quinta-feira, janeiro 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 8 | Mistério na noite de Páscoa

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*




O rito do lume novo, no adro da igreja, a entrada na igreja, às escuras, a longa sequência de leituras que percorria a bela história do amor com que Deus conduz a história… Aquela noite era sempre muito desejada, uma noite única. A noite da vigília pascal.
Na escola, o assunto passava ao lado. Poucos eram, já, os colegas que participavam nas celebrações pascais das suas terras. Aquilo parecia-lhes opaco. Mas, como dizia o pai de J. e M. um símbolo é sempre algo que transparece, no visível, uma realidade que se esconde. É preciso, por isso, fazer o esforço de se abri ao simbólico, para que ele não se torne uma coisa opaca.
Naquela noite, porém, a força dos símbolos parecia dispensar a disponibilidade prévia. Era-se invadido pela sua força. Mas era preciso estar lá.
J. e M. estavam de férias de escola, nas terras do Vouga.
A Igreja de Sever, pequena mas bela, criava um adequado cenário para uma celebração cheia de jogo de escuridão-luz, de frio-calor, que fazia daquele um momento único no ano.
Os pais tinham escolhido sentar-se do lado esquerdo da igreja, frente ao púlpito de madeira de múltiplas cores repousado sobre uma figura curvada de olhar fixo.
Logo que se sentaram, ainda a igreja estava escura, com a assembleia de velas na mão, M. ficou extasiada com aquela imagem.
Contrastando com a alegria contagiante com que toda a assembleia saiu daquela celebração noturna, M. permaneceu no lugar.
- Reparaste no mesmo que eu? – disse, um pouco assustada, ao irmão.
- Reparei em quê? Reparei que foi uma celebração belíssima. Isto é tão cheio de símbolos, de cor, de luminosidade e contrastes…
- Não. Não me estou a referir à celebração. Estou a falar desta imagem que sustenta este púlpito. Devo estar ainda tomada pela força desta noite. Pareceu-me que me piscou o olho.
- Tens cada uma, M. A noite elevou-te tão alto que te dotaste de poderes novos.
J. sabia que, quando M. era tomada por uma sensação destas, não descansava enquanto não esclarecia as suas dúvidas.
A noite foi de sobressalto. J. ouviu a M. levantar-se, vezes sem conta. E, claro, ele próprio não pusera olho.
O sol de Sever era madrugador. Parecia ser o primeiro sol do planeta, de tão precocemente se elevar nos céus.
Os pais espantaram-se com tão matutino erguer, e suspeitaram de que novo mistério se avizinhava.
- Podemos ir falar com a ti’ Custodinha? – disseram como que em coro, J. e M., mal beberam o último trago de café com leite.
Ti’ Custodinha era a memória viva daquelas terras. O que já nem os livros conservavam, mantinha-se vivo como recordação atual, na mente daquela bela mulher quase centenária e de lutuosas vestes.
- Ela haveria de saber se M. sonhara…
-Quereis saber do ‘janardo’.
‘Janardo’ era o atlante curvado de que M. não desprendera o olhar, desde que entrara na igreja. Era uma peça do século XVIII, sobre a qual repousava um púlpito. Parecia sustentar, sobre as suas curvadas costas, todo o mal do mundo.
- Já o tentaram vender, ainda o meu Manel era vivo – Manel era o marido que ela perdera, no Ultramar, mas de que guardara luto eterno, pois, - dizia -, um amor é para sempre e não tem substituto.- Mas o povo apercebeu-se e, a tempo, impediu a sua partida destas terras. Com o Janardo cruza-se a história do mundo.
-Bem sabeis que estas terras estão cheias de mistérios. Este é um dos mais bem guardados. Nestes tempos, talvez já só eu o saiba. Conto-vos, mas com a certeza de que apenas o passareis a um ouvido. É segredo que não pode ser passado a dois ouvidos.
Para conhecermos a sua história, temos de recuar até ao início da construção desta igreja. O janardo, na forma com que o vemos, hoje, é do século rico de Portugal, o século XVIII, mas a igreja começa a ser construída na segunda metade do século XVI. A história do homem que janardo esconde é do tempo do início do reinado dos Filipes.
- Filipes? Bem, estamos, então, em início da década de 80 do século XVI. – disse, prontamente, M. – Lembro-me bem. Depois da crise que se gerou na sucessão, por morte do nosso D. Sebastião, Filipe II torna-se o nosso Filipe I, dando início à dinastia filipina.
- É mesmo nessa altura. Mas a história do nosso janardo depende mais de Roma do que de Madrid.
- Ena. Estou cheio de curiosidade. Diga, diga, ti’ Custodinha. – atalhou J.
