(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'
Luís Manuel Pereira da Silva*
Uma grande finalidade assiste à escrita destas linhas: contribuir para o reconhecimento de que a relação entre ciência e religião (em especial, a religião cristã) não tem de se fazer de conflito. E pretendo cumpri-la, concretizando dois objetivos: superar os preconceitos com que é lida a religião (evidenciando a pertinência da sua leitura e da sua visão sobre o mundo e o Homem) e contrariando a convicção de que, ao ser-se cientista, tem, necessariamente, de se assumir um qualquer ateísmo de princípio.
Para a concretização desta finalidade, com os seus dois objetivos associados, já demos alguns passos que nos permitiram evidenciar que a permanência de alguns equívocos continuam a perturbar a sã relação entre estes dois modos de aceder ao conhecimento que não são disjuntivos, mas complementares, porque no sujeito humano muitas são as moradas das perguntas. Pretender esgotar, numa só dessas moradas, todo o habitar humano é empobrecedor.
Socorro-me, para guiar esse caminho de reflexão e construção de pontes, do dinamismo que o próprio relato bíblico, estruturado em torno da metáfora dos sete dias, nos proporciona.
Iniciámos, no momento anterior da nossa reflexão, essa condição de viandante que segue o ritmo dos dias. Depois de nos prepararmos, começámos. Acolhemos a luz…
Mas há um aspeto que nos obriga a determo-nos, por mais algum tempo, nesse primeiro dia.
O texto bíblico começa com uma palavra que não temos como traduzir senão pela locução ‘no princípio’. Em hebraico, a palavra é ‘bereshit’ que, no seu uso adverbial, deve ser traduzido, precisamente, por ‘no princípio’[1].
Curiosamente, o evangelho de S. João, o mais elaborado dos quatro evangelhos e, também, o mais tardio, começa com a expressão correspondente, em grego, ‘en arkhê’: ‘no princípio’.
A frequência da utilização da expressão, por tantas vezes a ouvirmos na liturgia, faz-nos, eventualmente, perder a frescura da sua originalidade.
Mas tenha-se em conta que o que, para nós, é óbvio (houve um princípio) não o foi ao longo dos tempos.
Valerá a pena, aliás, recordar que a questão 46 da Suma Teológica[2] de S. Tomás, no século XIII, incide, entre outras coisas, precisamente, sobre a possibilidade de o mundo ter existido desde sempre (e, a tê-lo acontecido, como articular isso com o texto bíblico que falava de ‘princípio’), se o ter princípio era artigo de fé e como deveria, perante estas dúvidas, acreditar-se que Deus tinha criado o céu e a terra.
Genialmente, o Aquinate (cognome de S. Tomás por ser de Aquino) não recusa que possa admitir-se a possibilidade de o mundo ser eterno, por tal ser indemonstrável, mas que sempre se teria de falar de um ‘princípio’ considerado metafisicamente, isto é, o mundo tem origem na vontade de Deus que, se o pretendesse, faria com que o mundo deixasse de o ser, concluindo-se daqui que ‘criação’ é um conceito que não nos fala do modo ‘como’ o mundo é feito, mas sim do facto de o mundo ser originado, do nada, pela Vontade de Deus, sua Origem sem origem. ‘Criação’ diz, assim, que a criatura não é o Criador, mas d’Ele depende, de modo absoluto, em termos ontológicos.
Sem nos alongarmos nesta reflexão, detenhamo-nos na constatação de que a condição de ‘ter princípio’ é, consequentemente, não óbvia.
Aliás, a história mais recente demonstra-o, cabalmente.
É conhecido de poucos que a formulação da hipótese de o universo ter começado com uma grande explosão se deve a um presbítero, professor da Universidade de Lovaina: Georges Lemaître. À sua hipótese deu o nome de ‘átomo primitivo’. (É a Fred Hoyle, que se lhe opunha, a expressão ‘big bang’, utilizada para ironizar e apequenar.).
A história da receção desta hipótese evidencia como a ideia de um princípio não era óbvia, nem para os maiores físicos. O próprio e genial Albert Einstein recusa, num primeiro momento, a possibilidade e altera as suas fórmulas para que ‘estabilizem’ a imagem de universo que delas se recolhia.
Do mesmo modo, quando a possibilidade de o universo poder estar em expansão e ter tido uma origem, encaminhando-se, por isso, também, para um fim, parecia absurda aos líderes soviéticos que, quando a hipótese foi tendo acolhimento junto dos cientistas russos, se encarregaram de os perseguir e impedir de difundirem tais teorias que, naturalmente, poriam em causa a ideia da eternidade da matéria, necessária à leitura dialética do pensamento marxista-leninista. (Esta história é detalhadamente contada no muito oportuno livro de Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies, Deus, a ciência, as provas: alvorada de uma revolução. Uma obra de leitura altamente recomendável…).
Não deixa de merecer atenção, por isto que acabo de referir, constatar que, de facto, a relação entre ciência e religião tem sido marcada por inúmeros equívocos e mal-entendidos.
Veja-se como é referido, hoje em dia, que os supostos opositores da hipótese de o universo ter tido um início (com um big bang) sejam os crentes (os cristãos, para ser mais preciso). Curiosamente, porém, tendo a hipótese sido proposta, primeiramente, por um padre (que, inclusive, cedo encontrou apoio da parte do Papa Pio XII que, após diálogo sincero, percebeu que deveria deixar à ciência que fizesse o seu caminho, sem cair na tentação do concordismo), e constatando-se que a hipótese se afigurava de fácil instrumentalização para fins concordistas (então, a ciência confirma o que a Bíblia diz…), o que aconteceu foi o contrário. Quem se opôs à hipótese de um início para o universo foram, precisamente, os descrentes.
Pretendo, então, recuperar a frase de Werner Keller (‘A Bíblia tinha razão’), e sustentar um qualquer requentado concordismo?
Não o pretendo e não o defendo.
Os terrenos da ciência e da religião são distintos, mas, na minha perspetiva, complementares.
O sujeito humano é muito rico, nas suas interrogações e não se basta em procurar respostas para uma compreensão de ‘como’ se chegou ao que hoje temos. Quer, também, compreender ‘porquê?’, ‘para quê?’, ‘com que sentido?’… Há, afinal, inteligência, amor, rumo, na realidade de que emergimos, nós, seres capazes de pensar, amar, dirigir a nossa vida para um determinado fim?
Constatar que ‘no princípio’ nos fala de algo que a ciência hoje tem como certo, mas que ao judeo-cristianismo primeiramente se deve não é de somenos importância.
Diz-nos que muito se pode esperar da fé e que a ciência não tem, afinal, que temê-la, pois quem faz a ciência são indivíduos com dúvidas, interrogações, desejo de amar e ser amado, e não cérebros repousados sobre ombros. Ao todo do ser humano falam ciência e religião. Muito pouco ficaria se apenas uma das dimensões restasse…
De outras constatações nos falarão próximas etapas e dias do nosso rumo.
Sugestões bibliográficas:
Colin Stuart, Tempo: 10 coisas que deve saber, Lisboa, Vogais, 2024.
- Tomás de Aquino, Suma de Teología, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2017.
Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies, Deus, a ciência, as provas: alvorada de uma revolução, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 20242.
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico-Português, São Paulo, Paulus, 20146.
[1] Cfr. Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico-Português, São Paulo, Paulus, 20146, p. 601.
[2] Sigo, nas minhas análises, a edição da BAC referida nas sugestões bibliográfica.
*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'
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