Há uma estratégia de lógica que nos permite identificar a qualidade dos nossos pressupostos: o exercício de os levar até ao absurdo. Se resistirem a esse exercício, podemos dá-los como úteis, eficazes e legítimos. Se não resistirem, convém arrepiarmos caminho.
Ora, um qualquer básico exercício de lógica permitirá verificar se podemos contar com essa fiabilidade quando se trata de adotar para a vida em sociedade o que está definido como sendo ‘autodeterminação de género’.
O pressuposto desta ‘teoria’ ou ‘ideologia’, que por ser ‘totalizante’ (ousaria chamar-lhe ‘totalitária’) deixa sem resposta quem é confrontado com o soundbite de quem a quer defender e pergunta ‘mas és a favor do sofrimento de uma criança que diz que é de outro género que não o seu?’, é o de que o género que nos identifica só nós podemos saber qual é, pois não é observável, de forma objetiva e a partir de indicadores biologicamente constatáveis.
Só o sujeito, de dentro para fora, sabe qual o género que o identifica.
Se tomarmos este pressuposto e o submetermos ao crivo do exercício ‘ad absurdum’, chegaremos à conclusão de que, se a autodeterminação de género afirma que é o indivíduo que determina qual o seu género e não a biologia ou a natureza, teremos de concluir que assim ocorrerá, também, em termos de idade e de todas as outras matérias que concernem à vida do referido indivíduo a quem se conferiu a qualidade de critério primeiro e único de toda a identidade que lhe concerne.
Sendo assim, e aplicando à vida da escola, âmbito sobre o qual determinou (!) o parlamento que deveriam aplicar-se, no imediato, decisões que concernem à autodeterminação de género (curioso que não se tenha definido isso em relação, por exemplo, aos centros comerciais, às instituições públicas várias – hospitais, centros de saúde , serviços de toda a natureza, etc…), então, as conclusões a retirar sobre o impacto da aceitação de tal conceito de autodeterminação podem configurar-se em interrogações como estas: porque não pode, então, um aluno de primeiro ano que sofre por estar nesse ano quando se sente mais identificado com os colegas de quarto ano ou de quinto ano, exigir que o coloquem num ano posterior? Porque não pode um aluno que se sente pobre (afinal, não tem telemóvel como tantos outros colegas, ou computador ou roupa desta ou daquela qualidade…) exigir que lhe sejam atribuídos os benefícios próprios do sentimento profundo que tem? Porque não pode um aluno que tem dez anos, mas se sente com a responsabilidade de um de dezoito anos, votar ou receber um salário (pois, afinal, não é a sua profissão a de estudante?)? Porque não pode um aluno que sofre e foge da escola por causa desse sofrimento, exigir que lhe permitam abandonar de vez a escola, mas o forçam a frequentar uma imposição chamada ‘escolaridade obrigatória’? Porque não pode um aluno, que sofre por ter essa malfadada matemática, exigir deixar de a ter, assim como todas as disciplinas que detesta e lhe causam sofrimento?
E poderíamos continuar…
Para todas estas questões, sabemos que a resposta não é a legitimação do ‘sentir’ individual, mas o acompanhamento e o discernimento entre indivíduo e sociedade, numa articulação em que a prevalência nunca é absoluta de um só dos lados.
Na autodeterminação de género esse equilíbrio perdeu-se, prevalecendo, de forma absoluta, o indivíduo, fechado sobre si, sem história nem natureza, sem herança mas todo autogerado, tornado o centro exclusivo e cabendo a todo o mundo mudar-se para se conformar a ele.
Uma visão deste género mata a sociedade, mata as relações, obriga a esperar que o indivíduo diga quem é, havendo um absoluto silêncio prévio. Torna impossível saber quem é o outro, enquanto herança e acolhimento. Não há reciprocidade: há um movimento de único sentido: do indivíduo para os outros. Não pode, por isso, senão ser fonte de litígios, pois toda a ousadia de dizer que o outro é quem conhecemos, porque é portador de uma história, é tomada como um insulto e uma agressão.
Imagine-se o que seria a sociedade se a todas as relações se aplicasse este princípio: nada poderia pressupor-se, antes de que todos os dados fossem facultados por cada indivíduo.
É por tudo isto que a lei sobre a autodeterminação de género, nas escolas, é grave e trai a confiança em que assentam as relações: a confiança de que quem eu tenho diante de mim é alguém que eu conheço. Uma sociedade em que a autodeterminação que, agora, é de género, fosse de todas as condições, seria uma sociedade ‘alzheimer’, uma sociedade de amnésia total. Nada do que fomos estaria em cada presente, pelo que nada do que somos seria futuro.
É isto que queremos?