- Por essa altura, o Papa era Gregório XIII. Decidira constituir uma comissão para resolver os problemas associados ao calendário, pois ainda se estava sob a organização do tempo prevista no calendário juliano. Era preciso resolver questões matemáticas, que exigiam os melhores matemáticos de então. Entre 1577 e 1582, uma equipa que contou com Clavius, Gliglio, e outros reputados matemáticos, astrónomos, encontraram uma solução que deu origem ao que é, hoje, o calendário que seguimos e que tem, precisamente, o nome de ‘calendário gregoriano ou liliano’.
- Ti’ Custodinha, estou suspenso. Não estou a ver onde entra o nosso janardo.
Ti’ Custodinha parou. Susteve o ar, olhou para o horizonte e pousou a mão sobre a de J.
- Verás como o tempo é tão efémero e escorre como água fina entre os dedos… Levo-te, sobre os limites do espaço, ao tempo onde estávamos. Volta, comigo, a Roma.
- O Papa recebeu, ainda em 1581, os resultados da equipa que ele mesmo acompanhara. Mas resistiu ao que os dados apontavam, pois era preciso tomar uma difícil decisão. A aplicação do calendário implicava congelar dez dias do tempo. Tal determinação comportava custos sérios. Como podia um humano eliminar dez dias? Isso era poder de Deus. Não comportaria isso repetir a ousadia de Adão, com os custos de uma nova maldição?
E que maldição seria essa? O Papa reforçou a equipa com teólogos que refletiram sobre o alcance de tamanha determinação.
A discussão foi acesa. Mas ressaltava uma certeza: Deus bom não deixaria, nunca, que as maldições se sobrepusessem à redenção.
E que maldição adviria de ousar interromper o tempo? E que redenção, afinal, adviria?
A maldição parecia clara: o tempo petrificado reduziria a pedra ou a fixidez o mal realizado, mas restava compreender como se operaria a redenção.
Os estudos continuaram. Gregório XIII sabia, no início de 1581, que a decisão de avançar do dia 4 para o dia 15 de outubro do ano da publicação da bula com o novo calendário implicaria que os males realizados nesse mesmo período, no ano anterior, transformariam em pedra ou forma firme e rígida, os que tinham sido violentos, nesse mesmo período. Não havia volta a dar. Mas Deus bom não deixaria o mundo assim.
Não foi, por isso, sem receios, mas confiante na bondade de Deus, que o Papa publicou, em inícios de 1582, a bula ‘inter gravissimas’ que determinava que o primeiro dia do novo calendário seria 15 de outubro desse mesmo ano, sucedendo ao dia 4 de outubro. Curiosamente, porém, sendo bula de 1582, Gregório XIII dá-lhe data de 1581, seguindo uma das possíveis datações seguidas então, mas, certamente, com o desejo de ainda contornar algum resquício do trágico modo de pensar dos gregos. Quem sabe se, deste modo, se contornaria a maldição?
- Que história, Ti’ Custodinha. Estou espantada! Então, e o nosso janardo?
- Por essa altura, decorria a primeira fase da construção da igreja. O homem que é, hoje, o janardo…
- Estranho. O homem que é, hoje, o janardo? Não me diga…
- Sim, já vais perceber. O homem que é, hoje, o janardo, conduzia as obras desta igreja. Mas era um homem pouco dado a compreensões. Era rude, duro. Conta-se que não pagava aos pedreiros que talhavam a pedra, exigindo horas e horas sob o peso da vergasta e do chicote. Quando, em 1582, no dia 15 de outubro, entrou em vigor a bula que estabelecia o novo calendário, o capataz das obras da igreja de Sever desapareceu e não mais foi visto. Dizia-se que decidira pôr termo à vida, com remorso.
Mas, quando, no século XVIII, o entalhador fez o púlpito que aqui repousa, foi surpreendido, na realização da sua obra. Ao escavar a árvore de que retirava as lascas, para construir a sua peça, não precisou de muito, pois prontamente a forma deste atlante emergiu, bem definida. O interior guardara, fixa, a figura já acabada. A maldade do capataz, realizada naquele período petrificado pela decisão pontifícia, enrijecera no interior daquela árvore.
- E assim ficará, para sempre? Não tinham os teólogos dito que Deus não haveria de deixar que a maldição se impusesse à força da salvação?
- E assim é, de facto. É sabido que, na perspetiva cristã, o bem eleva e transfigura o mal. O bem feito por poucos participará da redenção operada por Jesus. Diz, por isso, a lenda que vos conto que o Janardo voltará a erguer-se e tornar-se de carne quando um severense for elevado aos altares. Suspeito, M., que o Janardo viu em ti algo de especial…


 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

domingo, janeiro 19, 2025

Perante o aborto, qual a verdadeira compaixão que chega a todos? A todos, mesmo! | Desde 2007, o aborto legal já foi responsável pela morte de quem o praticou.

