segunda-feira, junho 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 13 | Mistério na mina dos mouros

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*




- Pode lá um lugar chamar-se ‘o que está para além dos limites’?! – Deixou escapar, muito intrigada, M., quando o ti’ Saul, de queixo pousado sobre o seu tosco cajado, lhe explicou o significado do nome daquele lugar.
- Não te admires. Os lugares guardam memórias, guardam lembranças longas e, tantas vezes, duras. É dessas memórias que falam os nomes dos lugares. É dessa memória que fala este lugar: ‘Cogulo’, ‘o que está para além dos limites de todas as medidas’, ‘o que ultrapassa as bordas das rasas’.
- Vejo mistério, no seu olhar, ti’ Saul.
Encostado ao velho fontanário, ti’ Saul parecia perdido no infinito. Parecia não a ouvir.
E continuou.
- Um dia, talvez já ninguém lembre que eu aqui passava os meus dias. Talvez por aqui passem os apressados da vida, sem se aperceberem do que aqui se guarda do mais profundo da vida. Mas ouvirão, sem perceberem, que este é o lugar onde as rasas limpavam os excessos, os excessos com que a vida nos testa os limites. Não saberão que é isso que diz o nome singular que estranharão, na maioria das vezes, sem perguntar o que ele diz. Mas aos que arriscarem perguntar, alguém recordará que aqui habita, ainda, a sabedoria de um Saul.
- Fale, Ti’ Saul! Fale!
O ti’ Saul parecia estar mesmo à espera deste pedido.
Respirou fundo e lançou-se à história.
- Passo os meus dias aqui. Sentado, encostado ao cajado, ouço, entre corridas, os miúdos que parecem desejar muito chegar à escola. Sei que o fazem por divertimento, porque, da escola, não me parece que queiram muito saber… Vão uns atrás dos outros. Só ouço os restos do meu nome, junto à curva em que os vejo desaparecer. Fica o ‘Saul’ a ecoar-me aos ouvidos. De vez em quando, lá para um, porque sabe que sempre tenho no bolso um dos caramelos comprados na loja do Baltasar. – Há quanto tempo já foi para a eternidade! Ficaram os filhos com a loja, mas, até quando?! -. Com quem tenho mais longas conversas é com os abandonados da vida. Os que correm, seguem para diante… São o que erram que aqui se alongam no tempo comigo.
- ‘Alongam no tempo comigo’, ti’ Saul? Que coisa bonita a que acaba de dizer. – Espantou-se M.
- Sim, alongam-se no tempo comigo. É isso que acontece com os que se decidem a conversar comigo. O tempo pára para mim. O tempo pára para eles. Alonga-se, junto.
- E de que falam, Ti’ Saul?
- Quase sempre começamos pelas maleitas da vida para nos decidirmos a enfrentar o que as maleitas mascaram: as cicatrizes do tempo. Pensam, os que correm sem rumo, que devo dormir e fazer deste lugar a minha morada. Moro ali em frente… Naquela janela. É ela a minha morada. Aqui, vejo-me morar e vejo morar na vida os que sentem a vertigem do desespero.
Mas não moro aqui, nesta fonte sempre a jorrar. Quando se abeiram de mim os que erram, vou, com eles, à mina que se esconde atrás de mim.
- Não sabia que havia aqui uma mina. – M. percebia que vinha aí história…
- Chamamos-lhe ‘Mina dos mouros’. Os mouros que, em tempos, por aqui combateram os cristãos e que partiram, deixando, porém, o murmúrio de um dia poderem voltar.
- Poderia ser, então, a ‘mina dos murmúrios’? – Perguntou M. de brilho nos olhos.
Ti’ Saul fez que não ouviu… Mas o silêncio falava.
- Se reparares, a mina tem forma, mas não vês que dela possa sair água.
M. olhou, atentamente. A cabeça assentia e acompanhava a surpresa dos olhos. Não se via que pudesse haver água e que, sequer, pudesse algum dia ter dali saído algo que saciasse sede.
Os olhos de M. eram perguntas.
- Nesta mina, sacia-se uma sede. Uma sede que, se não saciada, nos mata. Atinge o mais íntimo do nosso íntimo. Morremos de não a saciar. Mas não há bilhas nem cântaros, nem forma de dela tirar água…
M. não percebia. O lugar parecia ter a forma de um regaço, mas de água, nem sinal…
Ti’ Saul prosseguiu.
- Um dia, há muitos anos, tendo passado para a escola todos os gaiatos da terra, veio a tia ‘saura, a quem muitos chamavam ‘madrinha’. Conhecia-a bem. Vivia do outro lado da terra, na encosta da santa Quitéria. Uma mulher sofrida. Sempre bondosa. Tinha um olhar brilhante e um sorriso de quem adivinha as dores dos outros sem eles ainda terem ousado dizer que as têm. As cicatrizes da vida mantinham crosta na sua pele. Mas escondia-as. Eram suas. Não tinha de as fazer sentir aos outros. Era assim a tia ‘Saura. Perdera um filho, ainda na flor da idade… Entretanto, o marido. Cuidava dos seus restantes três filhos. Singravam na vida. Mas veio a peste e levou a mulher de um deles. Uma nora amada, muito amada. Dois filhos pediam o colo da mãe precocemente arrancado. O tempo não esperara muito para lhe levar o filho, entretanto enviuvado. Dois netos sem pai nem mãe… Quantas lágrimas chorará uma mãe que vê ser colhido o fruto do seu ventre? Rios de lágrimas!...
Mulher de fé, sentira-se tentada a perguntar a Deus, como Job, onde Se escondia quando lhe morrera o primeiro filho e o marido, e a nora e, agora, o segundo filho, deixando órfãos os seus dois netinhos?!... Vinha, por isso, ali à mina. Àquele lugar onde a rasa desvenda o que excede os limites, o cogulo. – Ah, quantos limites já se excederam na vida daquela mulher! - Vinha murmurar com Deus. A sede de luz, de esperança, de brilho de aurora, fazia-a vir ali. Ali, depositavam-se as grossas lágrimas que, terra dentro, chegariam à mão do Criador de Adão. Aquela entrada de mina em forma de regaço colhia as lágrimas para as levar até ao Oleiro. O barro original empapava-se das águas saídas dos olhos de todas as mães que, antes do tempo, veem os filhos bater à porta do eterno.
M. ouvia, enquanto duas grossas lágrimas desciam, lentamente, pelo seu rosto.
Ti’ Saul prosseguiu.
- Haverá maior dor do que a de uma mãe ou de um pai de cujos braços é levado para sempre um filho? Chamo-lhes ‘alíberas’, aquelas que já não têm filho. Como uma mãe, outrora, junto ao seu filho tratado como rebelde… Devolveram-lho, sim, mas já cadáver. Do lado trespassado, jorrava sangue e água… e quantas lágrimas?! As de todas as mães e pais alíberos. As de todos os filhos órfãos… As de todos os massacrados de ontem, de hoje e de sempre. As dos rostos já sem lágrimas, ressequidos pelo gélido vento da morte.
Ti’ Saul fez um longo silêncio…
M. soluçava.
Ti’ Saul secou-lhe as duas lágrimas com a manga do casaco. Olhou-a, fixamente, e sussurrou-lhe.
- Para os errantes desta vida, chagados e cicatrizados pelo tempo, deve haver sempre um Ti’ Saul que lhes desvende a mina dos mouros, a mina dos murmúrios. Podes sê-lo tu, também?




