstra, com uma clarividência e honestidade raras que a humanidade nunca
conseguiu, até hoje, encontrar mais sólidos fundamentos para a ação moral, para
a solidariedade, para a construção de identidades culturais, para a
estruturação de consciências estéticas, do que na religião.
Não será descabido, neste contexto, recordar aos
que tantas vezes invocam a cultura grega como se só nela se fundamentasse a
ideia de Europa, as dramáticas palavras de Eurípides, colocadas na boca do deus
Poséidon, no final de as Troianas, na
versão recolhida por Maria da Helena da Rocha Pereira, em artigo de 1997:
«Louco entre os mortais é aquele que arrasar cidades, templos e túmulos,
lugares consagrados dos que já partiram. Quem os devastar, mais tarde há-de
perecer por sua vez.» Na Europa, os que a conduzem não operam esta devastação
através de máquinas de guerra. A omissão e o silenciamento é o novo nome destas
máquinas de guerra. Mas constroem uma civilização sobre o esquecimento e a
‘não-verdade’.
Valerá a pena, por isso, recuperar a pergunta:
Europa, porque tens medo da força da religião?
Porque a religião é suscetível de manipulação? Não haverá que temer esse risco
se a religião se alicerçar na misericórdia e nascer de uma convicção de que
Deus é amor. Mas é esse modo de viver a religião que a Europa mais parece
temer?
Talvez porque o que se pretende é o que se
propuseram os revolucionários de 1789 e os seus sequazes: construir uma
religião do Estado, uma religião que o Estado manipula a seu bel-prazer. É esse
o rumo que se propõe seguir a Europa? Esse será, realmente, o rumo que nos fará
beber das águas do Letes. Mas essas águas não saciam a sede mais profunda que
se oculta no coração humano.