sexta-feira, junho 24, 2005

Recensão de um livro de Savater

Savater, Fernando– A coragem de escolher. Lisboa: Dom Quixote, 2003, 163pp (Colecção Opus, Biblioteca de Filosofia).

Com este livro, operou-se uma espécie de reconciliação com o seu autor que, em anterior título, nos deixara o amargo de nos parecer impreciso e desarticulado. O livro a coragem de escolher é um belo tratado, em formato pós-moderno, porque já sem a volumetria de outras eras em que os tratados se estendiam por longos excursos que nos encaminhavam pelo mais refinado fio de pensamento dos autores. Este é um curto tratado sobre a liberdade humana, que, seguindo as pisadas de Hannah Arendt, nos é apontada como o exercício da possibilidade de escolher, não tanto aquilo que queremos, mas antes, aquilo que podemos, aludindo a um conceito ajustado de liberdade que já não supõe a omnipotência da liberdade humana. Esta é-nos definida na sua condição de marcada pela influência do contexto em que vivemos. A liberdade humana é um exercício, uma arte de condução nos meandros concretos em que nos situamos.
Nesta definição, não podíamos sintonizar mais com Fernando Savater. Este é um conceito que implica uma dura crítica a todos os que concebem (explícita ou implicitamente) a liberdade como a possibilidade infinita de escolher, o que é totalmente paradoxal com a condição limitada, situada, de cada homem. Contudo, distinguimo-nos de Savater no que concerne ao discernimento do horizonte de realização da liberdade. Para Savater, o valor que deve mover a liberdade é confinada à ordem da conveniência: «cada um tem os seus valores consoante o que lhe convém na vida... e a vida convém dentro destes.»
Como já em anterior abordagem de outro seu livro deixámos transparecer este sabor amargo: a ética que se inaugura com esta perspectiva é uma ética que, em nosso entender, se esvai na realidade, perde a sua força de utopia...
Se, neste contexto, para Savater, a liberdade poderia ser definida como a condição de possibilidade de escolher aquilo que mais convém ao ser que a exerce, para nós haveria que antepor um outro conceito que a entendesse como a condição de possibilidade de escolher aquilo que mais possibilitasse realizar o humano de cada ser. Já não numa perspectiva individual, mas de humanidade presente em cada um.
Estas notas referem-se à primeira parte do livro que, num segundo momento, nos apresenta aquelas que, no entender do autor madrileno, mais coerentemente se lhe afiguram como prioritárias e que poderemos subscrever na quase totalidade, ainda que se manifestem muito marcadas por um determinado contexto de reacção para com os modelos contra os quais Savater parece insurgir-se. Os textos deste autor são, aliás, frequentemente, irónicos, numa mordacidade que parece ter destinatários bem definidos e que parecem ser os seus mudos interlocutores.
Se, como dissemos no parágrafo anterior, poderemos subscrever as suas escolhas, já não seremos tão peremptórios nas motivações nem nas definições, em particular no que concerne à escolha da verdade e do prazer. O conceito de verdade a que Savater se refere importa ser retido, pois obriga a afirmar, de novo, a ideia de uma coerência entre o que se diz e pensa e a realidade exterior a estes processos. Temos, aqui, uma clara e consciente crítica a todas as leituras pós-modernas de verdade que pretendem anular a possibilidade de verdade pelo afundamento na «autoridade» da opinião subjectiva e não confirmável. Contudo, o conceito de verdade a que Savater se reporta parece gravitar em torno de um positivismo que pretende reduzir toda a verdade àquela que advém das ciências exactas e experimentais. Haverá que encontrar um justo termo entre o subjectivismo «opinoso» que se escusa a demonstrar a sua legitimidade e um cepticismo cientifista.
No que concerne à escolha do prazer, compreendemo-la como uma forte crítica às perspectivas da moral vitoriana que anularam a vivência do presente num dever constituído como espartilho da criatividade e da descoberta do sentido do hoje. Contudo, o prazer «de» Savater parece (é, mesmo!) constituído num fim em si mesmo, puxando o pêndulo da história para os antípodas de qualquer sentido de dever. A descoberta do gozo do presente, que sempre os contemplativos perceberam quando definiram o próprio Deus como um Eterno Presente não podem obnubilar-nos a visão e afundar-nos no real. O prazer como contemplação será uma descoberta a refazer mas sem a cedência gratuita à força tensional do eros (pulsão cega), eterno aliado de thanatos (morte). O dilema estará entre escolher a vida ou a morte.