*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

sábado, junho 07, 2025

Sabes, leitor... | 18 | Marca de água do livro de Gabriele Kuby, 'A geração abandonada'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Gabriele Kuby, A geração abandonada, Cascais, Princípia Editora, 2021.

Gabriele Kuby é o que designo como uma ‘autora-pirilampo’. Caracteriza os ‘autores-pirilampos’ a capacidade de manterem intensa uma luz que lhes é própria mesmo em tempos de densa escuridão. E, como os pirilampos, são escassos e correm o risco da extinção: a poluição dos tempos e lugares colocam em perigo a sua existência.
Distintamente, porém, dos coleópteros a que também se dá o nome de ‘vaga-lume’, estão muito conscientes da fragilidade em que assenta a sua existência.
Gabriele Kuby bem o sabe. Está claramente consciente de que os tempos decadentes (e, por isso, de treva) em que vivemos se inebriam com a sua vacuidade e ufanam-se dela, sendo arrogantes e vigorosos. E, por isso, não teme, mas sabe como rugem as vozes que a querem silenciar.
Kuby bem sabe de que linhas se fazem os tecidos dos teares de hoje, pois também ela, enquanto socióloga, moveu as peças que enredam as lãs do novelo e constroem os hábitos com que, hoje, se veste a humanidade.
Mas em bom tempo dali se afastou e hoje, após uma tardia conversão ao catolicismo, no final da década de noventa, tornou-se uma voz que desperta do torpor coletivo que parece ter tomado conta do mundo, em particular do ocidente.
Os seus livros, de que se destaca o seu ‘a revolução sexual global’, secundando por este ‘a geração abandonada’, poderiam ter a forma de um relógio de mesa-de-cabeceira, pois inquietam e acordam consciências.
Neste tempo, em que as retóricas tornaram comum e vulgar o que é exceção e pretendem excecional o que é comum, a voz de Gabriele Kuby incomoda, porque nos coloca diante da verdade dos factos.
Kuby é corajosa. Sabemos (e ela também o sabe) como ousar questionar as agendas do ‘politicamente correto’, do ‘wokismo’, é colocar-se a jeito de ser cancelado. Mas, como já vamos ouvindo algumas vozes recordar, se lutámos pela liberdade, foi para nos subjugarmos a quem nos quer impor uma ideologia que nega o real e se propõe reconstruí-lo sobre constructos mentais artificiais? Kuby não aceita essa subjugação.
Ousa questionar, voltar à raiz das coisas, aos alicerces da realidade humana.
Desmascara as farsas e arrisca propor caminhos, em nome de uma autêntica liberdade, de uma genuína compaixão, de uma efetiva solidariedade humana.
Como se, perante os taipais com que se pretende disfarçar os efeitos de um tsunami, escolha a autenticidade dos escombros para, diante deles, reconstruir um sólido futuro. Os taipais não passarão, para Kuby, de um verniz que oculta o caos que é preciso olhar de frente para que se possa construir uma realidade robusta.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

Gabriele Kuby mostra, neste livro, grande inteligência. Bem sabemos, porém, que os seus ‘não leitores’ dirão dela, apenas os chavões habituais, assentes nos inúmeros preconceitos de quem não quer ousar parar para refletir. A vertigem de andar para diante, sem que saibam onde fica esse ‘adiante’, é que os move. Kuby propõe-se questionar se temos andado para diante ou se, pelo contrário, em nome do avançar, do progredir, nos temos desumanizado, cindido e dividido cada vez mais.
A resposta a esta questão fundamental encontramo-la no início e no final do livro.
Nas últimas páginas, encontramos a síntese de todo o caminho feito: ‘O mundo em que vivemos – aquele em que as crianças nascem – pulverizou e expôs a arbitrariedade das decisões humanas. O que devia estar unido foi separado: o corpo da alma, o homem da mulher, a sexualidade da fertilidade, a procriação da sexualidade, a crianças dos seus pais biológicos. Não terá chegado a altura de juntarmos novamente o que deve estar junto – corpo e alma, homem e mulher, sexualidade e fertilidade, pais e filhos?’ (p. 266)
Diante desta constatação se define a linha estruturante do livro: denunciar o que tem dividido o ser humano que somos, a realidade humana em que nos fazemos, propondo modos de superar essas cisões. No seu livro, a nossa autora percorre temas como o aborto, a educação sexual no contexto escolar, a equiparação dos múltiplos modelos de agregação de pessoas à estrutura familiar, as barrigas de aluguer, a procriação tecnicamente realizada, o impacto da pornografia no crescimento das novas gerações, as consequências das políticas de facilitação do divórcio, as estratégias de manipulação da opinião pública ao serviço da promoção da teoria de género, etc. O seu prisma é o de uma autora de contexto alemão, mas um leitor português sentirá que, lá como cá, as linhas repetem-se…
Os dados que recolhe (todas as suas afirmações estão blindadas, pois está consciente de quanto os adversários da sua tese farão para as descredibilizar) arrepiam. Demonstram como, em nome do individualismo que nos vem isolando cada vez mais, estamos a tornar esta geração um joguete nas mãos de adultos autocentrados e que perderam o sentido da dedicação e do sacrifício pelos mais novos. Importa a satisfação pessoal, mesmo que ela custe o direito a ter pai e mãe ou a ser criança, ou a ser amado, ou a ser respeitado no direito a saber donde se vem, ou, ou, ou…
As páginas deste livro lacrimejam: vertem as lágrimas não derramadas, de tão secos os sacos lacrimais de todas as vítimas de ideologias que rompem o que é humanamente desejável – o direito a nascer-se num quadro de amor, segurança e estabilidade.
Kuby retoma questões a que é preciso regressar como na primeira hora em que se tomou de assalto a convicção de que eram incontornável seguir a resposta então adotada: como poderá pensar-se o aborto como um direito quando em causa está a vida de um desprotegido humano? Como poderá deixar-se sobrepor o direito dos pais à felicidade no amor sem acautelar o direito dos filhos à felicidade de viverem a segurança de uma família originariamente constituída? Como poderá pretender-se assegurar um putativo direito a ter filhos quando, originariamente, deveria, sim, reconhecer-se um direito dos filhos a encontrarem nos seus pais biológicos o amor e o cuidado? Como poderá pretender-se que se, tecnicamente, é possível gerar um filho assim será de se fazer, sem acautelar as condições ético-morais em que a possibilidade técnica deverá ser concretizada? Poder fazer é sinónimo de ser legítimo?
Kuby ousa olhar para as consequências do que foram sendo decisões vertiginosas, tantas vezes tomadas em contextos de pressão mediática e estrategicamente bem estruturadas para que não se tivesse tempo de pensar.
E olha-as sob o prisma da grande vítima de todas estas decisões ditas ‘progressistas’: as crianças, os filhos! Eles são, com efeito, a geração abandonada de quem se deixou compadecer Kuby e que nos convida a que nos associemos à sua compaixão.
Contra os que nos querem vender a ideia de que os compassivos são os que querem mudar as leis em nome de abstratas inclusões, Gabriele Kuby fala de uma genuína compaixão que sofre as dores reais das crianças reais, filhas e filhos reais de famílias reais. Fala da realidade que leis inumanas, sustentadas no individualismo e num entendimento solipsista da liberdade, fragilizaram e fragmentaram. E, de forma corajosa e grávida de esperança, Gabriele Kuby desafia como que à recuperação da paciência do ourives que trabalha a filigrana: os cacos já se quebraram em pedaços próximos da pulverização, mas, paulatinamente, será possível reunir o que se quebrou. Este livro é um passo importante para que tal se torne possível. Assim seja acompanhada a sua publicação com profusa leitura. Os muitos leitores de Kuby poderão tornar-se, eles mesmos, ‘leitores-pirilampos’. E a escuridão clareará…

