Habituámo-nos à ideia de que o que respeita à teologia é da ordem do ‘dever ser’. Aliás, um dos conceitos que a filosofia mais associa à ideia de Deus é a de ‘necessidade’ compreendida como o que ‘é e não pode não ser’.
O Natal tem, perante esta ideia de Deus, uma novidade que nunca se esgota. (Como, aliás, acontece com o que a sabedoria cristã sempre designa como mistério: tocamos nele, mas muito nos escapa, tamanha é a sua densidade.)
E essa novidade designamos como ‘uma graça de Deus’.
Poucas línguas permitem o subentendido que nos reserva este aforismo: ‘uma graça de Deus’.
Prontamente, lemos ‘um dom que Deus nos oferece, sem que o mereçamos’. E é-o, de facto. Mas considerar o Natal ‘uma graça de Deus’ tem, na língua portuguesa, uma outra linha semântica que nos passa, por vezes, despercebida. O Natal é ‘um gracejo de Deus’, uma ‘graça’, como quem nos desconcerta. Um momento de ‘humor’ que nos ilumina um beco sem saída. Tal como o humor, aliás!
Sim, o Natal é também um sinal do ‘humor’ de Deus.
O humor com que tantas vezes se nos propõe que enfrentemos a realidade dura e sombria. O humor com que, perante a teimosia de Jonas, Deus transforma o mar num cenário de uma comédia de ‘escapo e apanhas-me!’. O humor daquela anedota judaica que me chegou pela mão de Tomas Halík, no seu mais recente ‘a tarde do cristianismo’.
“[…] uma mulher reclama por Deus durante anos não ter respondido às suas petições para ganhar a lotaria. Diz-lhe o rabino: «Mas Deus já te respondeu! A Sua resposta foi ‘não’.” (T. Halík, A Tarde do cristianismo, Paulinas Editora, p. 249). Deus quer que aceitemos o seu Humor, mas nós temos mau humor e só queremos que Ele faça como exigimos…
Não procuro, aqui, fazer um jogo fácil de palavras, concluindo que Deus seja, não apenas, Amor, mas também Humor.
Sê-lo-á, certamente, não porque deva reduzir-se o mundo a uma grande anedota, mas guardando, antes, do humor o que ele tem de mais essencial e crucial: o humor é sempre o desconcertante, o que desperta a alegria, o que faz disponibilizar, para o inesperado, o coração empedernido.
O humor com que Deus desbrava a escuridão da noite do mundo, para se fazer nascer, frágil e despojado, numa manjedoura, não é apenas um ‘é assim porque tinha de ser’. É, antes, uma surpresa, uma desbragada gargalhada perante os fortes do tempo e do mundo, convencidos de que tudo teria de permanecer como sempre fora até então.
O Natal de Belém, o verdadeiro Natal, é um acontecer da surpresa, porque o que é ‘graça’ é ‘de graça’. Pois, como dirá, pouco mais tarde, S. Paulo, ‘onde abundou o pecado superabundou a graça’. Deus dá gratuitamente… e sorri, porque sabe que as sombras e o abismo não vencerão.
O humor do Natal é, por provir de Deus que é Criador, uma afirmação da condição do mundo criado. O dinamismo do mundo faz-se do gerar coisas novas onde há surpresa. O novo emerge como um momento de humor, de desconcerto.
Veja-se o eclodir da vida. Cada novo rebento é um sinal de júbilo, um desconcerto de vitória sobre a morte.
Na linha de um grande pensador e teólogo do século XX, Teilhard de Chardin, poderíamos afirmar que toda a evolução, que se encaminha para a Cristogénese, só é possível se houver este acontecer de momentos de novo, de desconcerto que surpreende e em que a novidade pode eclodir. Até a física contemporânea evidencia, com as teorias do caos, - que, na aparência se afiguravam a negação do lugar do transcendente, - abre caminho a um outro olhar sobre a realidade que é, afinal, um estado de permanente milagre.
O mundo espanta… O mundo surpreende… O mundo desconcerta… E emerge o novo!
A criatura participa da realidade de Deus que é novidade constante e que, no tempo, e num tempo concreto, desconcertou, rebaixando-se à condição da criatura para lhe revelar Quem era e quem ela própria era, afinal.
E será fácil, então, percebermos que Deus também seja humor porque o Amor que Ele é (não apenas ‘tem’) gera sempre coisas novas, porque o amor é fecundo em si mesmo.
O emergir de coisas novas é ‘graça’ que faz inundar de riso o mundo e o tempo.
E o mal, a escuridão e o abismo já não terão a última palavra nem voz.
Porque Alguém, antes de todos os outros, ‘achou graça’ e deixou-se encher da Graça!