domingo, abril 03, 2011

A traição das palavras «felicidade», «liberdade» e «amor»

Alguém que se propusesse encontrar os termos mais importantes para definir o Cristianismo não ficaria longe de uma resposta definitiva ao deparar-se com as ideias de felicidade, liberdade e amor.
Não deixa, porém, de ser curioso que, se esse mesmo alguém envidasse esforços para definir o que se propôs construir a modernidade, que se afirmou por oposição ao Cristianismo, encontrasse como palavras definidoras de tal esforço as mesmas felicidade, liberdade e amor.
Mas, então, onde radica a distinção entre o uso que das mesmas palavras se faz, em contexto cristão ou no âmbito de uma sociedade secularizada?
Arrisco uma resposta.
É a amplitude do conceito que as palavras ocultam que gera o desencontro.
A modernidade, definida como espírito que começa a construir-se, a partir do século XVI, e que muitos caracterizam como sendo uma era da afirmação da autonomia, segmentou os conceitos. Entendo, por «segmentar», a ideia de que se fragmenta um conceito amplo e se toma apenas um segmento desses muitos fragmentos, resultando daí, afinal, um novo conceito, reduzido a uma parte de si.
Aplicando aos conceitos em análise, perceberemos melhor o alcance desta observação.
O Cristianismo é rico nas referências à felicidade, à liberdade, ao amor. Quem são os verdadeiros cristãos senão os bem-aventurados (os felizes), os que já não estão presos a nada nem por nada, os que amam porque já nada os detém em si mesmos?
Mas, para os ouvidos modernos, tais palavras soam a estranhas, pois, falar de felicidade, de liberdade, de amor, em pouco parece coincidir com estes conceitos. Na realidade, tal deve-se a que os novos conceitos de felicidade, liberdade e amor tomaram uma parte do conceito original, mas não retiveram o que eles tinham de mais sublime.
Assim, da felicidade ficou o sentimento de tensão que gera um qualquer prazer, que, por ser efémero, se desgasta com avidez e some o homem num corrupio de vertigens incessantes. Já não é feliz, neste novo conceito, o homem que procura engrandecer-se, combater os seus mais efémeros desejos em nome de um futuro maior. O futuro ainda não alcançado foi substituído pela convicção de que será um futuro nunca concretizado, redundando no medo de que fosse uma miragem jamais realizada. Tal medo aprisionou o homem na fugaz tentação de sentir-se feliz. Mas, ser feliz não é só sentir-se feliz. É ser… na felicidade.
Do mesmo modo, a liberdade, que se definia como a capacidade de saber escolher o melhor, capacidade que distinguia, claramente, o homem dos demais seres, porque estes não podiam senão deixar-se mover pelos instintos, ficou reduzida à capacidade de escolher. Ora, escolher, sem qualquer horizonte, com uma tal aleatoriedade que pode redundar na negação da própria escolha (como acontece no caso do suicida que, de forma supostamente livre, decide acabar em definitivo com a sua liberdade) é algo que tem muito de inumano, pois tudo o que o homem faz tem condicionamentos, está dependente de um horizonte, de um enquadramento… Uma liberdade que fosse pretendida como capacidade não condicionada seria tudo menos uma capacidade humana. E é de uma natureza deste tipo que a modernidade parece querer falar, ao supor que se pudesse decidir sem condicionamentos. Ora, tal é definir sem respeitar o definido. É, por isso, errar. E é de um erro que se trata quando se pretende, na modernidade, usar um conceito de liberdade que não tem verificação na realidade. O homem será sempre não livre enquanto continuar a supor que ser livre é, simplesmente, poder escolher. Porque ele não pode, simplesmente, escolher. Ele é, antes, livre se souber escolher o que de melhor se lhe afigura nas condições concretas.
Por fim, também com o amor o processo foi semelhante. Do amor como decisão que envolve o ser humano, no seu todo, resistiu, apenas, a dimensão emocional do amor. Amar é, neste novo conceito, sentir amor. Ora, quando o sentimento trai o olhar e parece sumir no nevoeiro, o amor, para o homem moderno, o amor acabou. Para o cristão, o amor está a crescer, a exigir que se envolvam as outras dimensões do homem que estavam sossegadas e adormecidas, enquanto o sentimento tornava óbvia a presença do amor. Amar o ser humano que pede, quando o seu olhar é brilhante e transparente e nele se reflecte o outro que eu sou, não é exigência de amor. Amar, quando o olhar do outro se oculta num rosto desfigurado ou matizado ou diferente, quando o sentimento não é de espontânea simpatia, torna-se exigência de amor e as demais dimensões do humano devem ser despertas. Ora, para o homem moderno, nesta hora, essas dimensões devem permanecer adormecidas e procurar-se um outro cenário em que, renovadamente, se tornem fulgurantes os sentimentos de «amor». Mas jamais haverá amor, enquanto este for o comportamento. Porque o que de humano ficará será, apenas, o fugaz, efémero, prazenteiro… O homem esgotar-se-á no presente de cada momento, sem memória, sem projecto; sem inteligência, sem vontade; sem outros nem tus, mas apenas «eus», sentires e afectos.
É por isto que felicidade, liberdade e amor são algo diferente do que se diz por aí.

Luís Silva

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