Na mesma página que o autor (citações)

‘Na nossa sociedade, as crianças são vistas em grande medida como um fardo. E ter e educar crianças não é, de facto, um conto infantil. É tarefa séria da vida. Vêm no mesmo pacote grandes alegrias e grandes sacrifícios. Durante a grande prosperidade, foi contada uma mentira a toda uma geração: que o divertimento é o sentido da vida, e que esse divertimento vem sem sacrifício ou sofrimento. De um momento para o outro, dar à luz destrói esta mentida. Eis nas nossas mãos um pequenino embrulho de humanidade, completamente indefeso, totalmente dependente de amor e cuidados.’ (p. 18)

‘Numa sociedade que coloca as necessidades dos adultos no centro, as crianças não se saem muito bem.
• As crianças são evitadas.
• As crianças são mortas antes do nascimento se forem indesejadas.
• As crianças são produzidas em laboratório se forem desejadas.
• As crianças são enganadas sobre a sua linhagem.
• As crianças são congelas como embriões e usadas para investigação.
• As crianças crescem em úteros de aluguer.
• As crianças são compradas e educadas por casais do mesmo sexo.
• As crianças são entregues nas mãos de estranhos desde a infância.
• As crianças são sexualizadas logo desde o jardim-de-infância.
• As crianças são confundidas sobre a sua identidade sexual.
• As crianças são doutrinadas sexualmente desde a escola primária.
• As crianças são encorajadas a «mudar» de género.
• As crianças são expostas aos smartphones.
• As crianças são expostas à pornografia.
• Imensas crianças são vítimas de abuso sexual.
• As crianças ficam órfãs pelo divórcio.
• As crianças têm de crescer em famílias destroçadas.
• As crianças ficam tristes.
• As crianças ficam doentes.
• As crianças são «dopadas» com Ritalina.
• As crianças são despojadas da sua infância.
As crianças são o nosso futuro. As crianças são humanas. As crianças têm dignidade – logo desde o início.
Vamos devolver a infância às crianças, e o futuro novamente a todos.’ (pp. 20-21)

‘O ato de procriação dá prazer quer a animais, quer a seres humanos. O homem e a mulher são atraídos um pelo outro com uma força que pode ultrapassar a vontade e a razão, para constituírem uma união biológica. Mas existe uma grande diferença entre animais e pessoas: nos animais, essa força irresistível surge durante um ciclo anual de reprodução. Nas pessoas, a atração sexual é independente de um instinto imperativo de procriação. Isto dá liberdade para o amor esfusiante, a alegria do desejo, os dramas de partir o coração ente amor e desejo, e os abismos da perversão.’ (p. 26)

‘Como pode a humanidade – não, não é a humanidade, são os influenciadores das tendências ideológicas – comprar a ideia de que a maternidade é um mero incidente para as mulheres, algo que se pode esquecer sem mais, e sacrificar no altar da carreira e da liberdade sexual?’ (p. 30)

‘Se as mães forem respeitadas, também os seus filhos serão respeitados. Mas esta alegação é apenas motivo de troça e ridículo entre as feministas sem filhos que lutam pelo direito ao aborto. Na Alemanha, 67% das jornalistas não têm filhos. Não admira que peguem nos megafones feministas. Elas nunca foram desafiadas por filhos para deixarem de estar autocentradas. Isso não se aprende no redemoinho dos escritórios editoriais, mas no processo de afinação do casamento e da responsabilidade parental.’ (p. 31)

‘Vivemos numa época em que a liberdade individual se tornou a virtude mais importante. Queremos reinar sobre a vida e a morte, e consideramos que isso é absolutamente indispensável para a nossa liberdade. Sou eu quem decide se e quando tenho um filho – e quando não tenho. Os meus direitos e necessidades estão primeiro lugar. Não há nenhum ser mais importante do que eu.’ (p. 33)

‘A missão de vida da americana Margaret Sanger (1879-1966) foi controlar a fertilidade feminina. A sua motivação era evitar que as classes baixas – especialmente a negra – se reproduzissem, porque a sua taxa de natalidade era mais alta do que a da classe alta branca.
A isso, à ideia de tomar medidas ao nível biológico para «melhorar» a raça humana, chama-se eugenia. Legalizar a contraceção e o aborto foi a missão de vida de Margaret Sanger. Em 1921, Sanger fundou a American Birth Control League, que em 1942 passou a denominar-se International Planned Parenthood Federation (IPPF).
Hoje em dia, Margaret Sanger seria afastada e legalmente punida pelo seu racismo. Mas os seus métodos e o seu desrespeito pela dignidade humana foram adotados pela IPPF, uma organização internacional que tenta reduzir a população mundial através do aborto de milhões de crianças. ’ (pp. 39-40)

‘O sofrimento da conceção indesejada pode ser devastador. Uma mulher nesse sofrimento precisa de ajuda, e pode encontrá-la.
Numa cultura de um individualismo extremo, em que tudo gira em torno dos direitos e desejos das pessoas, há uma tentação desmesurada para procurar uma saída: «Livra-te simplesmente dele, é só um punhado de células, o seguro de saúde paga as despesas, depois de uns dias tudo terminou e a vida pode continuar normalmente.
A sério?
Eis as estatísticas: todos os anos, em todo o mundo, mais de 50 milhões de mulheres decidem matar uma criança no seu útero. Na Alemanha, segundo Gabinete Federal de Estatística, 101000 mulheres fizeram-no em 2018.’ (p. 50)

‘A 28 de maio de 1993, o Tribunal Constitucional Federal declarou […] que:
«O embrião desenvolve-se enquanto pessoa, não para ser uma pessoa.»’ (p. 53)

‘A sentença que prescreve que o aborto é «ilegal mas isento de consequências» esvazia o Estado de Direito.’ (p. 55)

‘Com racionalizações bonitas mas sofisticadas, os tribunais de todo o mundo justificam o abandono da obrigação absoluta do Estado de proteger as vidas dos seus cidadãos.’ (p. 56)

‘A ferramenta mais importante para a confusão mental e moral é a distorção sistemática da linguagem para manipular a consciencialização das pessoas.
Um exemplo disso é a palavra «igualdade». Entre que pessoas é que o aborto promove a igualdade? Entre a mulher e o homem, que não pode dar à luz? A criança seguramente não obtém a igualdade porque a vida humana lhe foi retirada.
E «aborto» - que palavra tão estranha! Opera como um tranquilizante mental para mascarar a realidade de uma criança ser morta no útero. Algo é «removido», a gravidez é «interrompida» como se pudesse recomeçar, ou é «terminada», rápida, indolor e sem consequências – ou assim se faz acreditar à mulher.
A cessação da gravidez é apenas uma meia-verdade. Ela cessa porque termina violentamente a vida da criança.
O «tecido da gravidez» ou o «punhado de células» é descartado. Para os pais que querem um filho, o «punhado de células» é desde o início um direito ao filho. Eles celebram quando o teste de gravidez é positivo. Radiantes de felicidade, contam à família e aos amigos que vem a caminho uma criança. E observam extasiados as reações dos irmãos mais velhos do bebé, quando recebem a notícia – há dúzias de vídeos no Youtube a dar conta disso. Eles mostram entusiasticamente a primeira imagem da ecografia do seu bebé: E até poderão colocá-la na porta do frigorífico, onde os filhos possam ver todos os dias o novo irmão. Nunca lhes ocorre falar de «tecido da gravidez». E como é intenso o sofrimento de toda a gente quando esse bebé se perde por um aborto espontâneo!
A organização na Alemanha que mata estes bebés no útero a troco de lucro, com apoio governamental, chama-se Pro Familia, apesar de na verdade, destruir as famílias.’ (pp. 58-59)