Artigo publicado, originalmente, no site da Comissão Diocesana da Cultura|Aveiro

 

O discurso que pretende legitimar a prática do aborto é muito eficaz. Sendo o aborto voluntário um ato pelo qual se impede um filho de crescer até se tornar autónomo, eliminando-o, na sua fase mais frágil e mais dependente de quem o deveria proteger, os que o pretendem legitimar têm sabido instrumentalizar os argumentos convencendo parte da opinião pública de que a compaixão está do seu lado.

E um dos mais frequentes argumentos é o de que a clandestinidade do aborto é que mata as mulheres que a ele pretendem recorrer.

Uma busca rápida de relatórios das complicações associadas ao aborto legal prontamente deitará por terra esta convicção.

Apesar de escassos (ainda que devessem ser anuais, de acordo com a Norma nº 001/2013 de 29/01/2013), dois dos relatórios das complicações associadas à prática do aborto legal permitem retirar várias conclusões que deveriam fazer pensar.

(Reporto-me a dois relatórios: ‘RELATÓRIO DE ANÁLISE DAS COMPLICAÇÕES RELACIONADAS COM A INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ 2013’ e ao ‘RELATÓRIO DE ANÁLISE DAS COMPLICAÇÕES RELACIONADAS COM A INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ 2009 – 2010’, publicado pela Divisão de Saúde Reprodutiva, em janeiro de 2011.)

Das muitas informações que podem encontrar-se, aqui, destaco as mais relevantes.

Nestes relatórios, são registadas as inúmeras complicações advindas do aborto legal. Sublinho ‘complicações advindas do aborto legal’.

No relatório de 2011, que reporta informações do período em que já vigorava um quadro de legalidade decorrente da decisão tomada pelo Parlamento, após o referendo de 11 de fevereiro de 2007, podemos destacar as complicações mais graves, a saber, ‘infeção/sepsis’, que, entre 2008 e 2010, se verificou em 54 casos, havendo 7 situações de perfurações de útero.

No relatório de 2013-14, verificamos que as infeções/sepsis continuam a ter um nível de incidência significativo: no ano de 2011, foram 31; em 2012, foram 23; em 2013, 46; em 2014, 31. Também continuam a verificar-se perfurações de útero: em 2011 e em 2014, não foram registados casos, mas assim aconteceu, porém, em 2012 (1 caso) e em 2013 (2 casos).

Poderá, ainda, observar-se que são muito significativos os números de casos de aborto retido (em que o embrião ou feto não é expulso do útero, após a intervenção): em todos os anos relatados, os abortos retidos superam os 150, chegando, em 2010, a atingir o número de 524.

Os mesmos relatórios reportam outras complicações (endometrite, necessidade de terapêutica cirúrgica ou transfusão sanguínea, persistência de saco gestacional após intervenção, etc.), densificando o reconhecimento das inúmeras consequências do aborto para a própria mulher (bem certo que a complicação ‘morte’ é constante, no caso do filho…). Volto a sublinhar que as complicações não são decorrentes da clandestinidade do ato, mas sim do ato em si. Todas estas complicações acima sumariamente enumeradas são referentes ao aborto legal.

E soma-se a estas complicação a morte da própria mulher, facto que podemos verificar no relatório de janeiro de 2011 que observa que ‘A morte por choque tóxico associado com infecção a Clostridium sordellii, constitui uma complicação muito rara, mas que deve ser considerada como diagnóstico diferencial.’ Por ‘diagnóstico diferencial’ podemos entender ‘hipótese sempre a colocar’. Na verdade, fonte de informação segura reportou-me que a morte de mulheres por aborto legal voltou a ocorrer em pelo menos mais duas situações, em data posterior à que reportam estes dois relatórios.

Face a estes dados, deveria concluir-se que não é a clandestinidade a responsável pelas complicações associadas à sua prática, mas a natureza do próprio ato de abortar, que é a interrupção abrupta e subjetivamente determinada de um processo em que já está empenhado todo o organismo da mulher.

