Na lógica de poder em que parece assentar a nossa sociedade, quem é forte e exerce sobre os mais frágeis a sua violência julga-se vigoroso e possuidor do maior poder. Contudo, um olhar mais atento constatará que, após o exercício da violência, quem detém o poder é o agredido. Não apenas num plano moral ou religioso. Se olharmos com cuidado, o agredido tem o poder mais vigoroso de permitir a reconciliação do agressor com a sua própria consciência. Se o agredido não perdoar, de nada valerá o desejo da reconciliação.
Ilustro esta minha constatação com uma história real, que ouvi contar ao coordenador nacional da pastoral penitenciária, Pe. João Gonçalves, que a terá ouvido de um membro da pastoral penitenciária brasileira. Em certo Estado brasileiro, ocorreu um assassinato de que resultou a detenção e punição do assassino. A mãe da vítima, feito o luto da morte do filho, convenceu-se de que o seu sofrimento de mãe não era o único sofrimento materno que aquele assassínio provocara. De algum modo, também a mãe do assassino do seu filho sofreria violentamente, pois – afirmava a mãe da vítima - nenhuma mãe cria um filho para o tornar um assassino. Firme na sua convicção, encontrou-se com a mãe do assassino do seu filho, a quem manifestou que, no seu íntimo, lhe tinha perdoado e, por isso, partilhava com a outra mãe a tranquilidade que aquele perdão gerava em si mesma. O perdão gerou laços entre as duas famílias que, após descobrirem partilhar a mesma fé, se encontraram, na prisão, por altura da Páscoa de um desses anos.
Sem o perdão, nenhuma daquelas mães encontraria descanso, sossego e tranquilidade de alma, pois a ofensa, quando não perdoada, encarrega-se de devorar o ofensor e o ofendido, destruindo o seu íntimo.
O desafio cristão de perdoar setenta vezes sete, expressão semítica com que se pretende referir o sem-limite, é, para além de um enorme repto de teor religioso, em si mesmo uma manifestação de profunda leitura do íntimo humano. Quando há ofensa e não ocorre o perdão, todos perdem e jamais se encontra a paz.
Desta certeza se dá nota num dos mais belos filmes da história do cinema, a «Lista de Schindler», num densíssimo diálogo entre o bondoso Schindler e o demoníaco Amon, chefe de um dos mais tristemente célebres campos de concentração, o de Płaszów. Vale a pena recordar o diálogo.
Diz Amon, já ébrio, a Schindler- «Sabes? Olho para ti. Observo. Nunca estás bêbado. Isso é verdadeiro controlo. Controlo é poder. Isso é poder.»
Faz-se silêncio. Um silêncio denso, de quem está a procurar a verdade.
Schindler quebra o silêncio com uma pergunta.
- «É por isso que nos temem?» - Referia-se aos que padeciam as atrocidades dos nazis, nos campos de concentração.
Amon responde, com crueldade: - «Temos o poder de matar. É por isso que nos temem.»
Schindler riposta, usando, primeiramente, a linguagem que Amon entende, para, depois, o levar onde pretende.
- «Temem-nos porque temos o poder de matar arbitrariamente.
Um homem comete um crime. Não o deveria ter feito. Mandamo-lo matar, e sentimo-nos muito bem por isso. Ou matamo-lo com as nossas próprias mãos e sentimo-nos melhor. (Schindler refere-se, aqui, à crueldade do próprio Amon e não a si mesmo) Contudo, isso não é poder. É justiça. É diferente de poder. Poder é quando temos todas as justificações para matar… e não o fazemos.»
Amon, surpreendido e desarmado, pergunta: - «Achas que isso é poder?»
Schindler responde-lhe com a linguagem que Amon entende: - «Era o que os imperadores tinham. Um homem roubava uma coisa, era levado perante o imperador… Atirava-se ao chão, implorava misericórdia. Sabe que vai morrer. E o imperador perdoa-lhe.»
Amon já não entende nada: - «Acho que estás bêbado.»
Schindler remata: - «Isso é poder, Amon. É poder.»
Na verdade, estou convencido de que este é, de facto, o maior poder que possuímos. É o poder de dar nova vida a quem sente que não merece desculpa, mas encontra, no perdão do outro, uma nova oportunidade. E a vida rejuvenesce.
Quão diferente seria o mundo se o poder que vigorasse fosse esse e não a ilusão do domínio do outro! Há ofensas difíceis de suportar, bem certo, como ilustra a história verdadeira acima contada, mas não aceitar perdoá-las duplica a sua agressividade, pois destrói, no íntimo, o humano que há em nós. Perdoar é uma força que permite olhar, de frente, o mal e destruir-lhe o seu poder demolidor. Já assisti à reconciliação de uma família desavinda há trinta anos porque o ofendido aceitou o pedido de perdão de quem ofendera… e todo o tempo de não perdão ficou com tons de tempo perdido. É por isso que vale a pena ousar exercer este poder de perdoar… Para ganhar o tempo. Para ganhar tempo!
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