‘Na psicologia da comunicação, esta técnica denomina-se «reenquadrar». Quando algo é colocado num novo enquadramento, as pessoas avaliam-no de forma diferente. O que é negativo parece subitamente positivo. Por exemplo, um ato que pese na consciência de alguém com culpa é colocado no enquadramento do «direito à autodeterminação» e da «escolha autónoma». Mas isso só dura até o ato ser realizado. O que acontece a seguir é o que foi bem descrito por Goethe no seu livro Os anos de Aprendizagem de Wilhem Meister: «Despeja-se a culpa na desafortunada pessoa e a seguir deixa-se que ela sofra a dor». Isto caracteriza a síndrome pós-aborto (SPA), a grave consequência do aborto.’ (pp. 59-60)

‘Com a descoberta da fertilização in vitro, tornou-se tecnicamente possível e legalmente permitido roubar voluntária e intencionalmente o parentesco a uma pessoa.’ (p. 73)

‘A mulher, ou o casal, que recorra aos métodos de reprodução artificial embarca no que pode ser uma viagem de um ano numa montanha-russa de esperança, ansiedade, humilhação, alegria e medo, que em quatro de cada cinco casos acaba numa desilusão profunda.’ (p. 79)

‘Para crianças TRA [tecnologia reprodutiva artificial], o risco de esquizofrenia e de psicose era 27% mais elevado, de ansiedade e outras perturbações neuróticas como a anorexia, 37% mais elevado, de perturbações comportamentais, como PHDA, 40%, e de perturbações do desenvolvimento mental, como o autismo, 22%, quando comparadas com crianças geradas por meios naturais.’ (p. 84)

‘Uma criança gerada numa barriga de aluguer cresce sozinha e não é amada num útero alugado. Anteriormente, o útero duma mulher era um local idílico e seguro, que imprimia no coração humano um irreprimível anseio por uma unidade perfeita. Para a criança gerada por uma barriga de aluguer, o útero é uma masmorra escura em que não entra um único raio de amor ou de antecipação, porque a mãe sabe que tem de entregar a criança a estranhos imediatamente após o nascimento. Ela tem de se formar a não ter qualquer relacionamento com a criança que freme dentro dela. Tem de refrear a alegre afeição, porque ela se transformaria inevitavelmente numa grande dor depois do nascimento.’ (p. 87)

‘A Índia, que em tempos foi a fábrica de bebés do mundo, com 3000 clínicas de reprodução, baniu a maternidade comercial através de barrigas de aluguer em 2019, e a Tailândia em 2015. Mas o negócio é florescente na Ucrânia e na República Checa.’ (p. 89)

‘Nenhuma pessoa tem direito a um filho; o filho é que tem direito aos seus pais biológicos.’ (p. 94)

‘As mulheres podem agradecer à «libertação das mulheres» o facto de apenas valerem o que o seu emprego lhes paga. Cuidar de crianças não conta como trabalho. A mulher que o faz não recebe nenhum reconhecimento, nenhuma ajuda financeira, e nenhuma pensão de reforma adequada, mesmo estando a fazer o trabalho mais importante de todos. Não só ela dá a vida a crianças que vão financiar as pensões duma população cada vez mais envelhecida, como dela dependem o futuro de toda a sociedade, a sua mera existência, o desenvolvimento das duas capacidades e a sua personalidade.’ (p. 113)

‘Cada resistência à doutrinação sexual das crianças em idade escolar é abafada pelos meios de comunicação social, ou atribuída ao mundo obscuro dos resistentes que perderam o comboio do pós-modernismo.’ (p. 164)

‘A assunção fundamental da nova educação sexual é a ideia de que uma criança é um ser humano que desde o início tem direito à atividade sexual e a experiência de luxúria tal como os adultos têm. Qualquer que seja o documento sobre educação sexual abrangente […] em que se pegue, todos defendem o mesmo: uma nova pessoa sexualizada sem identidade de género ou identidade familiar. Essa pessoa pode mudar de género. Ele/ela/diverso reduz a sexualidade à luxúria física, desconhece limites morais para a atividade sexual, evita a procriação através da contraceção e do aborto, e encara o casamento de um homem com uma mulher como uma relíquia do tempo patriarcal.’ (p. 164)

‘A International Planned Parenthood Federation tem 151 organizações filias e representações em 180 países, e por isso imenso poder para implementar os seus programas em todo o mundo.’ (p. 169)

‘A «liberdade de escolha» de matar um bebé no útero da mãe é apresentada às mulheres e aos jovens com outra expressão codificada: «saúde e serviços reprodutivos». No obscuro jargão da ONU e da EU, o acesso universal aos contracetivos, o aborto e a educação sexual nas escolas são globalmente apresentados como «os níveis mais elevados de cuidados de saúde». Mas as promessas revelam-se novamente ciladas em prol das estratégias dos revolucionários sexuais, que fazem o oposto do prometido.
Sexo seguro é algo que não existe. O sexo promíscuo levou a uma epidemia de doenças sexualmente transmissíveis – um quarto de todas as adolescentes americanas sexualmente ativas já as contraiu. A gravidez também não pode ser evitada a 100% como um efeito secundário, indesejável do sexo, mas produz novos clientes para a indústria abortiva.’ (p. 169-170)

‘Os educadores sexuais normalmente chegam de fora e dão a impressão de serem «especialistas», mais competentes portanto do que os professores ou os pais. Simultaneamente, apresentam-se aos estudantes como amigos, pessoas de confiança e defensoras contra pais severos e as suas ideias morais fora de moda. Eles desviam as crianças e os adolescentes, cujo desejo sexual foi prematuramente estimulado, para os seus objetivos contrarrevolucionários. Eis os seus métodos:
• Descrever a sexualidade permissiva como normal e generalizada: «Toda a gente o faz»;
• Criar pressão no grupo de crianças da mesma idade;
• Destruir o sentido do pudor brincando com pénis de plástico, vaginas de peluche, preservativos, verbalizar processos sexuais em toda a turma, bem como papéis sexualmente orientados e exercícios físicos;
• Descrever pormenorizadamente o comportamento sexual, por palavras, imagens e filmes;
• Descrever as doenças sexualmente transmissíveis juntamente com a gravidez, como efeitos indesejados do sexo;
• Não mencionar o casamento e a família;
• Descrever estruturas familiares degeneradas como iguais;
• Educação paritária: treinar e utilizar adolescentes da mesma idade para a educação sexual.
Que ninguém se deixe enganar pela propaganda que se refere a esta educação sexual como moderna, esclarecida, «científica» e amiga dos jovens, e aos seus oponentes como resistentes fundamentalistas.’ (p. 171)

‘As elites políticas dos países ocidentais estão a promover a dissolução da identidade de género: o Presidente americano Barack Obama disparou o foguete da fase seguinte do LGBTIQ no dia seguinte ao da legalização do «casamento» entre pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal, a 26 de junho de 2015. E deu início à «batalha das casas de banho» ao ordenar às escolas que permitissem aos alunos transsexuais a utilização da casa de banho ou do vestiário que preferissem. Isto significava que um rapaz que alegasse ser uma rapariga podia meter-se no chuveiro com as raparigas, por decreto presidencial.’ (p. 173)