Luís Pereira da Silva

quarta-feira, junho 15, 2005

Reencarnação ou ressurreição? O desafio que nos propomos enfrentar, diante deste binómio ressurreição-reencarnação, é o de saber se se pode, coerentemente, ser cristão e aceitar, no seu quadro de fé, a crença na reencarnação. A título de introdução, importa clarificar que não nos prendemos, aqui, com os matizes com que a reencarnação foi sendo entendida ao longo da história, desde os tempos da fundação do Hinduísmo ou do Budismo, passando pelo platonismo clássico, até ao espiritismo contemporâneo. Falamos, genericamente, de reencarnação como a crença na possibilidade de, após a morte, o espírito de alguém assumir o corpo ou a condição de um outro ser, em ciclos que se repetem, morte após morte e vida após vida. Por ressurreição, entenderemos aqui a passagem, de uma vez por todas, da vida terrena, finita, marcada pelo espaço e pelo tempo, para a vida em Deus, sem limites de cronologia ou greografia, após morte definitiva e única de cada homem. Logo na nossa definição se vislumbra uma contradição insanável entre acreditar, pela fé cristã, na ressurreição, e admitir a reencarnação. Mas, poderíamos acrescentar a esta substancial contradição, quatro ordens de razões que nos conduzem a concluir que reencarnação e ressurreição se afiguram como inconciliáveis, em perspectiva cristã. Razões de ordem bíblica e teológica. Para além da evidência que é o facto de nenhum dos evangelhos referir que a ressurreição de Cristo foi um retorno a uma vida finita – antes, na sua sobriedade, os evangelhos sempre descrevem que Jesus Cristo é elevado para uma vida eterna, sem limites – importa recordar que, sempre, ao longo de toda a tradição bíblica, se diz que Deus chama pelo nome cada ser humano. Este dado – chamar pelo nome – obriga a interrogar como seria isto conciliável com a aceitação da repetição cíclica que a reencarnação pressupõe. Para Deus, numa perspectiva cristã, cada homem e mulher é único, tem nome, e Deus relaciona-se com ele de forma ímpar. A reencarnação não parece poder compaginar-se com esta leitura, como se refere em Heb 9, 27: «e como é um facto que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem um julgamento». Uma segunda ordem de razões é de tipo antropológico. O homem judaico-cristão é uma unidade inquebrável e não uma soma de partes. Infelizmente, na nossa linguagem quotidiana, permanecem reminiscências de um dualismo que tem pouco de cristão. O homem, numa perspectiva cristã, não é soma de alma e corpo. E, se ainda permanecem esses termos, por exemplo, nas celebrações exequiais, com eles afirmamos que o homem é uma unidade em que, por alma entendemos o homem todo na sua dimensão de interioridade e, por corpo, o homem todo, na sua dimensão de relação e exterioridade. Ora, neste quadro, a morte é, na perspectiva cristã, o fim do homem todo que, pela força da ressurreição, há-de retornar ao Seio do Pai. Assim se entende que, no Novo testamento, ao falar-se da ressurreição, se refira que ela é uma nova criação, pois como que, por ela, o homem todo renasce, já sem os limites da condição terrena e histórica. Razões de concepção da história. A concepção de história e de presença no tempo, que o cristianismo sempre teve, é definida pela continuidade e linearidade, isto é, desde sempre o cristianismo rejeitou concepções cíclicas da história que se afiguram incoerentes com a visão antropológica anteriormente apresentada, assim como com a visão teológica de um Deus que se relaciona com cada um e que o coloca numa dinâmica de salvação que encaminha todos para o Ómega (horizonte final de salvação) e, não, que os afunde num eterno repetir, sem sentido e horizonte de salvação. Mais ainda, na perspectiva cristã da história, o mundo é o palco da realização do homem, num encontro entre a vontade e providência divina e a liberdade do homem. Para que a história se realize, pressupõe-se, neste quadro, que a liberdade é efectiva e não uma ilusão ou ficção. Ora, no prisma da reencarnação, o mundo é o palco em que a última palavra é a de um destino que marca a condição dos espíritos que repetem ciclos até se libertarem da prisão do corpo. A liberdade, neste contexto, fica transformada em aparência. A liberdade do homem é substituída por um mecanismo exterior ao homem. O homem não decide, é vítima do destino da repetição indefinida... 4. Razões de ordem histórica. Ao longo da história da Igreja, a discussão foi frequente. Reincidentemente, o Cristianismo foi-se debatendo com a emergência de perspectivas que pretendiam rejeitar a unicidade da condição humana, rejeitando a bondade do mundo (como se o corpo fosse expressão de um princípio maligno, diante do princípio benigno que era a alma), afirmando que o mundo era um cárcere de que o homem deveria libertar-se. Ora, a perspectiva cristã está no oposto desta visão, de carga maniqueia, condenada no II Concílio de Constantinopla (553), pois o mundo é o lugar da construção da salvação, no encontro entre a providência divina e a liberdade humana, num todo que se fará encontro, face-a-face, na morte única de cada um. Aceitar a reencarnação e a ressurreição não é passível de conciliação, pois os princípios em que assentam não se compaginam. A decisão está entre uma visão integral ou uma visão que rompe a integridade (do homem, do mundo, da criação, da história). Luís Silva (Publicado em Correio do Vouga)