Acresce que, em causa, já não está só o corpo da mulher, mas a vida do seu filho.

Por tudo isto, compadecer-se de uma mulher que está grávida e se convenceu de que o seu problema é o seu filho em gestação não é legitimar-lhe a determinação de o eliminar, mas ajudá-la a acolher o filho. Eliminar o filho é decisão irreversível, motivada por circunstâncias sempre reversíveis. Os casos que acompanhei, desde a fundação da ADAV-Aveiro, e de que resultou a decisão livre da mãe de desistir de abortar, permitem-me concluir que o filho, que parecia problema, veio, afinal, a ser a causa de reconfiguração de sentido e a fonte de esperança, em momentos mais negativos (bem me lembro desses testemunhos sofridos…).

Sendo o aborto um erro, como podemos continuar a achar que ele seja sinal de compaixão?

Compadecer-se é, sim, ajudar o outro a encontrar uma saída construtiva para um problema que se lhe afigura insuperável… E para isso aí estão as associações de defesa da vida que têm, desde 1998, criado respostas para que não fique sem ajuda mulher alguma cujo filho decidiu ouvir: em sussurro, ele pedia-lhe que o acolhesse…

terça-feira, janeiro 07, 2025

Sabes, leitor... | 13 | Marca de água do livro de Gustavo Zagrebelsky, 'A crucificação e a democracia'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Gustavo Zagrebelsky, A crucificação e a democracia, Coimbra, Edições Tenacitas, 2004.


Gustavo Zagrebelsky é, infelizmente, entre nós, um muito ilustre desconhecido. Basta uma rápida busca de livros da sua autoria, entre as editoras portuguesas, para percebermos que, com a honrosa exceção do livro com que nos abeiramos, nesta rubrica, da sua fina inteligência, não terá havido outros livros que tenham merecido o labor editorial lusitano.
Não é, assim, porém, no país vizinho, onde as traduções da sua obra abundam. Títulos como ‘ o direito dúctil’, ‘Livres servos’, ‘Direitos à força’, ‘Princípios e votos’, ‘A virtude da dúvida’, etc. mereceram tradução para castelhano. Outros públicos, outras ousadias, outros leitores!
Mas, entre nós, só pela via de ‘a crucificação e a democracia’ nos poderemos abeirar do pensamento fino deste professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Turim e também membro do Tribunal Constitucional italiano, de que foi Presidente em 2004.
Nesta edição que aqui apresento, a qualidade da reflexão é emoldurada por uma não menos interessante e luminosa ‘palavra de apresentação’ da autoria de António Maria Barbosa de Melo, Presidente da Assembleia da República entre 1991 e 1995 e reconhecido professor de Direito da Universidade de Coimbra. ‘Palavra’ que é um excelente guia para o ‘percurso’ que nos proporciona o autor entre os meandros da ‘democracia’ que, pela via da manipulação das massas, se degrada em ‘demagogia’.
Um livro oportuno e quase ‘profético’, dada a sua capacidade de antecipar, em duas décadas, os sinais de perigo que a manipulação das massas acríticas faz emergir e germinar.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