‘Antes e depois da transformação, a taxa de suicídio para as pessoas transgénero é oito vezes mais alta do que para a média da população – 41% versus 5%.’ (p. 175)

‘Como é possível que no período de apenas uns anos a destruição da própria identidade de género duma pessoa – com consequências graves para toda a vida – se tenha tornado uma moda entre os jovens, e seja apoiada pelo Governo e pelos meios de comunicação social? Como é possível que nem os tribunais nem as autoridades médicas tenham intervindo, e evitado os graves prejuízos para as crianças?
Num manual de 65 páginas redigido por uma das maires firmas de advogados do mundo, juntamente com a Fundação Thomson Reuters (comunicação social) e uma organização da juventude LGBTIQ, foram delineadas estratégias e táticas para alterar a consciência das massas, os direitos dos pais à educação dos filhos, e a legislação. O documento intitula-se Only Adults? Good Practises in Legal Gender Recognition of Youth.
Um grande obstáculo ao direito à livre escolha do género pelas crianças e pelos jovens são os direitos dos pais que recusem o seu consentimento. O manual explica táticas experimentadas para os grupos de lobbying evitarem o surgimento de resistência, e a forma de implementar leis antes que a opinião pública saiba sequer que elas existem:
Ajam mais depressa do que o Governo e publiquem propostas legislativas progressistas antes que o Governo o faça;
Escondam a vossa campanha atrás da cortina de fumo doutra campanha que tenha aceitação em geral. Por exemplo: direitos transgéneros para as crianças no âmbito da campanha a favor dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo;
Evitem relatórios na comunicação social; em vez disso, façam lobby junto dos políticos.
Se o debate entre os grupos de interesse em causa for substituído por estratégias de manipulação sofisticadas, e os políticos e os juízes estiverem dispostos a ler pela mesma cartinha, então a democracia será esvaziada de dentro para fora até que, finalmente, deixe de existir direito à diferença de opinião ou de atuação.’ (pp. 177-178)

‘«se não lhe pedem para pagar o produto, você é o produto.»’ (p. 208)

‘O divórcio despedaça as fundações.’ (p. 222)

‘Porque é que a nossa sociedade só considera a «felicidade» dos pais, e não os sofrimentos dos filhos?’ (p. 222)

‘Porque é que a sociedade não vê mal nenhum no facto de os pais esperarem que os seus filhos aguentem tudo isto, e exigirem que eles o aceitem sem se queixar? Viver doravante com apenas um progenitor; trocar de casa de duas em duas semanas; ser o pneu sobressalente numa família patchwork; ter de aceitar o novo parceiro da mãe ou a nova parceira do pais mesmo quando isso lhe rasga o coração…
A resposta é tão simples como dissimulada: para que o problema da culpa nunca seja levantado. Muitos estados norte-americanos eliminaram o princípio do divórcio culposo por volta de 1970. Na Alemanha, basta que um casal viva separado durante um ano; depois disso, um dos parceiros pode obter o divórcio mesmo contra a vontade do outro.’ (p. 223)

‘Se olharmos para o contexto da família nos grupos de risco, a imagem é ainda mais drástica. A grande maioria dessas crianças e desses adolescentes em sofrimento vem de famílias sem pai:
63% de suicídios juvenis;
76% de abandono escolar;
74% de gravidez na adolescência;
90% de fugas de casa e de crianças sem casa;
70% de adolescentes em estabelecimentos estatais;
85% de jovens a partilharem casa;
75% de jovens em centros de reabilitação do consumo de drogas;
88% de crianças e adolescentes com problemas de inserção.’ (p. 238)

‘A família é anterior ao Estado. O Estado depende da família, e não o contrário.’ (p. 248)

‘Qualquer família saudável é luz e sal no mundo. Qualquer jovem saudável é uma pedra viva para o futuro.’ (p. 251)

‘O mundo em que vivemos – aquele em que as crianças nascem – pulverizou e expôs a arbitrariedade das decisões humanas. O que devia estar unido foi separado: o corpo da alma, o homem da mulher, a sexualidade da fertilidade, a procriação da sexualidade, a crianças dos seus pais biológicos. Não terá chegado a altura de juntarmos novamente o que deve estar junto – corpo e alma, homem e mulher, sexualidade e fertilidade, pais e filhos?’ (p. 266)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

 

quarta-feira, junho 04, 2025

Os muitos trabalhos de Leão

  Artigo publicado em https://agencia.ecclesia.pt/portal/os-muitos-trabalhos-de-leao/

e em https://diocese-aveiro.pt/cultura/luis-manuel-p-silva-os-muitos-trabalhos-de-leao/

Introdução

Esta reflexão não pretende ser um ponto de chegada. Será, antes, pela intenção com que a realizei, um ponto de partida para muitas outras reflexões que os leitores queiram prosseguir, tomando por referência, eventualmente, o que aqui faço.

Este texto nasce de uma constatação pessoal. Quando me foi enviada a notícia de que estava eleito um novo Papa e que já escolhera, para nome, Leão, logo comentei, quando me perguntaram ‘porquê Leão XIV?’, o que vim a verter para texto: ‘Um Papa da Doutrina Social da Igreja, na linha de Leão XIII’, ‘Papa atento ao mundo e aos problemas dos operários’.

As posteriores explicações de Leão XIV confirmaram esta imediata intuição, acrescentando-lhe a nota de que estará atento à nova ‘revolução em curso’, a revolução provocada pela inteligência artificial.

Quando, depois desta intuição que pouco tem de surpreendente para quem conhece um pouco da história mais recente da Doutrina Social da Igreja, me propus interrogar a História para saber mais sobre os outros Papas que tinham escolhido o nome de ‘Leão’, à constatação da condição de ‘Magno’ de Leão, que partilha o título com apenas um outro Papa, S. Gregório, o Magno (3 de setembro de 590 a 12 de março de 604), somei a verificação de que os pontificados de alguns dos anteriores 13 Leões tinham estado associados a momentos marcantes da história da Igreja com significativas repercussões, ainda hoje.

Propus-me, então, realizar esta breve procura que destaca alguns ‘sinais’ (positivos e, nesse caso, a prosseguir; ou, então, ‘sombrios’ e, nesse caso, a superar) que nos deixam os anteriores pontificados leoninos.

Para tal, segui quatro fontes: (a) Michael Walsh, Dicionário de Papas[1], (b) Manuel Santos Júnior, Os Pontífices[2] e (c) Heitor Morais da Silva, História dos Papas: luzes e sombras[3], confirmando, por fim, os dados em (d) www.vatican.va. Refiro estes dados em primeiro lugar*.

No segundo conjunto de informações, a cidade indica o local de nascimento, as datas referem-se ao período do pontificado.

Após uma breve síntese dos dados mais objetivos, farei a reflexão ‘significativa’, sublinhando o que considero serem os mais reptos que, da época que a nossa analepse revisita, emergem para os nossos tempos.

 1- Breves informações

 

Três constatações iniciais:

- Dos 13 Papas que, até Leão XIV, tinham escolhido o nome de Leão, apenas um, Leão IX, não tem origem na península itálica.

- Cinco de entre os Papas de nome ‘Leão’ foram canonizados: Leão I, o Magno, Leão II, Leão III, Leão IV e Leão IX.

- Um dos Papas de nome Leão, Leão VIII, era leigo e teve de ser ordenado para poder assumir a missão de Papa.

