As diversas épocas da história têm os seus mitos. E cultivam-nos, deles retirando dividendos.
Um dos nossos mais frequentes e badalados mitos é o de que estamos no final da história, isto é, o de que, finalmente, graças aos nossos méritos, foi concretizado o modelo de organização das sociedades que, de acordo com os seus preconizadores, resta difundir pelo mundo (a bem ou a mal, como está fácil de ver).
O grande defensor desta tese – que revisitava ideias que germinaram no pensamento de Hegel, sustentando que estamos no fim da história, mas, agora, com o modelo das democracias e economias liberais – foi Francis Fukuyama que pretendia dizer, em 1989, que o derrube dos regimes coletivistas deixava a descoberto que o respetivo modelo tinha caducado, nada mais restando do que o seu adversário vencedor.
O autor da teoria considera que não pretendeu dizer o que se lhe atribui, matéria que não é o conteúdo da nossa análise, agora, sendo certo, porém, que escritos posteriores vieram rever a leitura otimista que defendera em 1989. (Basta ler, com atenção, o seu mais recente ‘As origens da ordem política’ para se perceber como há uma matização do otimismo da visão liberal, reconhecendo a condição comunitária da pessoa humana.) Interessa-nos, porém, não tanto a discussão sobre o conteúdo da tese, mas sim o seu elemento formal: a convicção de se ter chegado a um modelo definitivo e perfeito que, a partir de então, há que difundir como o absoluto.
Nesta visão, o futuro é desnecessário. O que havia a percorrer está percorrido e o resto é repetição. Como se o Homem não fosse um ser imperfeito e a fazer-se (vale a pena relembrar a fecunda ideia de Gabriel Marcel de que somos ‘homo viator’, homem que caminha).
Muitos se insurgiram e continuam a insurgir contra a perspetiva de Fukuyama. E com razão.
Há, porém, que estar consciente de que a resposta alternativa não tem sido melhor.
Na verdade, a tese denunciada parecia negar o papel do futuro. Tudo estava já conseguido!
Substituiu-a uma nova visão. Aquela que, hoje, parece pulular nas nossas sociedades e na cultura vigente: ‘afinal, não só não atingimos o modelo perfeito com o que fomos forjando ao longo da história como, por oposição, o que é verdadeiro é o que está a vir e por vir. Nada do que fizemos era bom. Há que rejeitar o passado porque a história começou agora, começou connosco.’
Há, segundo esta tese, que abandonar o que percorremos, apagar a história, resultando disto que nada aprendemos com o que fizemos porque nada há a aprender, mas simplesmente a silenciar.
Tal visão constata-se de uma forma particularmente expressiva na designada ‘cancel culture’, que, porém, não tem o exclusivo de tal perspetiva.
Percebamos o que pretendemos denunciar, recorrendo a uma metáfora.
Imagine-se o tempo como dois elásticos em tensão, presos a um ponto estável que se desloca, equidistante. Esse ponto estável que se desloca, equidistante, é o presente. Ele ‘prende’ os dois elementos da tensão: o elástico do passado e o elástico do futuro.
Ora, o que ocorre quando se ‘corta’ um dos elásticos é que o ponto estável se instabiliza, puxado pela força tensional da parte que continuou presa. Fica, não só em risco a dimensão do elástico cortada, mas o próprio presente que parece sumir-se na vertigem da tensão que se absolutiza para uma das dimensões que garantiam a estabilidade da tensão.
Uma tal metáfora deixa uma interpelação.
Há que perceber o ser humano como intrinsecamente feito de memória e projeto, sendo impossível percebê-lo à luz de uma só das duas dimensões. Esquecer uma das duas dimensões é tornar impossível o reconhecimento da densidade do presente. Aliás, este reconhecimento é verificável na própria etimologia dos termos ‘passado’ (‘o que foi caminhado, o que se caminhou’) e ‘futuro’ (particípio futuro do verbo ser – ‘essere’ em latim – ‘as coisas que hão de ser’). Uma e outra etimologia expressam a ideia de uma continuidade que as duas visões aqui denunciadas omitem e cilindram: quem caminha dirige-se para algures (passado); as coisas que hão-de ser não nascem do nada mas estavam em potência no presente que é o passado do futuro (futuro).
Se tomarmos em conta o que aqui se refletiu, perceberemos que muito do que, hoje, é apresentado como novo mais não é do que revisitação de tantas coisas já vividas. Como temos referido em outros momentos, muitas das decisões defendidas como sinais de modernidade (a diluição dos conceitos de família, a prática do infanticídio, do aborto, da eutanásia, o abandono dos idosos, o regresso da pena de morte e tantas outras ‘novidades’) mais não são do que a recuperação do já ‘caminhado’. Retomado por quem acha que, agora, é que começa a história!
Grandes ilusões são fonte de não menores desilusões.