Se,
para nós, for claro e evidente o caráter sagrado da dignidade humana, há
comportamentos que jamais nos admitiremos por nos sabermos interiormente
obrigados ao dever de respeito inviolável pela outra pessoa. Mas tal não
diminui a dureza nem atenua o desafio que tal decisão comporta. Um pai ou uma
mãe, que se deparam com a notícia da possibilidade de o seu filho, que se gera
no ventre materno, ser portador de uma malformação grave, vivem uma dor
solitária sobre a qual vale a pena refletir. Uma dor com que convivi, no
período de gestação dos meus dois filhos. Em relação a ambos recaiu, desde as
primeiras semanas de gestação, a probabilidade forte de serem portadores de Trissomia
21, uma doença vulgarmente conhecida como «mongolismo» e que debilita
fortemente a autonomia da pessoa, além do preconceito social que sobre esta
doença recai. A decisão de não proceder a amniocentese, pelas possibilidades
acrescidas de aborto espontâneo e pela inutilidade prática da intervenção -
pois desde sempre nos entendemos devedores à vida e interiormente decididos a
respeitar cada filho nascituro - favoreceu a ansiedade até ao momento do
nascimento. Mas tal fez-nos viver a experiência densa do desafio que a
deficiência comporta, pessoal e coletivamente.
A
deficiência é marca definidora da condição humana. Mas ganha particular
notoriedade em alguns de entre nós. É, porém, pela sua singularidade, nesses de
entre nós em quem é mais visível a condição a que todos pertencemos, que julgo
dever-se olhar atentamente para o seu significado. Não sou dos que entendem que
seria ideal uma sociedade sem deficientes. Repugna-me, até, imaginar como se
chegaria aí. Foi a intenção de tantos ao longo da história, cuja lição deverá
continuar muito viva nas nossas memórias. O erro desses e de tantos de hoje
está, precisamente, em presumir que a deficiência seja uma condição de
inutilidade. Nada mais enganador. Na verdade, estou certo de que a deficiência
mais visível de alguns é sinal para todos da nossa comum fragilidade, da nossa
comum vulnerabilidade. Uma sociedade que já não é capaz de se reconhecer nos
seus mais frágeis e que os abandona, abandonando, com eles, os seus cuidadores,
é uma sociedade que tem tudo para se desumanizar, esquecendo que a condição
humana é a da fragilidade, não a da invulnerabilidade. Expresso, neste momento
da minha reflexão, uma sentida homenagem aos muitos cuidadores silenciosos que
conferem amor à condição deficiente, aos muitos que, desde a minha juventude,
pude ir conhecendo em experiências de voluntariado que fiz, na Vagueira e
Figueira da Foz, em colónias de férias desenvolvidas pela ASBIHP e pelo
Hospital de Alcoitão, e na mais próxima e longa relação com a inexcedível
comunidade dos membros da APCDI que, no concelho de Sever do Vouga, vem
contribuindo para se transformar a imagem da deficiência. Não tenho dúvidas de
que é o trabalho discreto, mas paciente e frutuoso, destes muitos cuidadores,
que vem contribuindo para que se modifique a imagem ainda tão encravada na
mente de muitos de que a deficiência seja uma maldição ou um castigo. Ela é,
sim, um desafio a que nos humanizemos todos.
Diante
disto, o repto é claro e foi-me particularmente pungente nestes meses que
antecederam o nascimento do meu segundo filho, uma menina. Não se pode viver,
sozinho, a deficiência de um filho. É um dever de sociedade acolher os seus
mais frágeis e assegurar as melhores condições para que sejam humanamente
felizes, qualquer que seja a sua condição. É, ainda mais, um dever de Estado.
Para que serve, afinal, um Estado, se abandona os seus mais débeis cidadãos e
os entrega, unicamente, à singularidade de uma decisão sobre matar ou deixar
viver, como se nessa irrevogável decisão se garantisse a liberdade suficiente
para se poder considerar um Estado de consciência tranquila? É, por fim, uma
voz que deve incomodar a própria comunidade dos crentes. Nas horas que
antecederam o nascimento da minha filha, muitas vezes me interroguei sobre a
resposta de Igreja para os pais a quem é dada a notícia de uma deficiência
grave e permanente nos filhos. Uma matéria sobre a qual valerá a pena refletir.
Onde está, nessa hora, a presença solícita com a palavra de salvação e de
esperança? É um momento denso que se constitui como desafio, como interpelação
à incomodidade. Esses pais que, diante de tal notícia, se agigantam como reais
heróis, necessitam da capa da proximidade, do elixir da certeza de que não
caminharão sozinhos, pois a comunidade a que pertencem, por serem destinatários
da salvação que veio para todos pois para todos veio o Salvador, estará ao seu
lado e não os deixará sucumbir ao desespero. É uma hora densa que necessita do
fragor de um abraço cuja intensidade não diminua com o passar do tempo.
Sei
que as palavras não diminuem a dor dos que, em cada dia, rotina após rotina,
sem aparentes retornos, se dedicam a um filho cujo amanhã parece ser continuar
a sofrer, mas não posso deixar de recorrer à força que as palavras ainda têm
para inquietar, para incomodar, para contribuir para unir corações. A
verdadeira compaixão é, na sua origem, a unidade íntima no sofrimento, é sofrer
com o outro. Para isso deverão servir as minhas palavras: para despertar os que
possam andar mais distraídos. Temos, entre nós, verdadeiros heróis, que, no seu
silêncio, constroem a sociedade mais humana que desejamos, mas que, quando
chega a hora de a tornar real, queremos perfeita como não são os humanos.
Porque os humanos são, por definição, imperfeitos. Disso nos dão consciência
vívida os portadores de deficiências: eles falam-nos da verdadeira humanidade.
Não da que andamos sempre a idealizar, mas da real, que é feita de pequenas
superações. Se a deficiência fizesse mais parte do nosso quotidiano, as
pequenas conquistas teriam maior reconhecimento.