 

S. Leão I Magno

[*45.º Papa] [Nasceu em Tuscia | Pontificado: 29 de setembro de 440 a 10 de novembro de 461]

 (Roma [Manuel Júnior refere Volterra]| 440-461 | 19 de setembro de 440 a 10 de novembro de 461 | 21 anos de pontificado) Segundo Manuel Júnior, tipifica o modelo de sumo pontífice, sendo tomado como exemplo, nos séculos posteriores.

 

S. Leão II

[*80.º Papa] [Nasceu na Sicília | Pontificado: janeiro de 681; 17 de agosto de 682 a 3 de julho de 683]

(Sicília | 682-683 | 17 de agosto de 682 a 3 de julho de 683 |11 meses de pontificado) Segundo Manuel Júnior, introduziu a água benta nos ritos litúrgicos.

 

S. Leão III

[*96.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: 26/27 de dezembro de 795 a 12 de junho de 816]

(Roma | 795-816 | 26 de dezembro de 795 a 12 de junho de 816 [Segundo Morais Silva, morreu a 11 de junho de 816] | 21 anos de pontificado)

 

S. Leão IV

[*103.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: 10 de maio de 847 a 17 de julho de 855]

(Roma | 847-855 | 10 de abril de 847 a 17 de julho de 855 | 8 anos de pontificado) – Segundo Manuel Júnior, foi o primeiro a escrever o ano do seu pontificado nos documentos; refere, ainda, que edificou a ‘cidade leonina’, uma fortificação em redor do Vaticano.

Leão V

[*118.º Papa] [Nasceu em Ardea, sul de Roma | Pontificado: Julho de 903 a setembro de 903]

(Ardea [Sul de Roma?] Agosto e Setembro de 903 [deposto por Cristóforo (b)/Cristóvão (a)] | morreu em 904 | Segundo Walsh, o seu pontificado durou cerca de um mês; Morais da Silva fala em três meses.)

Leão VI

[*123.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: Maio/junho de 928 a dezembro de 928 ou janeiro de 929]

(Roma | junho de 928 a janeiro de 929; Manuel Júnior só refere 928, o que parece confirmar-se com a informação recolhida de Morais da Silva que refere que morreu em dezembro de 928 | 7 meses de pontificado)

Leão VII

[*126.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: janeiro de 926 a 13 de julho de 939]

(Roma | 3 de janeiro de 936 a 13 de julho de 939 | 3 anos de pontificado)

 

 

Leão VIII

[*131.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: 4/6 de dezembro de 963 a março de 965]

(Roma |4 de dezembro de 963 a fevereiro de 964 [deposto] | morreu a 1 de março de 965 / Manuel Júnior refere ‘963-965’ | cerca de dois meses de pontificado, entre João XII, que fora eleito com apenas 18 anos, e Bento V, aclamado pelo povo contra a vontade do imperador Otão I). Segundo Morais da Silva, era leigo, tendo recebido, no mesmo dia, os diversos graus da ordem.

 

S. Leão IX

[*152.º Papa] [Nasceu na Alsácia | Pontificado: 2/12 de fevereiro de 1049 a 19 de abril de 1054: Nome de nascimento: Brunone dos Condes de Egisheim]

(Egisheim [Alsácia] | 2 de fevereiro de 1049 a 19 de abril de 1054 | 5 anos de pontificado)

 

Leão X

[*217.º Papa] [Nasceu em Florença | Pontificado: 11/19 de março de 1513 a 1 de dezembro de 1521: Nome de nascimento: Giovanni de' Medici]

(Florença | 11 de março de 1513 a 1 dezembro de 1521 | 8 anos de pontificado)

 

Leão XI

[*232.º Papa] [Nasceu em Florença | Pontificado: 1/10 de abril de 1605 a 27 de abril de 1605: Nome de nascimento: Alessandro de' Medici]

(Florença | 1 de abril de 1605 a 27 de abril de 1605 | morreu por queda de um cavalo; 27 dias de pontificado)

 

Leão XII

[*252.º Papa] [Nasceu em Monticelli di Genga (Fabriano) | Pontificado: 28 de setembro / 5 de outubro de 1823 a 10 de fevereiro de 1829: Nome de nascimento: Annibale della Genga]

(Castello della Genga [perto de Spoleto] | 28 de setembro de 1823 a 10 de fevereiro de 1829 | cerca de 6 anos de pontificado)

 

Leão XIII

[*256.º Papa] [Nasceu em Carpineto Romano| Pontificado: 20 de fevereiro/3 de março de 1878 a 20 de julho de 1903: Nome de nascimento: Vincenzo Gioacchino Pecci]

(Carpineto Romano | 20 de fevereiro de 1878 a 20 de julho de 1903; Morais da Silva refere 20 de junho| 25 anos de pontificado)

 

2 - ‘Brilhos e trevas’ – os hercúleos trabalhos de ‘Leão’

(Uma nota prévia: evoco a figura mítica de Hércules, transfigurando o mito, que descreve, entre as doze missões (ou trabalhos) de Hércules, precisamente vencer um leão. Aqui, será Leão o protagonista e vencedor…)

2.1. – A luta contra os ‘Átilas’ e os desafios ecuménicos

A reflexão a que, agora, me proponho, nasceu da constatação de que, aos pontificados de Papas de nome Leão, a História permite-nos associar momentos particularmente significativos para os nossos tempos.

Entre estes, destaco, de imediato, três.

Para a relevância do primeiro, evoco a circunstância de vivermos tempos com marcas de beligerância e animosidade (latente e patente: o mundo vive situações de conflito armado em mais de 40 pontos do planeta). Mediaticamente, tem merecido particular destaque o conflito na Ucrânia, resultante de uma invasão de território soberano por um vizinho gigante. A situação pode ser iluminada pelo ocorrido no tempo do pontificado de Leão I, Magno, que, segundo a lenda, terá conseguido travar os avanços, em 452, sobre Roma do sanguinário Átila, ‘o flagelo de Deus’, à frente dos Hunos. Ontem, como hoje, talvez Leão possa fazer deste um legado vivo, travando as hordas que, de forma desumana, avassalam povos e gentes inocentes. Talvez hoje, como ontem, os novos ‘Átilas’ se deixem impressionar pela presença do Sumo Pontífice e recuem na sua decisão de tomar terras alheias.

Os dois seguintes merecem destaque pela atenção que venho dedicando a matérias de natureza ecuménica.

Não é de hoje a minha convicção de que, se nos momentos de rutura, na Igreja, tivesse havido serenidade e abertura disponível para a escuta, talvez o desfecho tivesse sido distinto do que a História veio a reservar-nos.

Entre esses momentos, merecem um regresso da memória os ocorridos em 1054 e 1517. No primeiro destes momentos, ocorre o cisma do Oriente, com que se consuma a separação entre as Igrejas de confissão Ortodoxa e a Igreja Católica. O encontro entre Miguel Cerulário e o Cardeal Humberto (mandatado pelo Papa Leão IX) revela-se agreste e consuma-se uma rutura que vinha, bem certo, a ser preparada desde, dizem os analistas, a queda de Roma, em 476 (e, com ela, do Império Romano do Ocidente). O Papa era, como dito, Leão IX que, porém, morre sem saber do desfecho desse encontro. Talvez, se tivesse recebido a informação, outra fosse a atuação. O seu temperamento conciliador faz crer que pudesse reverter o processo. Mas o que é certo e fica para a História é a consumação de uma rutura que, levantadas as excomunhões recíprocas, em 1966, continua, porém, a exigir caminho de encontro e diálogo. Talvez Leão XIV olhe para este momento da História e queira prosseguir, quem sabe se até uma unidade definitiva, o caminho ecuménico que, desde a Unitatis Redintegratio, tem foros de determinação oficial conciliar.

