sexta-feira, maio 23, 2014

Os números do aborto - depois de 2007, todos somos sobreviventes

Na minha rua, existe uma casa sem janelas. E as portas, disfarçadas com a cor da madeira que as envolve, até essas parece não ter. Um perfeito castelo inexpugnável.
Em cada manhã, na rotina do rumo diário que me leva ao trabalho, rotina que me liberta o pensamento, olho para aquela casa como metáfora. Metáfora densa, mas interpelante.
Na verdade, vivemos como se a moradia que é a nossa vida não tivesse rua e ninguém nela se passeasse. Parecemos padecer de uma doença de nome «isolite».
Um dos mais dramáticos sintomas desta doença, a «isolite», doença dos isolados do mundo, é a já habitual comunicação dos números do aborto que, por esta altura, a direção geral de saúde faz sair a público. Em 2013, os registos guardaram a dolorosa referência de 17414 abortos realizados a pedido da mulher, representando 97% do total de abortos realizados em Portugal. Reunidos números, desde 2007, data da realização do referendo de 11 de fevereiro, atingimos a incrível cifra de 119077 abortos realizados a pedido da mulher. Os dados permitem, ainda, verificar que 27,8% dos abortos praticados são repetidos, consolidando a convicção de que esta é uma prática que vai sendo adotada como se de um contracetivo (pós-concetivo, bem certo!) se tratasse.
A cadência da informação, comunicada ao ritmo dos tempos de um compasso binário (dado que há, todos os anos, duas comunicações de números, pois são sempre revistos em alta, lá mais para final do ano), vai gerando na sociedade uma insensibilidade perigosa. Faz lembrar as oportunas palavras atribuídas ao Pastor protestante Martin Niemöller: "Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse."
O desafio que estas palavras de Niemöller encerram faz-nos tomar consciência de que, de algum modo, todos os nascidos depois de 2007, em Portugal, podem reconhecer-se como «sobreviventes». Como se de uma batalha se tratasse, com a incrível característica do protagonista de «crónica de uma morte anunciada». Tal como este, todos sabem qual o seu destino fatal, mas ninguém parece capaz de o contrariar. Como se fosse uma incontornável predestinação que ninguém deverá ousar alterar.
Contudo, porque não somos personagens de um romance de Gabriel García Marquez, o fatalismo pode ser contrariado, porque os valores em causa se impõem.
A distância em relação à vozearia que rodeou o referendo permite encontrar o afastamento suficiente para percebermos, hoje, de modo não ideológico que o que está em causa é um sofisma de pensamento que pareceu confundir o direito a autodeterminar-se com direitos de alguém a exercer a violência sobre outro. Pois é de violência que se trata. Da violência de quem deve proteger sobre o seu protegido. E da sociedade que abandona quando mais deveria acolher.
O desafio continua, portanto. O de revalorizarmos a maternidade, de a reconhecermos como um direito e um dever e de a protegermos como um bem escasso. E, enfim, de não nos deixarmos adormecer, aceitando que vão sendo levados, um a um, os que nada parecem dizer-nos porque nem sequer sabemos como seriam nem como se chamariam.

Infelizmente, a casa da metáfora inicial é real. Existe mesmo e continua a recordar-me, em cada manhã, que também a «isolite» continua a propagar-se. Uma doença cuja cura depende do doente. O fármaco mais eficaz terá de se procurar entre as teias da sensibilidade ética, com características opostas ao dos sedativos. Só se curará dela quem se mantiver desperto e não se deixar adormecer.

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