sábado, agosto 24, 2013

Sobre a deficiência - «o silêncio dos inocentes»


Se, para nós, for claro e evidente o caráter sagrado da dignidade humana, há comportamentos que jamais nos admitiremos por nos sabermos interiormente obrigados ao dever de respeito inviolável pela outra pessoa. Mas tal não diminui a dureza nem atenua o desafio que tal decisão comporta. Um pai ou uma mãe, que se deparam com a notícia da possibilidade de o seu filho, que se gera no ventre materno, ser portador de uma malformação grave, vivem uma dor solitária sobre a qual vale a pena refletir. Uma dor com que convivi, no período de gestação dos meus dois filhos. Em relação a ambos recaiu, desde as primeiras semanas de gestação, a probabilidade forte de serem portadores de Trissomia 21, uma doença vulgarmente conhecida como «mongolismo» e que debilita fortemente a autonomia da pessoa, além do preconceito social que sobre esta doença recai. A decisão de não proceder a amniocentese, pelas possibilidades acrescidas de aborto espontâneo e pela inutilidade prática da intervenção - pois desde sempre nos entendemos devedores à vida e interiormente decididos a respeitar cada filho nascituro - favoreceu a ansiedade até ao momento do nascimento. Mas tal fez-nos viver a experiência densa do desafio que a deficiência comporta, pessoal e coletivamente.

A deficiência é marca definidora da condição humana. Mas ganha particular notoriedade em alguns de entre nós. É, porém, pela sua singularidade, nesses de entre nós em quem é mais visível a condição a que todos pertencemos, que julgo dever-se olhar atentamente para o seu significado. Não sou dos que entendem que seria ideal uma sociedade sem deficientes. Repugna-me, até, imaginar como se chegaria aí. Foi a intenção de tantos ao longo da história, cuja lição deverá continuar muito viva nas nossas memórias. O erro desses e de tantos de hoje está, precisamente, em presumir que a deficiência seja uma condição de inutilidade. Nada mais enganador. Na verdade, estou certo de que a deficiência mais visível de alguns é sinal para todos da nossa comum fragilidade, da nossa comum vulnerabilidade. Uma sociedade que já não é capaz de se reconhecer nos seus mais frágeis e que os abandona, abandonando, com eles, os seus cuidadores, é uma sociedade que tem tudo para se desumanizar, esquecendo que a condição humana é a da fragilidade, não a da invulnerabilidade. Expresso, neste momento da minha reflexão, uma sentida homenagem aos muitos cuidadores silenciosos que conferem amor à condição deficiente, aos muitos que, desde a minha juventude, pude ir conhecendo em experiências de voluntariado que fiz, na Vagueira e Figueira da Foz, em colónias de férias desenvolvidas pela ASBIHP e pelo Hospital de Alcoitão, e na mais próxima e longa relação com a inexcedível comunidade dos membros da APCDI que, no concelho de Sever do Vouga, vem contribuindo para se transformar a imagem da deficiência. Não tenho dúvidas de que é o trabalho discreto, mas paciente e frutuoso, destes muitos cuidadores, que vem contribuindo para que se modifique a imagem ainda tão encravada na mente de muitos de que a deficiência seja uma maldição ou um castigo. Ela é, sim, um desafio a que nos humanizemos todos.

Diante disto, o repto é claro e foi-me particularmente pungente nestes meses que antecederam o nascimento do meu segundo filho, uma menina. Não se pode viver, sozinho, a deficiência de um filho. É um dever de sociedade acolher os seus mais frágeis e assegurar as melhores condições para que sejam humanamente felizes, qualquer que seja a sua condição. É, ainda mais, um dever de Estado. Para que serve, afinal, um Estado, se abandona os seus mais débeis cidadãos e os entrega, unicamente, à singularidade de uma decisão sobre matar ou deixar viver, como se nessa irrevogável decisão se garantisse a liberdade suficiente para se poder considerar um Estado de consciência tranquila? É, por fim, uma voz que deve incomodar a própria comunidade dos crentes. Nas horas que antecederam o nascimento da minha filha, muitas vezes me interroguei sobre a resposta de Igreja para os pais a quem é dada a notícia de uma deficiência grave e permanente nos filhos. Uma matéria sobre a qual valerá a pena refletir. Onde está, nessa hora, a presença solícita com a palavra de salvação e de esperança? É um momento denso que se constitui como desafio, como interpelação à incomodidade. Esses pais que, diante de tal notícia, se agigantam como reais heróis, necessitam da capa da proximidade, do elixir da certeza de que não caminharão sozinhos, pois a comunidade a que pertencem, por serem destinatários da salvação que veio para todos pois para todos veio o Salvador, estará ao seu lado e não os deixará sucumbir ao desespero. É uma hora densa que necessita do fragor de um abraço cuja intensidade não diminua com o passar do tempo.

Sei que as palavras não diminuem a dor dos que, em cada dia, rotina após rotina, sem aparentes retornos, se dedicam a um filho cujo amanhã parece ser continuar a sofrer, mas não posso deixar de recorrer à força que as palavras ainda têm para inquietar, para incomodar, para contribuir para unir corações. A verdadeira compaixão é, na sua origem, a unidade íntima no sofrimento, é sofrer com o outro. Para isso deverão servir as minhas palavras: para despertar os que possam andar mais distraídos. Temos, entre nós, verdadeiros heróis, que, no seu silêncio, constroem a sociedade mais humana que desejamos, mas que, quando chega a hora de a tornar real, queremos perfeita como não são os humanos. Porque os humanos são, por definição, imperfeitos. Disso nos dão consciência vívida os portadores de deficiências: eles falam-nos da verdadeira humanidade. Não da que andamos sempre a idealizar, mas da real, que é feita de pequenas superações. Se a deficiência fizesse mais parte do nosso quotidiano, as pequenas conquistas teriam maior reconhecimento.

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