O individualismo é uma ilusão. E como, habitualmente,
grandes ilusões redundam em maiores desilusões, não se espere melhor fim para
esta. Não sem, antes, porém, muitos estragos ter feito pelo caminho.
Esclareçamos o conceito. Deixemo-nos,
para tal, levar pela mão de Roque Cabral, que, na enciclopédia de filosofia, Logos, define ‘individualismo’ como
‘grande variedade de atitudes, doutrinas e teorias […] as quais apresentam a
nota comum da sobrevalorização do indivíduo‘ e acrescenta que se trata de ‘uma
conceção da vida em sociedade [que] resulta de uma inaceitável e mutiladora
conceção do homem como ser associal ou antissocial, anterior à sociedade e
concebível sem ela; a qual, por sua vez, é concebida como pura soma de
indivíduos, sem outra realidade além destes e por eles criada’. (Cfr. Roque Cabral, ‘Individualismo’ in Logos 2, 1408-1409).
As manifestações desta conceção,
desta cosmovisão, são múltiplas, da economia à política, da moral ao lazer,
etc… No próprio dizermo-nos se expressa esta leitura da existência. Quem nunca
ouviu e reproduziu a afirmação de que ‘a minha liberdade termina onde começa a
do outro’, sem, porém, se interrogar sobre o real significado de tal
proposição? Quando seríamos mais livres? Quando o outro estivesse diminuído na
sua ‘liberdade’ e, no limite, quando ele desaparecesse! Nesta afirmação expressa-se
o pensamento do seu criador, Herbert Spencer, um dos preconizadores, durante o
século XIX, do liberalismo clássico, defensor de um ‘ideal [que] convergia para
uma sociedade onde o indivíduo fosse tudo e o Estado nada’ (Acílio da Silva
Estanqueiro Rocha, ‘Herbert
Spencer’ in Logos 4, 1279-1288).
Mas, mais do que denunciador de
um insuperável antagonismo entre indivíduo e Estado, o individualismo expressa
uma visão de que possa conceber-se a existência de cada um de nós sem os
demais.
Aliás, um dos muitos pecados da
afirmação acima recordada está, precisamente, no entendimento de que as
liberdades individuais sejam realidades fechadas sobre si mesmas, concebíveis
em antagonismo com os outros. Nada mais errado!
Nenhum de nós pode conceber-se
sem os outros (pense-se no fenómeno da própria autoconsciência que é impossível
sem o trabalho de a despertar que os outros têm. Nenhuma criança teria, algum
dia, consciência de si mesma sem a ação dos outros humanos. Assim, também, no
âmbito biológico ou económico ou qualquer outro…). Não nos podemos pensar sem a
ação dos outros. O que é, afinal, a cultura senão a partilha do que é cultivado
por uns e outros, que recebemos e transmitimos? Não há liberdades fechadas. Não
se pode conceber a liberdade sem a interpenetração na liberdade dos outros. Ser
livre é realizar-se como humano, é estar em condição de incompletude,
escolhendo, sempre, de entre várias possibilidade em aberto, envolvendo, não
apenas a vontade (um dos outros erros da conceção de liberdade do
individualismo: reduz a liberdade ao voluntarismo, como mera ação da vontade,
do querer…), mas também o afeto e, principalmente, a inteligência. A liberdade
não é, primeiramente, um ato da vontade: é, antes, ato de um ser racional e
intrinsecamente relacional. Não há liberdade onde não houver esta racionalidade
e relacionalidade.
E foi isso que a pandemia da Covid-19 veio demonstrar, cabalmente. Não vivemos sós e podemos ter de decidir
que, pelo nosso bem e pelo bem dos outros, devamos submeter a nossa vontade ao
que lhe impõe a inteligência. E isso é ser livre! Não à maneira individualista,
bem certo, mas numa visão humanista e personalista que só pode ser, também,
intrinsecamente, comunitarista, que não comunista. Curiosamente, Roque Cabral
recorda, na mesma entrada da enciclopédia
Logos, que, por influência do anarquismo, o socialismo afirma o papel do
Estado, mas também não ficou imune à influência nefasta do individualismo.
Poderemos acrescentar que, de forma simétrica, também os movimentos ditos
conservadores não souberam imunizar-se contra esta nefanda influência, ao
acolherem o liberalismo na economia.
Talvez a universalização de um
vírus tão pequeno quanto potente possa despertar deste torpor coletivo que,
pela esquerda e pela direita, nos ilude e encaminha para a desilusão.
Nada somos, sozinhos! Um grito no
vazio. Mas quem poderá ouvir o nosso clamor?
Que não nos esqueçamos, quando
estivermos a decidir, depois de passada a borrasca, que ninguém decide sozinho,
que não se vive sozinho, que não se morre sozinho… que somos, sim, um ser
relacional, intrinsecamente ‘tus’ diante de outros ‘tus’, em cujo face-a-face
se gera o eu que é cada um de nós. Mas é o ‘tu’ que gera a consciência do ‘eu’.
É já cadáver a ilusão de só a nós dizer respeito o que nos ocorre ou de ser 'lá da conta deles' o que acontece com os outros.
Até quando, porém, continuará a sentir-se o seu odor fétido de ente apodrecido?
Como pudemos andar tão solitariamente distraídos?
Até quando, porém, continuará a sentir-se o seu odor fétido de ente apodrecido?
Como pudemos andar tão solitariamente distraídos?