Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Luís Manuel Pereira da Silva*
O autor e a obra
Gustavo Zagrebelsky, A crucificação e a democracia, Coimbra, Edições Tenacitas, 2004.
Gustavo Zagrebelsky é, infelizmente, entre nós, um muito ilustre desconhecido. Basta uma rápida busca de livros da sua autoria, entre as editoras portuguesas, para percebermos que, com a honrosa exceção do livro com que nos abeiramos, nesta rubrica, da sua fina inteligência, não terá havido outros livros que tenham merecido o labor editorial lusitano.
Não é, assim, porém, no país vizinho, onde as traduções da sua obra abundam. Títulos como ‘ o direito dúctil’, ‘Livres servos’, ‘Direitos à força’, ‘Princípios e votos’, ‘A virtude da dúvida’, etc. mereceram tradução para castelhano. Outros públicos, outras ousadias, outros leitores!
Mas, entre nós, só pela via de ‘a crucificação e a democracia’ nos poderemos abeirar do pensamento fino deste professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Turim e também membro do Tribunal Constitucional italiano, de que foi Presidente em 2004.
Nesta edição que aqui apresento, a qualidade da reflexão é emoldurada por uma não menos interessante e luminosa ‘palavra de apresentação’ da autoria de António Maria Barbosa de Melo, Presidente da Assembleia da República entre 1991 e 1995 e reconhecido professor de Direito da Universidade de Coimbra. ‘Palavra’ que é um excelente guia para o ‘percurso’ que nos proporciona o autor entre os meandros da ‘democracia’ que, pela via da manipulação das massas, se degrada em ‘demagogia’.
Um livro oportuno e quase ‘profético’, dada a sua capacidade de antecipar, em duas décadas, os sinais de perigo que a manipulação das massas acríticas faz emergir e germinar.
Marcas de água
(o que fica depois de se deixar o livro)
Começo esta abordagem com um elogio. Às edições Tenacitas devemos a tradução para português de algumas obras e autores que, de outro modo, nos ficaria vedado conhecer. Nomes como Robert George, George Weigel, entre outros, mereceram tradução para português de obras que permitem ler, de forma fina e acutilante, a realidade que se nos apresenta, muito para além da espuma de tanta literatura que repete em círculo o pensar vulgarizado.
Entre essas ‘raridades’ contamos este ‘A crucificação e a democracia’.
É pena, porém, que a belíssima capa que reproduz um ‘ecce homo’ de autor anónimo do século XV possa ter inibido o acesso de leitores que, tomados pelo ‘preconceito’ de que pudesse tratar-se de um livro de natureza religiosa ou piedosa, desviaram o olhar para outras capas mais sedutoras.
A capa é, porém, decorrente de uma interpretação correta do livro, dado que o nosso autor faz uma abordagem sobre o que deverá ser uma democracia madura (ele chama-lhe ‘democracia crítica’) e do que são democracias débeis (ele chama-lhes ‘céticas’ e ‘dogmáticas’) tomando por referência o processo histórico de julgamento de Jesus Cristo, às mãos da multidão manipulada pelos líderes políticos e religiosos de então.
Superado o ‘preconceito’, o leitor é surpreendido com uma escrita entusiasmante e entusiasmada que envolve e favorece a leitura voraz. A tese fundamental é a de que as democracias são realidades vulneráveis, suscetíveis de instrumentalização, pelo que, dada esta natureza frágil, devem amadurecer no sentido da superação das ‘certezas’ das leituras dogmáticas ou céticas que lhes atribuem o direito de poderem legislar sobre tudo o que respeita ao cidadão, inclusive sobre a vida e a morte destes.
As consequências desta tese são facilmente constatáveis. Matérias que concernem a decisões irreversíveis como o aborto, eutanásia, pena de morte, etc., excedem os limites que deveriam admitir-se as democracias maduras (as ‘críticas’, que sabem que o poder tende a absolutizar-se, sendo vulnerável à manipulação que conduz a formas totalitárias).
Olhando para um processo com 2000 anos, Zagrebelsky não deixa de constatar a ‘permanência’ dos ‘tiques autoritários e totalitários’ que percorrem a história da consolidação da democracia.