Livro teológico

Nova publicação em Teologia/Epistemologia


Luís Manuel Pereira da Silva – Teologia, ciência e verdade: fundamentos para uma definição do estatuto científico da Teologia, segundo W. Pannenberg. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004,


Apresentação do livro:

Como pode a Teologia assegurar a verdade das suas proposições? Pela mão de Pannenberg, Teologia, ciência e verdade procura resposta para os desafios que esta questão deixa vislumbrar. Pode a Teologia aspirar a ser reconhecida como uma ciência? De que conceito de ciência se estará a falar, neste contexto? Que critérios deverão ser respeitados para que se reconheça, nas afirmações teológicas, a condição de verdadeiras e, por isso, universalmente aceites?
No sentido de encontrar respostas para tão acutilantes interrogações, este livro propõe-se acompanhar Pannenberg na identificação e superação dos limites da história da epistemologia, orientando para um conceito de ciência que recolha, simultaneamente, o valor observável nos ditos paradigmas moderno e pós-moderno. Entre o objectivismo de um e o subjectivismo de outro, importa redefinir um conceito de verdade que supere os erros ali cometidos.
Estabelecido este quadro, o trabalho não estará concluído sem precisar quais os critérios necessários para garantir a especificidade do estatuto epistemológico das afirmações teológicas, tendo em conta o carácter único dos seu objecto, Deus, a realidade que tudo determina.



Breve biografia do autor:

Luís Manuel Pereira da Silva nasceu em 1973, em Epernay (França), vivendo a sua infância em Pessegueiro do Vouga. É licenciado em Teologia, pela Universidade Católica Portuguesa, onde concluiu os seus estudos, sob a orientação do Prof. Doutor João Duque, com tese sobre W. Pannenberg, que serve de base estruturante do livro que, agora, se publica. Iniciou os seus estudos teológicos no ISET – Coimbra. Tem artigos de Teologia, publicados em revistas da especialidade. Foi Director da revista Dabar e director-fundador da revista Signum. É professor de EMRC, no Ensino Básico e Secundário. Colabora, na diocese de Aveiro, na formação teológica de agentes pastorais, em particular, no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro, onde é membro do conselho de redacção da revista Praxis. Foi, durante cerca de dez anos, membro do SDPJ – Aveiro. É Presidente diocesano da ACR e membro da direcção da ADAV.

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