Um outro Leão, desta feita, já no século XVI, e numerado como décimo, pontifica quando se opera a reforma protestante, em outubro de 1517, sob a liderança de um monge agostinho: Martinho Lutero. Curiosamente, como Leão XIV que tão bem conhece o pensamento do grande Bispo de Hipona que Lutero radicaliza… Mas seria necessário ter-se consumado uma rutura quando, séculos volvidos, ambos (Católicos e Luteranos) reconhecemos que houve responsabilidades repartidas?

Vale a pena, a este propósito, recuperar o que afirma, no Concílio do Vaticano II, o decreto sobre o ecumenismo, ‘Unitatis Redintegratio’, n.º7: «Também das culpas contra a unidade, vale o testemunho de S. João: «Se dissermos que não temos pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós» (1 Jo. 1,10). Por isso, pedimos humildemente perdão a Deus e aos irmãos separados, assim como também nós perdoamos àqueles que nos ofenderam.»

De Leão X a Leão XIV, quanto caminho já se percorreu, seja no reconhecimento católico do sacerdócio comum dos fiéis ou da centralidade da Palavra de Deus ou, ainda, da legitimidade de se celebrar na língua dos povos, assim como anterioridade e gratuitidade da salvação (nunca, porém, posta em causa, efetivamente, pela teologia católica), seja na constatação protestante da equivocidade na interpretação das indulgências como se estas tivessem sido um ato de simonia ou na verificação histórica da conversão operada no exercício da missão pontifícia! Mas o caminho ainda é longo e exigentemente difícil, mas não poderá parar-se, pois a divisão entre os irmãos cristãos constitui-se como contratestemunho, nestes tempos tão suscetíveis ao fechamento à experiência religiosa e, particularmente, à cristã. A unidade a que apela a Unitatis Redintegratio, que não é nem fusão, nem falso irenismo, nem, também, redutível a encontros marcados no calendário, deve ser um desiderato sempre presente e a Leão XIV poderá constituir-se como marca de um pontífice que, por provir da matriz agostiniana (tão cara ao protestantismo), mais facilmente se disporá a caminhar com os se irmanam com ele nessa ‘paternidade’ comum.

2.2. – Novos ‘monofisismos e monotelismos’

Mas a nossa leitura da história dos Papas de nome ‘Leão’ permite-nos fazer outras verificações e ‘iluminações’.

Regressemos a Leão Magno. Se, no século anterior, o século dos concílios de Niceia e Constantinopla, enfrentaram o desafio do arianismo e, com ele, da redução de Jesus Cristo à mera condição humana, inferior a Deus, (quando muito, adotado por Deus, mas não da Sua natureza, como afirmavam os adocionistas), o século V depara-se com um novo desafio, de sentido contrário. Eutiques, monge de Constantinopla, defende a redução da condição de Jesus Cristo a uma só natureza, a divina, que funde em si a natureza humana.

Leão Magno, perante este desafio, redige a ‘Epistola Dogmatica’ com que responde ao monofisismo de Eutiques, que, porém, mobiliza o imperador no Oriente, para que convoque um sínodo, em Éfeso, que vem a ser rejeitado como heterodoxo, sínodo em que foi recusada a carta do Papa. Leão Magno qualifica o ‘sínodo como um latrocínio’, criando-se um período de alguma tensão entre Roma e Constantinopla (sublinhe-se que ainda estamos longe de 1054, data do cisma do Oriente). O imperador morre, abruptamente, e a irmã, Pulquéria, sucede-lhe, regressando à fidelidade a Roma e sugere ao Papa a convocação de um Concílio que vem a concretizar-se em Calcedónia, em 451, onde fica sublinhada a dupla natureza (humana e divina) de Jesus Cristo, contra a tentação monofisita de o reduzir (neste caso) à natureza divina.

O desafio monofisita é revisitado e condenado, já no século VII, por ocasião do Papa Leão II, que sucede a S. Agatão, em cujo pontificado ocorre o III concílio de Constantinopla que condena o monotelismo. O monotelismo era uma espécie de tentativa de revisitação do que ‘sobrara’ do monofisismo: este fora condenado, mas os monotelitas defendiam que havendo duas naturezas em Jesus Cristo, só poderia haver uma vontade: a divina. Em Constantinopla, evidenciava-se que, a ser assim, a afirmação de que, na pessoa de Jesus Cristo, havia duas naturezas, ficava sem sustentação. Não passava de afirmação vazia. O monotelismo saía, assim, derrotado.

Ontem, como hoje, o pêndulo da leitura cristológica ora pende para a exacerbação humana (reduzindo-o a um ‘herói’ meramente humana), ora pende para a exacerbação divina (recusando, entre outras coisas, que tenha sofrido ou que, inclusive, tenha morrido, reduzindo a sua morte a uma aparência de falecimento. Leão XIV tem grandes desafios, nesta matéria. Um e outro movimento do pêndulo são observáveis, nestes tempos. Então, como hoje, a sedução de reduzir o que somos à nossa ‘alma’, ao nosso ‘pensamento’, ao ‘género que construímos na nossa mente, como se não nos pertencesse a condição corpórea’ são outros ‘monofisismos’ com que Leão terá de se defrontar…

2.3. Também as sombras falam da luz…

Ao pontificado de Leão III podemos ir buscar duas notas de reflexão muito oportunas[4]. É no tempo de Leão III que é coroado, em 25 de dezembro de 800, o imperador Carlos Magno. Muitos recordarão deste momento a marca que se prolongará, na história, com o sacro império romano-germânico: a de uma relação, nem sempre fácil e nem sempre equilibrada, entre o poder religioso e o poder político. Os relatos registam, porém, que Leão III conseguiu um equilíbrio de respeito e mútua compreensão que nem sempre se manteve, ao longo da história. E, da parte do imperador, se é certo que, em alguns momentos (como em 798, em que insta Leão III a convocar um concílio para condenar o adocionismo do bispo de Urgel) o imperador mostra querer exceder os seus limites e intrometer-se nos assuntos do âmbito eclesial, Leão III revela capacidade de assegurar a independência da Igreja, assim como a legitima separação do âmbito político. A cooperação e respeito recíprocos são desafios oportunos, nestes tempos de, por um lado, ‘laicismos’ e ‘indiferentismos’ conflituais ou, por outro, de promiscuidades que desrespeitam a legitimação separação desejada por Jesus, no seu ‘dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’. Sinais interessantes e revisitáveis, permanentemente.

Do mesmo modo, merece atenção a segunda marca a destacar neste pontificado. Apesar de insistentemente, ter sido persuadido a incluir no credo a referência ao Filioque (o Espirito procede do Pai e do Filho), Leão III resiste, não porque duvidasse da legitimidade em que tal ocorresse, mas para preservar a unidade com as igrejas orientais, para quem no credo se referia que ‘o Espírito Santo provém do Pai pelo Filho’. Esta referência será introduzida apenas dois séculos depois, já na iminência do cisma do Oriente, por Bento VIII. A prudência ‘ecuménica’ (avanta la lettre, bem certo; o cisma do oriente e a rutura com a Ortodoxia só ocorre em 1054) é uma marca merecedora de replicação…

Do pontificado de Leão IV, valerá a pena destacar um momento particularmente significativo. Perante o perigo de invasão de Roma pelos árabes, Leão IV manda edificar as muralhas a que se conferiu o nome que o homenageia - a cidade leonina -, cercada pelas muralhas concluídas em 852, e inauguradas numa cerimónia em que ‘o Papa, bispos, clero e monges percorrem, descalços, o circuito em procissão de penitência’[5]. Os tempos eram outros. A defesa do cristianismo exigia muralhas. Hoje, a relação é feita de encontros e não de conflitos. Aos então invasores, hoje deveremos considerar irmãos. E são-no, de facto. Irmãos pela fé do mesmo patriarca, o pai Abraão. Mas o caminho deverá fazer-se nos dois sentidos: de irmãos para irmãos. Nos tempos de Leão IV, na península Ibérica, recrudesceram as condições de vida para os cristãos. A conversão forçada fazia-se a troco da vida ou do decepar de mãos e pés. Ainda hoje, no mundo, continuam a repetir-se esses modelos.