Hoje, porém, dizemo-lo nós, após tantos sinais e indícios que deveriam conduzir a processos de ‘autolimitação’ das democracias, os sinais não parecem dar-nos motivos para tranquilizarmos. As democracias que pensávamos ter amadurecido, assentes numa atitude ‘crítica’ (consciente da sedução maviosa do poder), estão, afinal, vez após vez, renovadamente tomadas pelos tiques ‘demagógicos’ que transformam o ‘povo’ numa ‘massa’ instrumentalizável e disponível ao serviço de desejos múltiplos que se congregam em tornou do saboroso paladar do ‘poder’.
A tese deste experiente professor de direito e juiz deveria continuar a servir de alerta, em tempos em que a decisão sobre a vida e a morte, já não de abstratos cidadãos, mas sobre os próprios filhos ainda não nascidos ou sobre os pais acamados, enfermos, dementes, está a ser envolvida sob o manto de um putativo direito a reconhecer pelos Estados que atingem, assim, um limite que parecia nunca poder aceitar-se: já não só o de os Estados, pela mão de alguns seus representantes, poderem exercer esse hipotético direito, mas de ele ser reconhecido a cada um. O salto parece abismal, mas adivinha-o Zagrebelsky na cedência às degenerescências da democracia.
Servirão as suas palavras de alerta? Ainda irão a tempo?
Ou voltaremos a crucificar o inocente, deixando, de modo demagogicamente intencional, o real culpado entre os que assistem à execução do seu ‘substituto’?
Na mesma página que o autor (citações)
‘A verdade e a falsidade, o bem e o mal, não podem […] depender do número e das opiniões’ (p. 19)
‘Se se considerar a condenação de Jesus sob a perspetiva do conjunto de factores que a determinou, torna-se evidente que tanto o dogma como o cepticismo podem conviver com a democracia desde que quer um quer o outro a instrumentalizem. Tanto o dogmático como o céptico se podem apresentar como amigos da democracia, mas apenas como falsos amigos. O dogmático pode aceitar a democracia só se e enquanto ela servir como força, uma força dirigida a impor a verdade. O céptico, por seu lado, como não acredita em nada, não encontrará nenhuma razão para preferir a democracia à autocracia. Ou melhor: encontrará uma razão, não na fé em qualquer princípio, mas sim numa conveniência. Isto é: poderá ser democrático, enquanto o for, não por idealismo mas por realismo do próprio interesse, ou seja, por oportunismo.’ (pp. 19-20)
‘A estes dois modos de pensar – opostos nos fundamentos mas convergentes na instrumentalização – uma teoria da democracia como fim, e não apenas como um meio, deve saber contrapor um outro, que não presuma possuir a verdade e a justiça mas muito menos considere insensata a sua busca. É este pensamento da possibilidade, que é próprio daqueles que rejeitam tanto a arrogância da verdade possuída quanto a renúncia da realidade aceite. O pensamento da possibilidade contém sempre – e de novo – a abertura à procura e o seu postulado é a estrutural plurivalência de todas as situações nas quais nos venhamos a encontrar. A sua exigência ética não é a verdade ou a justiça absolutas, como para o espírito dogmático, mas, entre todas as possibilidades, a procura orientada do melhor, uma exigência que somente o espírito radicalmente céptico poderá negar, em nome de uma tentação absolutista de sinal contrário. Só pra o pensamento da possibilidade, a democracia, além de um meio, pode também ser um fim e, por isso, além de servir, deve também ser servida. À democracia que assume como própria esta atitude do espírito dá-se o nome de democracia crítica.’ (p. 20)
‘Contra a habitual representação do homem tíbio, débil, cobarde e aprisionado ao seu interesse mesquinho, pode colocar-se a compreensão de Pilatos como político puro, aquele para quem o poder e o governo são a finalidade; e tudo o resto, incluindo a verdade e a justiça, desce à condição de puro meio, útil, inútil ou pernicioso consoante as circunstâncias. Quase um maquiavélico ante litteram.’ (p. 91)
‘O crucifica-o! foi um alarido unânime. No seio da multidão em frente ao Pretório não havia lugar a dissensões. O medo mantinha-a unida como um corpo compacto.
