segunda-feira, julho 21, 2014

A democracia é um bem que se preserva pelo uso


As eleições vão-se sucedendo e, com elas, o crescimento da abstenção. À rotina desta sequência associa-se o paralelismo de um ritual de interpretações que se circunscrevem, habitualmente, à conjuntura mais ou menos meteorológica que parece justificar o afastamento dos cidadãos do exercício de um direito conquistado com o sangue. Raramente se passa disto.

Importaria ir mais longe, pois os sinais permitem-nos concluir que os cidadãos falam de algo mais profundo a que não se tem dado ouvidos e que a história desafia a saber ler, para que não se repitam erros do passado.

Devemos começar por reconhecer, com Lipovetsky, o sociólogo francês da ‘moda’ (o conceito de «moda» é central no seu livro «império do efémero»), que vivemos uma era que ele designa como «hipermoderna», marcada pela deceção. E é de deceção que se trata ao falar da relação entre os cidadãos e o exercício partidário da política. Uma deceção que vai da «pequena deceção» à «grande deceção». Poderíamos considerar como a «pequena deceção» aquela que vão vivendo os eleitores que sofrem a desilusão de se confrontarem com falta de correspondência entre a palavra dita em período eleitoral e a que se torna ação. Mas há uma mais profunda, que corresponde à «grande deceção». A que vivem os cidadãos que verificam não reconhecer, já, distinção entre as ideologias que suportam os partidos. Bem certo que os defensores do fim da história, com Fukuyama à cabeça, parecem preconizar que a história já não tem mais para onde ir e que só resta aceitar que o capitalismo de matriz liberal é a última palavra. Contudo, na época em que este autor norte-americano vertia esta ideia para o seu livro que se tornou ‘bíblia’ para muitos, João Paulo II antecipava, na sua genial encíclica «Centesimus Annus» (1991), que era necessário ter a consciência de que o fim dos regimes coletivistas não significava que já só restava a resposta do capitalismo. Importava não deixar que assim acontecesse e a Igreja enunciava, então, na senda de grandes documentos que fazem a sua Doutrina Social, que importava colocar a pessoa humana no centro de toda a economia e de toda a política.

Mas não estamos, de facto, no fim da história. Pelo contrário. A ideia do fim da história alimenta-se de si mesma. A ideia do fim da história gera o próprio fim da história, ilusão terrível que é dos maiores responsáveis pela «grande deceção» que vivem os cidadãos. Colocando, de modo simples, esta convicção. Se todos os partidos e as suas matrizes são iguais, então porquê ter de escolher? Se o pressuposto fosse verdadeiro, de facto a conclusão também o seria. Contudo, importa constatar que a atuação dos políticos tem contribuído para a alimentação da convicção. Com efeito, valerá a pena perguntarmo-nos sobre o que resta do que os cidadãos eleitores esperam da direita e da esquerda e sobre o que, de facto, sobrevive do que seja a direita e a esquerda.

Poderíamos dizer que sobram da direita e da esquerda apenas umas caricaturas de si que não atraem e não convencem.

Sentem-se os cidadãos identificados com uma esquerda que parece reduzir-se às matérias dita fraturantes do âmbito da moral pessoal (sexualidade, casamento, eutanásia, aborto, etc.) e que fez da defesa das diferenças um fator de conflitualidade e inconciliação?

Sentem-se os cidadãos identificados com uma direita que parece ter-se reduzido à cartilha liberal na gestão da economia e que, em matérias de família e demografia, se propõe legalizar as barrigas de aluguer, aceitar a coadoção por homossexuais ou preparar a legalização da eutanásia com a aceitação do testamento vital (que se não é inútil é a porta aberta para aquela)? Esta é a mesma direita que vetou, em 28 de maio, o debate sobre uma petição, «one of us», que se propunha defender o reconhecimento do estatuto do embrião humano, petição subscrita por cerca de 2 milhões de cidadãos europeus, que foi reconhecida como a petição que recolheu mais assinaturas na história de todas as petições promovidas em solo europeu e que, porém, foi rejeitada por colocar em dúvida as políticas abortistas desenvolvidas pelo diretório europeu.

O que sobrevive dos traços matriciais que permitiam distinguir, na hora de decidir?