Começo esta abordagem com um elogio. Às edições Tenacitas devemos a tradução para português de algumas obras e autores que, de outro modo, nos ficaria vedado conhecer. Nomes como Robert George, George Weigel, entre outros, mereceram tradução para português de obras que permitem ler, de forma fina e acutilante, a realidade que se nos apresenta, muito para além da espuma de tanta literatura que repete em círculo o pensar vulgarizado.
Entre essas ‘raridades’ contamos este ‘A crucificação e a democracia’.
É pena, porém, que a belíssima capa que reproduz um ‘ecce homo’ de autor anónimo do século XV possa ter inibido o acesso de leitores que, tomados pelo ‘preconceito’ de que pudesse tratar-se de um livro de natureza religiosa ou piedosa, desviaram o olhar para outras capas mais sedutoras.
A capa é, porém, decorrente de uma interpretação correta do livro, dado que o nosso autor faz uma abordagem sobre o que deverá ser uma democracia madura (ele chama-lhe ‘democracia crítica’) e do que são democracias débeis (ele chama-lhes ‘céticas’ e ‘dogmáticas’) tomando por referência o processo histórico de julgamento de Jesus Cristo, às mãos da multidão manipulada pelos líderes políticos e religiosos de então.
Superado o ‘preconceito’, o leitor é surpreendido com uma escrita entusiasmante e entusiasmada que envolve e favorece a leitura voraz. A tese fundamental é a de que as democracias são realidades vulneráveis, suscetíveis de instrumentalização, pelo que, dada esta natureza frágil, devem amadurecer no sentido da superação das ‘certezas’ das leituras dogmáticas ou céticas que lhes atribuem o direito de poderem legislar sobre tudo o que respeita ao cidadão, inclusive sobre a vida e a morte destes.
As consequências desta tese são facilmente constatáveis. Matérias que concernem a decisões irreversíveis como o aborto, eutanásia, pena de morte, etc., excedem os limites que deveriam admitir-se as democracias maduras (as ‘críticas’, que sabem que o poder tende a absolutizar-se, sendo vulnerável à manipulação que conduz a formas totalitárias).
Olhando para um processo com 2000 anos, Zagrebelsky não deixa de constatar a ‘permanência’ dos ‘tiques autoritários e totalitários’ que percorrem a história da consolidação da democracia.
Hoje, porém, dizemo-lo nós, após tantos sinais e indícios que deveriam conduzir a processos de ‘autolimitação’ das democracias, os sinais não parecem dar-nos motivos para tranquilizarmos. As democracias que pensávamos ter amadurecido, assentes numa atitude ‘crítica’ (consciente da sedução maviosa do poder), estão, afinal, vez após vez, renovadamente tomadas pelos tiques ‘demagógicos’ que transformam o ‘povo’ numa ‘massa’ instrumentalizável e disponível ao serviço de desejos múltiplos que se congregam em tornou do saboroso paladar do ‘poder’.
A tese deste experiente professor de direito e juiz deveria continuar a servir de alerta, em tempos em que a decisão sobre a vida e a morte, já não de abstratos cidadãos, mas sobre os próprios filhos ainda não nascidos ou sobre os pais acamados, enfermos, dementes, está a ser envolvida sob o manto de um putativo direito a reconhecer pelos Estados que atingem, assim, um limite que parecia nunca poder aceitar-se: já não só o de os Estados, pela mão de alguns seus representantes, poderem exercer esse hipotético direito, mas de ele ser reconhecido a cada um. O salto parece abismal, mas adivinha-o Zagrebelsky na cedência às degenerescências da democracia.
Servirão as suas palavras de alerta? Ainda irão a tempo?
Ou voltaremos a crucificar o inocente, deixando, de modo demagogicamente intencional, o real culpado entre os que assistem à execução do seu ‘substituto’?

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘A verdade e a falsidade, o bem e o mal, não podem […] depender do número e das opiniões’ (p. 19)

‘Se se considerar a condenação de Jesus sob a perspetiva do conjunto de factores que a determinou, torna-se evidente que tanto o dogma como o cepticismo podem conviver com a democracia desde que quer um quer o outro a instrumentalizem. Tanto o dogmático como o céptico se podem apresentar como amigos da democracia, mas apenas como falsos amigos. O dogmático pode aceitar a democracia só se e enquanto ela servir como força, uma força dirigida a impor a verdade. O céptico, por seu lado, como não acredita em nada, não encontrará nenhuma razão para preferir a democracia à autocracia. Ou melhor: encontrará uma razão, não na fé em qualquer princípio, mas sim numa conveniência. Isto é: poderá ser democrático, enquanto o for, não por idealismo mas por realismo do próprio interesse, ou seja, por oportunismo.’ (pp. 19-20)

‘A estes dois modos de pensar – opostos nos fundamentos mas convergentes na instrumentalização – uma teoria da democracia como fim, e não apenas como um meio, deve saber contrapor um outro, que não presuma possuir a verdade e a justiça mas muito menos considere insensata a sua busca. É este pensamento da possibilidade, que é próprio daqueles que rejeitam tanto a arrogância da verdade possuída quanto a renúncia da realidade aceite. O pensamento da possibilidade contém sempre – e de novo – a abertura à procura e o seu postulado é a estrutural plurivalência de todas as situações nas quais nos venhamos a encontrar. A sua exigência ética não é a verdade ou a justiça absolutas, como para o espírito dogmático, mas, entre todas as possibilidades, a procura orientada do melhor, uma exigência que somente o espírito radicalmente céptico poderá negar, em nome de uma tentação absolutista de sinal contrário. Só pra o pensamento da possibilidade, a democracia, além de um meio, pode também ser um fim e, por isso, além de servir, deve também ser servida. À democracia que assume como própria esta atitude do espírito dá-se o nome de democracia crítica.’ (p. 20)

