Na minha rua, existe uma casa sem
janelas. E as portas, disfarçadas com a cor da madeira que as envolve, até
essas parece não ter. Um perfeito castelo inexpugnável.
Em cada manhã, na rotina do rumo
diário que me leva ao trabalho, rotina que me liberta o pensamento, olho para
aquela casa como metáfora. Metáfora densa, mas interpelante.
Na verdade, vivemos como se a
moradia que é a nossa vida não tivesse rua e ninguém nela se passeasse. Parecemos
padecer de uma doença de nome «isolite».
Um dos mais dramáticos sintomas
desta doença, a «isolite», doença dos isolados do mundo, é a já habitual
comunicação dos números do aborto que, por esta altura, a direção geral de
saúde faz sair a público. Em 2013, os registos guardaram a dolorosa referência
de 17414 abortos realizados a pedido da mulher, representando 97% do total de
abortos realizados em Portugal. Reunidos números, desde 2007, data da
realização do referendo de 11 de fevereiro, atingimos a incrível cifra de
119077 abortos realizados a pedido da mulher. Os dados permitem, ainda,
verificar que 27,8% dos abortos praticados são repetidos, consolidando a
convicção de que esta é uma prática que vai sendo adotada como se de um contracetivo
(pós-concetivo, bem certo!) se tratasse.
A cadência da informação, comunicada
ao ritmo dos tempos de um compasso binário (dado que há, todos os anos, duas
comunicações de números, pois são sempre revistos em alta, lá mais para final
do ano), vai gerando na sociedade uma insensibilidade perigosa. Faz lembrar as oportunas
palavras atribuídas ao Pastor protestante Martin Niemöller: "Quando os
nazis levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu
não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não
protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus,
eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não
havia mais quem protestasse."
O desafio que estas palavras de
Niemöller encerram faz-nos tomar consciência de que, de algum modo, todos os
nascidos depois de 2007, em Portugal, podem reconhecer-se como «sobreviventes».
Como se de uma batalha se tratasse, com a incrível característica do
protagonista de «crónica de uma morte anunciada». Tal como este, todos sabem
qual o seu destino fatal, mas ninguém parece capaz de o contrariar. Como se
fosse uma incontornável predestinação que ninguém deverá ousar alterar.
Contudo, porque não somos
personagens de um romance de Gabriel García Marquez, o fatalismo pode ser
contrariado, porque os valores em causa se impõem.
A distância em relação à vozearia
que rodeou o referendo permite encontrar o afastamento suficiente para
percebermos, hoje, de modo não ideológico que o que está em causa é um sofisma
de pensamento que pareceu confundir o direito a autodeterminar-se com direitos
de alguém a exercer a violência sobre outro. Pois é de violência que se trata.
Da violência de quem deve proteger sobre o seu protegido. E da sociedade que
abandona quando mais deveria acolher.
O desafio continua, portanto. O
de revalorizarmos a maternidade, de a reconhecermos como um direito e um dever
e de a protegermos como um bem escasso. E, enfim, de não nos deixarmos
adormecer, aceitando que vão sendo levados, um a um, os que nada parecem
dizer-nos porque nem sequer sabemos como seriam nem como se chamariam.
Infelizmente, a casa da metáfora
inicial é real. Existe mesmo e continua a recordar-me, em cada manhã, que
também a «isolite» continua a propagar-se. Uma doença cuja cura depende do
doente. O fármaco mais eficaz terá de se procurar entre as teias da
sensibilidade ética, com características opostas ao dos sedativos. Só se curará
dela quem se mantiver desperto e não se deixar adormecer.