O momento de eleições é sempre um excelente
pretexto e contexto para refletirmos sobre como nos vemos enquanto sociedade.
Se como mera soma de indivíduos ou se como uma autêntica comunidade, se como
uma mera convergência de interesses ou se como uma comum unidade de história e
cultura, em dinâmica de construção coletiva para um futuro melhor.
Tendo sempre para o segundo fator de cada um destes
binómios, mas reconheço-me, muitas vezes, quase ultrapassado pela realidade,
que parece teimar em impor-me que já não há lugar para esperanças e ideais.
Mas, como me apraz repetir, posso não mudar o mundo, mas espero morrer com a
consciência tranquila de que tentei fazer a minha parte.
A frase que serve de título a esta reflexão
partilha autorias. No seu original, atribuído ao Rei-Sol, Luís XIV,
pronunciada, muito provavelmente, em 1655, a frase dizia «l’État c’est moi» (O
Estado sou eu) como manifestação do despotismo iluminado, que encontrou a sua
expressão máxima, entre nós, em D. João V, em D. José e no seu ministro,
Sebastião José de Carvalho e Melo, que ficou para a história como Marquês de
Pombal. O Estado parecia confundir-se com uma pessoa, o que o tornou uma
entidade distante e pouco geradora de simpatias e cumplicidades.
O tempo passou, mas as marcas dessa visão do Estado
permanecem. O Estado continua, para muitos, a ser uma entidade longínqua e
distante, algo abstrata. Tal visão, acrescida da carga totalitária mais recente
com que determinados movimentos quiseram conotá-la, tem favorecido a perda
daquele que deveria ser o sentido genuíno e ético do Estado moderno, que
pretendo consubstanciar na nova formulação da afirmação: o Estado somos nós. E
temos a particular sorte de estarmos num momento em que já se distanciam no
tempo as conotações ideológicas e revolucionárias que poderiam trazer carga
pejorativa à afirmação quase panfletária. Esta frase, dita, há cinquenta ou
sessenta anos, poderia conotar-se com os ideais totalitários de algumas
revoluções marcadamente ideológicas e pouco disponíveis para uma reflexão
tranquila e serena como a que nos propomos fazer, agora. Conceção nada
coincidente com a nossa visão do que deva ser o Estado e de como deva
relacionar-se com a sociedade civil. Sou devedor, pelo contrário, da perspetiva
cristã que sustenta que esta relação entre Estado e sociedade deve reger-se
pelo princípio da subsidiariedade, que defende, desde Pio XI, na sua encíclica
«Quadragesimo Anno», que, se uma estrutura mais próxima das pessoas pode
garantir as respostas justas, não deve ser uma instância superior a fazê-lo.
Neste registo, o Estado deve ser o garante de que a sociedade funciona e se
baseia em valores estruturantes, sem, porém, ocupar todo o espaço que cabe à
mesma sociedade. De outro modo, seria um Estado totalitário.
Concluir que o Estado somos nós é, neste momento,
um repto fortíssimo, pois, se o Estado somos nós, de facto, o que a todos diz
respeito por todos deve ser tratado com cuidado e especial dedicação. Tal
afirmação exige uma outra atitude da parte de todos. Uma atitude que comece por
compreender que dizer «Estado» não é o mesmo que dizer «governo», pois deste se
espera que faça a boa gestão daquele, ainda que aquele o transcenda. Feita esta
aclaração, decorre daqui uma exigência sempre nova: a de que cada um compreenda
que o que é de todos a todos deve pertencer e por todos deve ser bem tratado.
Uma exigência que é, primeiramente, ética, moral. A de cada um contribuir com o
que é devido para que, na hora de beneficiar, receba o que é de direito.
Verifica-se, porém, que, como se fosse reminiscência daquela visão distante do
Estado, cada cidadão parece mais apto a exigir o que é de direito do que a
cumprir o que é devido. Tal posição desequilibra a balança da relação,
pervertendo-a.
Se se pretende maior lisura da parte dos políticos
ela deve verificar-se, também, entre os cidadãos. Aliás, é importante notar que
a política não é um exercício de alguns, mas, originalmente, a condição de quem
vive em sociedade, na cidade (em grego, pólis). A cidadania é, aliás, uma outra
forma de dizer esta mesma condição (em latim, civitatem, de que vem
«cidadania», quer dizer «cidade»). Como podem pretender reivindicar mais
moralidade entre os «políticos» aqueles que fogem à sua obrigação de pagar os
impostos devidos, com mentiras sobre a sua real condição, agindo
fraudulentamente para com todos, muitas vezes com o argumento de que sobre a
sua vida privada nada têm a ver os outros? Como vivemos em sociedade, todos os
nossos atos têm repercussões coletivas, pelo que devem ser bem refletidos.
A este propósito, Camões dizia que «o rei fraco torna
fraca a forte gente», porém, o contrário também é verdade. Se «a gente» está na
mentira, pactua mais facilmente com a mentira de quem gere a coisa pública.
Merecem reflexão, neste contexto, os números recentemente publicados por um
estudo feito pela faculdade de economia do Porto que referem que existirá uma
economia paralela correspondente a cerca de 26% do PIB, perfazendo um volume de
mais de 44 mil milhões de euros. Números que devem fazer refletir. Se o Estado
somos nós, como podemos estar-nos a fazer isto?
É certo que os incentivos vão em sentido contrário.
Parece ser mais compensador dizer-se a inverdade de que não se está casado
quando até se está, como se tal pudesse ser uma legítima estratégia de gestão fiscal,
sendo, afinal, um modo imoral de escapar ao dever de pagar impostos. Casar
parece ser, em termos fiscais, mais penalizador do que não se estar, matéria em
que o Estado dá, ele mesmo, um sinal perigoso para a sua própria
sustentabilidade futura. Ou afirmar que se tem um rendimento inferior pois -
diz-se - o dinheiro dos nossos impostos «vai sempre para os mesmos». Ou tantas
outras estratégias dissimuladas usadas para abafar a consciência.
Se não ousarmos combater esta ideia tão enraizada
de que o Estado seja um alvo longínquo a abater, em vez de o entendermos como a
organização necessária da sociedade, será difícil que o próprio Estado não
avolume a sua desconfiança em relação aos próprios cidadãos, sinal que vem,
também, sendo dado e motivador de particular preocupação. É esta confiança que
serve de base à ideia da presunção da inocência até prova em contrário. Tal
princípio não se pressupõe nas ditaduras. Se os cidadãos não fizerem tudo para
manter essa confiança, poderão estar a reunir as condições para que regimes
desconfiados tomem conta dos seus destinos. Vale a pena o sacrifício, para que
possamos continuar a dizer que «l’État» somos nós.