Se uma voz, entre tantas, se tivesse levantado para se fazer escutar e tivesse conseguido abrir um debate; se, nesse caso, se tivessem formado diferentes grupos, talvez a decisão se tivesse orientado de outra maneira, talvez se produzisse uma mudança radical ou a procura de uma solução de compromisso. Talvez. Falta a contraprova. Mas, tal como os Evangelhos relatam o desenrolar dos factos, o povo actuou verdadeiramente como uma massa que se dirige cegamente para o precipício, impedindo a qualquer força contrária o mero acto de se manifestar.
Haveria possíveis dissidentes? Provavelmente sim, talvez uma minoria. Mas estavam atemorizados.’ (p. 103)
‘A turba não agiu. Apenas reagiu. Não se tratou de uma reunião de homens senhores de si próprios, mas de uma massa manipulada por outros. Essa multidão não era um sujeito, mas um objeto.’ (p. 106)
‘Agir depressa! Não havia tempo. A rapidez era a tendência natural daquela multidão emocional e não racional. Mas era também a intenção dos que a incitavam.’ (p. 107)
‘Quem se atribua o direito de decidir sobre a vida e a morte, de alguma forma, conscientemente ou não, quer valer tanto como Deus. Pilatos e o Sinédrio, pondo em última e definitiva instância a vida de Jesus nas mãos da multidão, adularam-na, divinizando-a. Precisamente: vox populi, vox dei.’
Isto expressa um conceito totalitário da democracia como força, e como força absoluta; um conceito que nos remete para muitas das características que vimos na decisão popular contra Jesus. Sobretudo, a ausência de procedimentos e garantias a favor das vozes potencialmente discordantes.’ (p. 111)
‘Na democracia crítica, a democracia é função de si própria. E, dado que sempre se coloca a si mesma as suas finalidades, é ao mesmo tempo meio e fim. E sendo portanto à vez meio e fim, não pode criar-se uma contradição para sair da qual possamos vermo-nos na alternativa de salvar os fins renunciando à democracia como meio, ou salvaguardar a democracia como meio renunciando aos fins.’ (pp. 114-115)
‘Na democracia crítica, a autoridade do povo não depende, de modo nenhum, das suas supostas qualidades sobre-humanas, como a omnipotência e a infalibilidade. Depende, ao invés, do motivo exactamente oposto, quer dizer, do facto de assumir que todos os homens e o povo no seu conjunto são necessariamente limitados e falíveis.’ (p. 115)
‘Do ponto de vista de uma visão da democracia sem ilusões, devem rejeitar-se como insensatos e portadores de insidiosas tentações todos os conceitos de democracia que atribuam ao povo a capacidade de nunca se equivocar, de sempre se basear intrinsecamente no justo.’ (p. 116)
‘Na democracia crítica, todas as decisões hão-de ser revogáveis e revisíveis. As decisões definitivas, de facto ou de direito, não são admitidas porque o carácter definitivo pressupõe a infalibilidade e nelas o espírito da possibilidade fica anulado. […] a democracia crítica não rejeita apenas a pena de morte. É também incompatível com muitas outras decisões, seja por estas serem irreversíveis, ou por implicarem consequências irreversíveis.’ (pp. 120-121)
‘Retornemos, uma vez mais, ao processo de Jesus. A multidão que gritava o crucifica-o! era exactamente o contrário daquilo que a democracia crítica pressupõe: tinha pressa, estava fragmentada mas era totalitária, não tinha instituições nem procedimentos, era instável, emotiva, e, por isso, extremista e manipulável – uma multidão terrivelmente parecida com o “povo”, a quem a “democracia” podia confiar o seu destino no futuro próximo. Essa turba condenava “democraticamente” Jesus e assim acabava por reforçar o dogma do Sinédrio e o poder de Pilatos.’ (p. 129)
**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)
*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'
Imagem recolhida de http://www.tenacitas.pt/producto/a-crucificacao-e-a-democracia/