‘Contra a habitual representação do homem tíbio, débil, cobarde e aprisionado ao seu interesse mesquinho, pode colocar-se a compreensão de Pilatos como político puro, aquele para quem o poder e o governo são a finalidade; e tudo o resto, incluindo a verdade e a justiça, desce à condição de puro meio, útil, inútil ou pernicioso consoante as circunstâncias. Quase um maquiavélico ante litteram.’ (p. 91)

‘O crucifica-o! foi um alarido unânime. No seio da multidão em frente ao Pretório não havia lugar a dissensões. O medo mantinha-a unida como um corpo compacto.
Se uma voz, entre tantas, se tivesse levantado para se fazer escutar e tivesse conseguido abrir um debate; se, nesse caso, se tivessem formado diferentes grupos, talvez a decisão se tivesse orientado de outra maneira, talvez se produzisse uma mudança radical ou a procura de uma solução de compromisso. Talvez. Falta a contraprova. Mas, tal como os Evangelhos relatam o desenrolar dos factos, o povo actuou verdadeiramente como uma massa que se dirige cegamente para o precipício, impedindo a qualquer força contrária o mero acto de se manifestar.
Haveria possíveis dissidentes? Provavelmente sim, talvez uma minoria. Mas estavam atemorizados.’ (p. 103)

‘A turba não agiu. Apenas reagiu. Não se tratou de uma reunião de homens senhores de si próprios, mas de uma massa manipulada por outros. Essa multidão não era um sujeito, mas um objeto.’ (p. 106)

‘Agir depressa! Não havia tempo. A rapidez era a tendência natural daquela multidão emocional e não racional. Mas era também a intenção dos que a incitavam.’ (p. 107)

‘Quem se atribua o direito de decidir sobre a vida e a morte, de alguma forma, conscientemente ou não, quer valer tanto como Deus. Pilatos e o Sinédrio, pondo em última e definitiva instância a vida de Jesus nas mãos da multidão, adularam-na, divinizando-a. Precisamente: vox populi, vox dei.’
Isto expressa um conceito totalitário da democracia como força, e como força absoluta; um conceito que nos remete para muitas das características que vimos na decisão popular contra Jesus. Sobretudo, a ausência de procedimentos e garantias a favor das vozes potencialmente discordantes.’ (p. 111)

‘Na democracia crítica, a democracia é função de si própria. E, dado que sempre se coloca a si mesma as suas finalidades, é ao mesmo tempo meio e fim. E sendo portanto à vez meio e fim, não pode criar-se uma contradição para sair da qual possamos vermo-nos na alternativa de salvar os fins renunciando à democracia como meio, ou salvaguardar a democracia como meio renunciando aos fins.’ (pp. 114-115)

‘Na democracia crítica, a autoridade do povo não depende, de modo nenhum, das suas supostas qualidades sobre-humanas, como a omnipotência e a infalibilidade. Depende, ao invés, do motivo exactamente oposto, quer dizer, do facto de assumir que todos os homens e o povo no seu conjunto são necessariamente limitados e falíveis.’ (p. 115)

‘Do ponto de vista de uma visão da democracia sem ilusões, devem rejeitar-se como insensatos e portadores de insidiosas tentações todos os conceitos de democracia que atribuam ao povo a capacidade de nunca se equivocar, de sempre se basear intrinsecamente no justo.’ (p. 116)

‘Na democracia crítica, todas as decisões hão-de ser revogáveis e revisíveis. As decisões definitivas, de facto ou de direito, não são admitidas porque o carácter definitivo pressupõe a infalibilidade e nelas o espírito da possibilidade fica anulado. […] a democracia crítica não rejeita apenas a pena de morte. É também incompatível com muitas outras decisões, seja por estas serem irreversíveis, ou por implicarem consequências irreversíveis.’ (pp. 120-121)

‘Retornemos, uma vez mais, ao processo de Jesus. A multidão que gritava o crucifica-o! era exactamente o contrário daquilo que a democracia crítica pressupõe: tinha pressa, estava fragmentada mas era totalitária, não tinha instituições nem procedimentos, era instável, emotiva, e, por isso, extremista e manipulável – uma multidão terrivelmente parecida com o “povo”, a quem a “democracia” podia confiar o seu destino no futuro próximo. Essa turba condenava “democraticamente” Jesus e assim acabava por reforçar o dogma do Sinédrio e o poder de Pilatos.’ (p. 129)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem recolhida de http://www.tenacitas.pt/producto/a-crucificacao-e-a-democracia/

'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

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