Considero, na qualidade de católico, que se deveria reponderar, entre os cristãos, a criação de condições para que se fizesse justiça à memória dos pais fundadores da comunidade europeia. Valerá, aliás, a pena recordar que, entre aqueles que se considerou reconhecer como os «pais da comunidade europeia», Jean Monnet, Robert Schuman, Alcide de Gasperi, Konrad Adenauer, Paul-Henri Spaak, quatro são reconhecidos cristãos católicos, sendo o último um socialista em cuja história pessoal foi decisivo o encontro com Paul Van Zeeland, do partido católico, no tempo do seu cativeiro às mãos dos nazis. A sua atuação e convicção constituem um dever, para todos, de homenagem de memória, em particular, entre os que se reconhecem nos mesmos motivos.

Urge a formação de cristãos convencidos de que a política é a condição de todos na sociedade («pólis» - palavra grega para «cidade», de que vem a palavra ‘política’; em latim, cidade diz-se «civitas», de que vem ‘cidadania, civilidade, civil, etc.’. ‘Política’ e ‘cidadania’ são, à luz da etimologia, sinónimas, e querem referir-se à condição de cidadão, aquele que vive em sociedade, na cidade.) e não uma condição estranha e que é exercida apenas por alguns. Se os cristãos não estiverem onde se decide, as decisões ser-lhes-ão estranhas e ficará, no fim, a lamentação e a certeza de não se ter feito o que era devido.

Como me recordava, recentemente, um amigo com quem estas matérias servem de nutriente da amizade, «foi dizimada a ação católica, em vez de ter sido purificada e, hoje, nada resta de formação da consciência política dos cristãos».

É urgente reencontrar uma matriz na qual os cidadãos que, em Portugal, são cerca de 80% de cristãos, se revejam e saibam que o que comanda as decisões não são os interesses e benefícios pessoais, mas valores e convicções reconhecidos por todos.

 

domingo, julho 06, 2014

Porque é que o fecho das escolas é um erro?


Na última década, o país vem assistindo ao fecho de escolas, uma após outra, num ritmo anestesiante, gerador de uma atitude de quase rendição perante o fatalismo com que tal é apresentado. São de excluir deste ritmo os anos de eleições, os únicos em que essas escolas parecem não ser, segundo os decisores políticos, prejudiciais para os alunos que as frequentam. Contudo, é urgente refletir sobre o que tal decisão comporta e o que a justifica.

Para clarificar a posição que assumirei, importa afirmar que se trata de uma decisão com custos certos e benefícios muito duvidosos, seja no que respeita ao processo como tudo tem sido conduzido, seja quanto aos resultados que dela se colhem.

Os que sustentam a bondade da decisão apontam, fundamentalmente, duas ordens de razão: a primeira, do âmbito da gestão dos recursos. A escassez dos recursos financeiros existentes parece, segundo eles, ser motivo suficiente para aglomerar em pouco espaço o maior número possível de alunos, com o menor custo em assistentes operacionais (os já designados «contínuos» e «auxiliares da ação educativa») e professores. A segunda, de ordem psicopedagógica, socorre-se da teoria educativa mais difundida, segundo a qual será, certamente, benéfica a continuidade de todos os ciclos de ensino num só espaço geográfico, por diminuir os efeitos da mudança, nas crianças. Contudo, esta teoria, sendo, de facto, a mais difundida entre os pedagogos que suportam as decisões políticas, esbarra com o reconhecimento de que as mudanças de ciclo acompanhadas de mudança geográfica são positivas, em particular quando o ciclo em conclusão foi marcado por algum insucesso. A mudança geográfica permite que a pessoa se reconfigure diante do novo cenário e, como vulgarmente se designa, permite «começar de novo». Mesmo nós, adultos, sabemos como é importante, por vezes, a mudança de situação geográfica e física, para reencontrar a serenidade e nos sentirmos de novo apreciados. Aplicando à educação, é fácil perceber a pertinência desta última teoria para compreender muito do insucesso que acompanha os alunos para quem o espaço concreto de determinada escola - que sabem ter de frequentar durante doze anos - está associado ao fracasso. Mudar, na transição de ciclos, teria sido uma oportunidade, que este modelo de escolas fundidas não favorece. Ora, estes são, resumidamente, os dois grandes argumentos utilizados para o encerramento de escolas e a aglomeração das crianças em espaços multitudinários, isto é, de multidão.

Bem certo que, em 2010 e 2011, as decisões tomadas pelo governo de então defendiam que só se encerrariam as escolas com menos de 21 alunos, matéria, aliás, pouco consensual, como pode constatar-se lendo a recomendação 4/2011, formulada pelo Conselho Nacional de Educação que afirma, textualmente, que o fecho de escolas com menos de 21 alunos é um «assunto que não tem sido pacífico». Esse já não é, porém, o cenário com que a sociedade portuguesa se deparou, no passado dia 23 de junho. Nesse dia, foi anunciado o encerramento de 311 escolas, entre as quais se contam muitas com mais do que esse número de alunos.

