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quarta-feira, junho 15, 2005
Reencarnação ou ressurreição?
O desafio que nos propomos enfrentar, diante deste binómio ressurreição-reencarnação, é o de saber se se pode, coerentemente, ser cristão e aceitar, no seu quadro de fé, a crença na reencarnação.
A título de introdução, importa clarificar que não nos prendemos, aqui, com os matizes com que a reencarnação foi sendo entendida ao longo da história, desde os tempos da fundação do Hinduísmo ou do Budismo, passando pelo platonismo clássico, até ao espiritismo contemporâneo. Falamos, genericamente, de reencarnação como a crença na possibilidade de, após a morte, o espírito de alguém assumir o corpo ou a condição de um outro ser, em ciclos que se repetem, morte após morte e vida após vida.
Por ressurreição, entenderemos aqui a passagem, de uma vez por todas, da vida terrena, finita, marcada pelo espaço e pelo tempo, para a vida em Deus, sem limites de cronologia ou greografia, após morte definitiva e única de cada homem.
Logo na nossa definição se vislumbra uma contradição insanável entre acreditar, pela fé cristã, na ressurreição, e admitir a reencarnação.
Mas, poderíamos acrescentar a esta substancial contradição, quatro ordens de razões que nos conduzem a concluir que reencarnação e ressurreição se afiguram como inconciliáveis, em perspectiva cristã.
Razões de ordem bíblica e teológica. Para além da evidência que é o facto de nenhum dos evangelhos referir que a ressurreição de Cristo foi um retorno a uma vida finita – antes, na sua sobriedade, os evangelhos sempre descrevem que Jesus Cristo é elevado para uma vida eterna, sem limites – importa recordar que, sempre, ao longo de toda a tradição bíblica, se diz que Deus chama pelo nome cada ser humano. Este dado – chamar pelo nome – obriga a interrogar como seria isto conciliável com a aceitação da repetição cíclica que a reencarnação pressupõe. Para Deus, numa perspectiva cristã, cada homem e mulher é único, tem nome, e Deus relaciona-se com ele de forma ímpar. A reencarnação não parece poder compaginar-se com esta leitura, como se refere em Heb 9, 27: «e como é um facto que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem um julgamento».
Uma segunda ordem de razões é de tipo antropológico. O homem judaico-cristão é uma unidade inquebrável e não uma soma de partes. Infelizmente, na nossa linguagem quotidiana, permanecem reminiscências de um dualismo que tem pouco de cristão. O homem, numa perspectiva cristã, não é soma de alma e corpo. E, se ainda permanecem esses termos, por exemplo, nas celebrações exequiais, com eles afirmamos que o homem é uma unidade em que, por alma entendemos o homem todo na sua dimensão de interioridade e, por corpo, o homem todo, na sua dimensão de relação e exterioridade. Ora, neste quadro, a morte é, na perspectiva cristã, o fim do homem todo que, pela força da ressurreição, há-de retornar ao Seio do Pai. Assim se entende que, no Novo testamento, ao falar-se da ressurreição, se refira que ela é uma nova criação, pois como que, por ela, o homem todo renasce, já sem os limites da condição terrena e histórica.
Razões de concepção da história. A concepção de história e de presença no tempo, que o cristianismo sempre teve, é definida pela continuidade e linearidade, isto é, desde sempre o cristianismo rejeitou concepções cíclicas da história que se afiguram incoerentes com a visão antropológica anteriormente apresentada, assim como com a visão teológica de um Deus que se relaciona com cada um e que o coloca numa dinâmica de salvação que encaminha todos para o Ómega (horizonte final de salvação) e, não, que os afunde num eterno repetir, sem sentido e horizonte de salvação.
Mais ainda, na perspectiva cristã da história, o mundo é o palco da realização do homem, num encontro entre a vontade e providência divina e a liberdade do homem. Para que a história se realize, pressupõe-se, neste quadro, que a liberdade é efectiva e não uma ilusão ou ficção. Ora, no prisma da reencarnação, o mundo é o palco em que a última palavra é a de um destino que marca a condição dos espíritos que repetem ciclos até se libertarem da prisão do corpo. A liberdade, neste contexto, fica transformada em aparência. A liberdade do homem é substituída por um mecanismo exterior ao homem. O homem não decide, é vítima do destino da repetição indefinida...
4. Razões de ordem histórica. Ao longo da história da Igreja, a discussão foi frequente. Reincidentemente, o Cristianismo foi-se debatendo com a emergência de perspectivas que pretendiam rejeitar a unicidade da condição humana, rejeitando a bondade do mundo (como se o corpo fosse expressão de um princípio maligno, diante do princípio benigno que era a alma), afirmando que o mundo era um cárcere de que o homem deveria libertar-se. Ora, a perspectiva cristã está no oposto desta visão, de carga maniqueia, condenada no II Concílio de Constantinopla (553), pois o mundo é o lugar da construção da salvação, no encontro entre a providência divina e a liberdade humana, num todo que se fará encontro, face-a-face, na morte única de cada um.
Aceitar a reencarnação e a ressurreição não é passível de conciliação, pois os princípios em que assentam não se compaginam. A decisão está entre uma visão integral ou uma visão que rompe a integridade (do homem, do mundo, da criação, da história).
Luís Silva (Publicado em Correio do Vouga)
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