O mundo, a realidade existente, nasce de uma longa, longa história de amor… do Amor.
Não considerar esta convicção como fundamento de tudo entrega toda a realidade à determinação de anónimas forças que tornam inexplicável o surgimento da consciência de si e da capacidade de decidir livremente. Do nada nada vem, sendo que o que existe só pode nascer no quadro da possibilidade de vir a ser, sem ter de o ser.
E só o amor possibilita a liberdade. Só o amor possibilita que o que é possa realizar-se ou, de todo, possa decidir-se a não existir. Mas é nesse mesmo lugar que do nada o Amor faz nascer nova vida e vida nova.
Quando, em 1970, o bioquímico francês Jacques Monod pretendeu resumir na disjunção ‘acaso ou necessidade’ o que estava em causa, quando nos dispomos a interpretar o mundo, o seu olhar fez-nos tomar como insofismável esta conclusão. Mas a redução não está na disjuntiva que ele nos ofereceu. Esta disjuntiva ainda não atingiu o cerne do olhar alternativo sobre a realidade.
No Natal, no mistério do Natal, percebemos que a alternativa não está entre os anónimos, e «a-subjetivos», ‘acaso’ ou ‘necessidade’, forças impessoais e sem vontade ou ‘rosto’. Como poderia possibilitar-se o surgimento da liberdade se a natureza do que é não passasse de um dos dois fundamentos aqui apresentados em alternativa?
Mas essa não é, de facto, a raiz do que existe. A alternativa não está aí.
O mal e o bem só se podem iluminar se o Amor for o fundamento do que é. De outro modo, nem o bem existe [tudo não passa de um ‘ter de ser casual ou predeterminado] nem o mal, como possibilidade de não realização pode ser chamado assim. Não passará de um outro rosto do acontecer impessoal e anónimo.
A tentação de, por antecipação e anacronicamente, ‘regressar’ à disjuntiva de Monod é profunda e emergiu, com frequência, na própria tradição cristã. A linha que colocou no centro da Encarnação de Deus a função de reparar o mal que a criatura provocara (designada como Hamartiocentrismo), linha que encontrou em S. Anselmo (ca. 1033-1109) o seu apogeu, padeceu deste mal. A encarnação (o Natal) parecia ter acontecido por ‘necessidade’ (exigência!) de reparação, como se o centro fosse cedido ao mal, ao pecado. Tentação somada à primeira tentação.
Outro modo nos interpela o Natal que adotemos. Toda a realidade, nascida do Amor e por isso com a têmpera do próprio amor (livre, aberta ao outro, em dinamismo de autorrealização frangível e em estreita dependência do outro…), é, desde o seu primeiro momento, sinal e marcada pela anterioridade do amor. Deus salva ao criar; Deus cria ao salvar. No criar e no salvar, a anterioridade está no Amor, não no acaso, nem na necessidade. Total anterioridade ao amor. Do que falava, aliás, Paulo ao dizer que ‘onde abundou o pecado superabundou a graça’ (Rom 5,20)? Graça é, aqui, o outro nome para um Amor que se define como pura gratuidade.
Não será o acaso o rosto, a máscara, o disfarce do Amor gratuito que surpreende e tem a imprevisibilidade própria da liberdade?
No Menino do Presépio resume-se toda a história do mundo: na sua fragilidade está descrita a natureza ‘agápica’ (de ‘Amor’) da realidade.