Socorro-me, como ilustração do que acabo de afirmar, a experiência concreta que venho acompanhando, e que respeita a três escolas do concelho onde vivo e tenho o meu filho mais velho a frequentar o 1º ciclo: Estarreja. Trata-se de um concelho que não vira nenhuma escola incluída numa primeira lista, dita provisória, tornada pública ainda em Maio, e na qual se referiam 439 escolas que preenchiam o acima referido critério dos 21 alunos, mas que veio a verificar que 3 das suas escolas foram incluídas na lista de 311 destinadas a fechar. Em qualquer uma das três escolas que encerrarão, neste concelho (Terra do Monte - Fermelã, Póvoa e Santo Amaro), o número de alunos matriculados supera o da meia centena, sendo escolas em que existem todas as condições materiais ditas ‘ideais’ (biblioteca, computadores, quadro interativos, etc.), com uma enorme virtualidade que as torna insubstituíveis: a proximidade das comunidades, o que tem permitido desenvolver estratégias de voluntariado que não acontecem nas escolas multitudinárias. Mais ainda, são escolas nas quais o sucesso é visível, bastando analisar os próprios resultados académicos: numa delas, nenhum dos alunos que concluiu o 4º ano ficou retido, tendo a grande maioria terminado exames nacionais com nível 4 e 5 (níveis mais elevados). Já para não falar do que não se pode medir, que são as garantias de uma educação esmerada porque feita com base na pessoalidade, na humanidade, que a proximidade assegura. Ora, no caso deste concelho, como terá, certamente, ocorrido em outros, as comunidades não foram ouvidas para a tomada de decisão, ao arrepio do que referia a recomendação do Conselho Nacional de Educação acima mencionada: «no processo de encerramento de escolas do 1º ciclo […] deve ser considerado o eventual interesse das autarquias e ou de interesses económicos, sociais ou culturais locais.» Tal facto, a saber, a falta de envolvimento das comunidades na tomada de decisão, soma, ao erro quanto ao conteúdo da decisão, um erro quanto à forma de a tomar, contribuindo para o agudizar do mal-estar em relação à nobre atividade política. Num dos casos que aponto, o fecho da escola, que constitui o último polo agregador da comunidade, significará a morte da própria comunidade e do seu centro social paroquial que serve as famílias que têm as suas crianças na escola e que, com elas, ali confiam os seus bebés. No dia em que os irmãos mais velhos saírem para uma escola de centro do concelho, os mais pequenos partirão com eles.

Este facto que acabo de narrar ilustra as consequências graves desta decisão que se afigura estranha num governo que se diz defensor da família, da natalidade e da maternidade. O fecho de escolas, que já não são apenas as que têm menos de 21 alunos, é um decreto de diminuição da confiança no futuro. Os frutos efetivos desta decisão só se saberão no amanhã, quando olharmos para o país e o virmos desertificado.

Chegados aqui, mais do que continuar a enunciar razões que justificam a convicção de que se trata de uma decisão errada, vale a pena deixar interrogações cuja resposta suporta o nosso ponto de partida: será aglomerando os alunos em comunidades de multidão que se combatem a indisciplina, a violência escolar, o insucesso? Será distanciando as escolas, que deveriam ser entendidas como comunidades, em grandes centros anónimos, que se garante a salvaguarda da identidade das comunidades de origem? Será desvinculando o crescimento das crianças do meio onde vivem as suas famílias que se assegura a criação de uma real cultura nacional? Será considerando os alunos como um número que estaremos a construir uma sociedade humanizada e respeitadora da pessoa? Que modelo de sociedade se pretende edificar se a escola já não for o lugar da construção da identidade pessoal em estreita unidade com a construção da identidade social? Poderá construir-se a identidade pessoal ao arrepio da construção da identidade social e comunitária? Será este, em definitivo, um caminho sem retorno? Este não é o caminho que se vem trilhando pela Europa fora, onde as comunidades vêm apostando nas escolas de proximidade, com projetos educativos reais e efetivos e não simulacros de projetos educativos. Ainda vamos a tempo de arrepiar caminho, se quisermos que a escola seja o lugar do futuro e não um passado que não quereremos lembrar.

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

  ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural' Luís Manuel Pereira da Silva*   Cerca de duas décadas ...