Do lado cristão, a história está aprendida: a um irmão não se lhe corta a mão; não se lhe fere o coração. Estende-se-lhe um abraço! Poderão cair as muralhas com que se teve de defender, outrora, a fé?

Desafios para um Leão que já não se obrigue a proteger-se do medo e esconder-se sob a defesa de grossas muralhas.

De Leão V, VI, VII e VIII deveremos guardar uma memória e um desejo: o século em que pontificaram mostra-nos o que jamais deveremos repetir, na Igreja. Estes pontificados enquadram-se no chamado «século de ferro» da Igreja. Um período sombrio, marcado por lutas de poder. O caso de Leão V é particularmente ilustrativo deste retrato. Tem um pontificado curtíssimo, e, ainda que sendo retratado como um homem piedoso, vê-se envolvido em lutas de poder em que sucumbe aos desmandos de um tal ‘Cristóvão’ ou ‘Cristóforo’ (a grafia diverge, de acordo com as fontes), que pretende ocupar a cátedra de Pedro, sucumbindo este mesmo à ação de um outro pretendente. Tempos verdadeiramente escuros, a recordar, para que jamais os repitamos. Terá sido, em toda a história cristã, o século mais manchado pela decadência humana. Em cerca de um século (entre 891 e 1003), pontificaram mais de 30 Papas, muitos deles por períodos extremamente curtos (de meses ou escassos anos).

Mas, como sempre, na história, os períodos de sombras são, também, períodos em que emergem luzeiros. Este é o século em que se prepara, no pontificado de Leão V, a importante reforma de Cluny, que vem a ter um importante impulso no pontificado de Leão VII.

É de um destes Papas a situação rara de ser eleito um leigo que, para poder exercer a missão de Bispo de Roma, recebe as diversas ordens no mesmo dia, sendo a sua condição de Papa legítimo só verificável após a morte do seu antecessor, João XII. Um período de grande desordem que nos cabe manter vivo, na nossa mente, para que, como fez S. João Paulo II, possamos fazer a ‘purificação da memória’.

Revisitar este tempo deve ser motivo de regresso à consciência de existir um modo de ser Igreja que não queremos repetir: aquele em que ser ‘ministro’ não foi entendido como ‘serviço’, mas como poder que se pretende possuir e manter sem limites. O verdadeiro poder da Igreja está em servir à maneira do Seu Mestre. O século de ferro esqueceu-o! Temos, por isso, de o lembrar. E lembrá-lo será missão maior de um Papa Leão que, no sombrio século facilmente oxidável, pode encontrar, nos lampejos das reformas monásticas sinais maiores para um agir perante as sombras que, também, hoje, se abatem sobre a Igreja, na forma de ‘abusos’ ou de ‘excessos’… Então, como hoje, cabe refontalizar, regressar à Fonte, ao agir do Mestre humilde e servo, Aquele que primeiro desceu (kenoticamente) para nos elevar. Mas não há elevação sem o reconhecimento da fragilidade e fraqueza…

De Leão IX e X já abordámos os principais desafios, em passo anterior, sendo que, de Leão XI há a registar tratar-se de um pontificado de escassa duração, interrompido que foi por fatal acidente equestre do Pontífice.

Tomemos, por isso, em mãos, a análise de desafios que dimanam do pontificado de Leão XII. Eleito como ‘um Papa cuja caridade, vasta como o mundo, atraísse os mais afastados e tocasse os mais rebeldes e soubesse preservar, curar e conciliar’[6], revela-se muito atento aos desafios de então, seja na forma de indiferentismo religiosa, materialismo, racionalismo e ocultismo, desafios que, ontem como hoje, pedem atenção e criatividade de resposta. Para tal, reforçou a importância da formação do clero e denunciou a ação das sociedades secretas, o que lhe rendeu dissabores e oposição e contribui para a leitura pouco favorável com que é abordado o seu pontificado. A leitura atenta do seu pontificado deverá reter a precisão do diagnóstico, mas a inabilidade na resposta, exigindo-se, hoje, maior criatividade e originalidade, capaz de tornar eficaz a ação sem que a rudeza dos meios iniba a possibilidade do sucesso. Um desafio a que, em tempos de comunicação, se saiba ser eficaz não só nos objetivos, mas também nos meios a utilizar.

Para a leitura dos desafios decorrentes do Pontificado de Leão XIII, remetemos para o nosso artigo «o sinal de ‘Leão’», sem que tal iniba de acrescentar, porém, uma nota complementar. Leão XIII percebe que deve escolher, na relação com o mundo, um modo de atuar distinto do seu antecessor, Pio IX. Este escolhera a via da confrontação, de que o «Syllabus» é sinal particularmente ilustrativo. Leão XIII opta pela via do diálogo e da diplomacia, de que são expressivas as melhoras nas relações com diversas nações com quem estas se tinham degradado: Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, França, países da América Latina, etc[7].

É, também, com Leão XIII que ganha particular impulso o estudo da obra de S. Tomás (começa a organizar-se a edição crítica das suas obras, o que ainda não está terminado) e a criação de escolas e institutos para o seu estudo, e, em coerência, a adoção de medidas para uma positiva relação entre ciência e religião, merecendo-lhe atenção a reorganização do observatório astronómico do Vaticano.

É um Papa atento aos desafios efetivos do mundo. Posiciona-se, em relação ao laicismo, à crise decorrente da revolução industrial, à escravatura, que repudia, às respostas dadas perante os desafios sociais, demarcando-se de perspetivas coletivistas ou liberais. Os extremos não se lhe afiguram lugar de virtude…

É, não só, certeiro nos diagnósticos, mas eficaz nas respostas. Um Papa, cuja atenção aos desafios dos tempos se consubstancia em 86 encíclicas, 24 cartas apostólicas, 120 cartas, etc., evidenciando uma atitude diligente e preocupada que, só por si, se constitui como desafio ‘leonino’.

Os tempos, de ontem e de hoje, pedem atitude humilde como cordeiro, mas firme como leão…


[1] Michael Walsh, Dicionário de Papas, Lisboa, Edições 70, 2007.

[2] Manuel Evangelista dos Santos Júnior, Os Pontífices, São Paulo, Edições Loyola, 2001.

[3] Heitor Morais da Silva, S.J., História dos Papas: luzes e sombras, Braga, Editorial A.O., 1991.

[4] Cfr. Heitor Morais da Silva, História dos Papas: luzes e sombras, pp. 112-114.

[5] Ibidem, p. 120.

[6] Segundo Heitor Morais da Silva, História dos Papas: luzes e sombras, p. 313.

[7] Cfr., Ibidem, p. 325.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Foto: Por Edgar Beltrán, The Pillar, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=165193103
As imagens dos Papas são recolhidas de https://www.vatican.va/content/vatican/pt/holy-father.html

'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

  (‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião) Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Ru...