As eleições vão-se sucedendo e, com elas, o
crescimento da abstenção. À rotina desta sequência associa-se o paralelismo de
um ritual de interpretações que se circunscrevem, habitualmente, à conjuntura
mais ou menos meteorológica que parece justificar o afastamento dos cidadãos do
exercício de um direito conquistado com o sangue. Raramente se passa disto.
Importaria ir mais longe, pois os sinais
permitem-nos concluir que os cidadãos falam de algo mais profundo a que não se
tem dado ouvidos e que a história desafia a saber ler, para que não se repitam
erros do passado.
Devemos começar por reconhecer, com Lipovetsky, o
sociólogo francês da ‘moda’ (o conceito de «moda» é central no seu livro
«império do efémero»), que vivemos uma era que ele designa como «hipermoderna»,
marcada pela deceção. E é de deceção que se trata ao falar da relação entre os
cidadãos e o exercício partidário da política. Uma deceção que vai da «pequena
deceção» à «grande deceção». Poderíamos considerar como a «pequena deceção»
aquela que vão vivendo os eleitores que sofrem a desilusão de se confrontarem
com falta de correspondência entre a palavra dita em período eleitoral e a que
se torna ação. Mas há uma mais profunda, que corresponde à «grande deceção». A
que vivem os cidadãos que verificam não reconhecer, já, distinção entre as
ideologias que suportam os partidos. Bem certo que os defensores do fim da
história, com Fukuyama à cabeça, parecem preconizar que a história já não tem
mais para onde ir e que só resta aceitar que o capitalismo de matriz liberal é
a última palavra. Contudo, na época em que este autor norte-americano vertia
esta ideia para o seu livro que se tornou ‘bíblia’ para muitos, João Paulo II
antecipava, na sua genial encíclica «Centesimus Annus» (1991), que era
necessário ter a consciência de que o fim dos regimes coletivistas não
significava que já só restava a resposta do capitalismo. Importava não deixar
que assim acontecesse e a Igreja enunciava, então, na senda de grandes
documentos que fazem a sua Doutrina Social, que importava colocar a pessoa
humana no centro de toda a economia e de toda a política.
Mas não estamos, de facto, no fim da história. Pelo
contrário. A ideia do fim da história alimenta-se de si mesma. A ideia do fim
da história gera o próprio fim da história, ilusão terrível que é dos maiores
responsáveis pela «grande deceção» que vivem os cidadãos. Colocando, de modo
simples, esta convicção. Se todos os partidos e as suas matrizes são iguais,
então porquê ter de escolher? Se o pressuposto fosse verdadeiro, de facto a
conclusão também o seria. Contudo, importa constatar que a atuação dos
políticos tem contribuído para a alimentação da convicção. Com efeito, valerá a
pena perguntarmo-nos sobre o que resta do que os cidadãos eleitores esperam da
direita e da esquerda e sobre o que, de facto, sobrevive do que seja a direita
e a esquerda.
Poderíamos dizer que sobram da direita e da
esquerda apenas umas caricaturas de si que não atraem e não convencem.
Sentem-se os cidadãos identificados com uma
esquerda que parece reduzir-se às matérias dita fraturantes do âmbito da moral
pessoal (sexualidade, casamento, eutanásia, aborto, etc.) e que fez da defesa
das diferenças um fator de conflitualidade e inconciliação?
Sentem-se os cidadãos identificados com uma direita
que parece ter-se reduzido à cartilha liberal na gestão da economia e que, em
matérias de família e demografia, se propõe legalizar as barrigas de aluguer,
aceitar a coadoção por homossexuais ou preparar a legalização da eutanásia com
a aceitação do testamento vital (que se não é inútil é a porta aberta para
aquela)? Esta é a mesma direita que vetou, em 28 de maio, o debate sobre uma
petição, «one of us», que se propunha defender o reconhecimento do estatuto do
embrião humano, petição subscrita por cerca de 2 milhões de cidadãos europeus,
que foi reconhecida como a petição que recolheu mais assinaturas na história de
todas as petições promovidas em solo europeu e que, porém, foi rejeitada por
colocar em dúvida as políticas abortistas desenvolvidas pelo diretório europeu.
O que sobrevive dos traços matriciais que permitiam
distinguir, na hora de decidir?
Considero, na qualidade de católico, que se deveria
reponderar, entre os cristãos, a criação de condições para que se fizesse
justiça à memória dos pais fundadores da comunidade europeia. Valerá, aliás, a
pena recordar que, entre aqueles que se considerou reconhecer como os «pais da
comunidade europeia», Jean Monnet, Robert Schuman, Alcide de Gasperi, Konrad
Adenauer, Paul-Henri Spaak, quatro são reconhecidos cristãos católicos, sendo o
último um socialista em cuja história pessoal foi decisivo o encontro com Paul
Van Zeeland, do partido católico, no tempo do seu cativeiro às mãos dos nazis. A
sua atuação e convicção constituem um dever, para todos, de homenagem de
memória, em particular, entre os que se reconhecem nos mesmos motivos.
Urge a formação de cristãos convencidos de que a
política é a condição de todos na sociedade («pólis» - palavra grega para
«cidade», de que vem a palavra ‘política’; em latim, cidade diz-se «civitas»,
de que vem ‘cidadania, civilidade, civil, etc.’. ‘Política’ e ‘cidadania’ são,
à luz da etimologia, sinónimas, e querem referir-se à condição de cidadão,
aquele que vive em sociedade, na cidade.) e não uma condição estranha e que é
exercida apenas por alguns. Se os cristãos não estiverem onde se decide, as
decisões ser-lhes-ão estranhas e ficará, no fim, a lamentação e a certeza de
não se ter feito o que era devido.
Como me recordava, recentemente, um amigo com quem
estas matérias servem de nutriente da amizade, «foi dizimada a ação católica,
em vez de ter sido purificada e, hoje, nada resta de formação da consciência
política dos cristãos».
É urgente reencontrar uma matriz na qual os
cidadãos que, em Portugal, são cerca de 80% de cristãos, se revejam e saibam
que o que comanda as decisões não são os interesses e benefícios pessoais, mas valores
e convicções reconhecidos por todos.