Dos desafios do Sínodo sobre a família às
periferias do luto
1. Vivemos,
na Igreja universal e na diocese, tempos de reflexão, de reconfiguração do agir
cristão, tempos de redefinição do que devemos ser, enquanto Igreja, neste novo
tempo. Novo tempo! É novo pela novidade própria de cada hora, mas também é novo
porque aceitámos colocar-nos em atitude de descoberta do novo. Esse deverá ser,
aliás, o porto seguro da leitura do trabalho desenvolvido no Sínodo
extraordinário dos bispos, que decorreu entre 5 e 19 de outubro. Dificilmente
se poderá compreender o que aconteceu, naqueles dias, se a leitura for feita
num registo belicista como o que se verificou entre muita abordagem feita pela
comunicação social. Não se tratou de um combate ou de uma luta, não houve
vencedores nem vencidos, não houve uma batalha, mas sim um processo de
recentração no que é fundamental. O que esteve em discussão não foi, nem
poderia ser, a redefinição da doutrina cristã sobre a família e o matrimónio,
pois nem o Sínodo estava dotado desse objetivo, dado que se estruturara como um
tempo de redefinição pastoral, nem tal corresponderia ao pensamento e desejo do
próprio Papa. Será difícil uma leitura ajustada se não se tiver em linha de
conta o que o Papa Francisco já afirmara na exortação apostólica, Evangelii Gaudium, no n.º 36:
«Todas as verdades reveladas
procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas
delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do
Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus
manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado.
Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que «existe uma ordem ou
“hierarquia” das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o
fundamento da fé cristã é diferente». Isto é válido tanto para os dogmas
da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina
moral.»
Esta referência à hierarquia das verdades, que corresponde
ao pensamento conciliar pronunciado no decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio, compromete com o
dever de anunciar, em primeiro lugar, o que é prioritário. E, com efeito, a
doutrina moral decorre do anúncio da salvação e não o contrário. É após o
encontro, é após o sentir-se acolhido da parte de cada um daqueles com quem
Jesus se encontra, que acontece a conversão e não ao contrário. Jesus não
coloca a pureza moral como condição para o encontro com Ele.
Ora, é este
recentrar que resulta dos desafios colocados pelo Sínodo dos Bispos. Em
primeiro lugar, a proposta de salvação, a proposta de que a Misericórdia divina
antecede o pecado, é ela que tem a primazia e não o pecado. Aliás, a própria
teologia tem consciência de que, particularmente após a abordagem de S. Anselmo
de Cantuária (século XI-XII), a reflexão e ação cristãs sentiram fortes
tentações hamartiocêntricas, propensão para se centrarem no pecado, em vez de
darem a primazia e a iniciativa à graça.
É particularmente
relevante, neste contexto, para a formulação do que deva ser uma leitura
ajustada do Sínodo, refletir, atentamente, sobre o relato do encontro de Jesus
com a mulher adúltera, em Jo 8,1-11. Ali, Jesus revela, por um lado, acolher,
não condenar a mulher, recebê-la na sua dignidade que o pecado não faz perder,
mas também revela condenar o pecado. A palavra final «Vai e de agora em diante não tornes a pecar» deixa clara a
separação entre o acolhimento da mulher e a condenação do pecado. Talvez esta
distinção seja das mais desafiantes que o Sínodo obriga a recuperar. Muitos,
por um lado, querem fazer crer que, ao acolher, se aceita a bondade do que era
mal; muitos, por outro lado, em nome da denúncia do mal, parecem esquecer que,
em primeiro lugar, está o acolhimento da dignidade de cada um. Como dizem,
muitas vezes, os jesuítas, o equilíbrio reslta de «ser firmes nos princípios e
tolerantes com as pessoas». Distinção jesuítica mas, seguramente, também
jesuína.
2. As periferias do luto
Na exortação
apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco refere, por 9 vezes [EG 20, 30,
46, 53, 59, 63, 191, 197, 288 (oração final)], o termo «periferia»,
conferindo-lhe o caráter de âmbito da existência necessitada da iluminação
evangélica. Caberão, nesta oportuna definição categórica, muitos terrenos
inexplorados, sedentos da luz do evangelho. Muitos, bem definidos, em termos
geográficos, físicos, identificados mesmo com pessoas, com classes, com modos
de vida. Aqueles onde a dignidade humana parece tão sumida que os humanos ali
presentes estão reduzidos a farrapos, sem que alguém lhes sussurre ao ouvido
que ainda são amados por Deus.
Mas outras
periferias estão aí, diante de nós, perpassando as nossas sociedades sem que
lhes demos a atenção merecida, por não as vermos como tal, tão perto estão de
todos nós. Entre estas contam-se as que poderemos designar como «periferias
existenciais», aquelas periferias humanas nascentes de situações-limite que
atravessam todas as classes, as idades, as geografias. Fazem-se da dor da
perda. Da dor de se ter de encontrar o sentido quando a morte toma um filho
menor, quando se fica viúvo, quando sobrevém a notícia terrível de que um dos
nossos soçobrou à tentação da droga, quando a tragédia de um acidente que
provocámos causou mortes que ninguém quis, quando recebemos o diagnóstico de
que o nosso filho em gestação será portador de doença grave, quando um nosso
filho se torna um criminoso ou quando nos morre, muito cedo, o pai ou a mãe.
Muitas vezes
recordo uma cena do filme «a última caminhada», onde o pai de uma das vítimas
do assassino que vai a executar lembrava que cerca de 80% dos casais que perdem
um filho se divorciam, dado, aliás, confirmado por um estudo de Katherine Gold,
da Universidade de Michigan, publicado no Pediatrics,
jornal oficial da Academia norte-americana de Pediatria.
Para estas
periferias do luto, em que se morre antes mesmo de a morte sobrevir, que
respostas de Igreja estamos capazes de dar? Quem é arrastado para as periferias
existenciais sente que o mundo desaba sobre si, radicalmente só, nesta solidão individual
da morte: onde pode falar, onde pode encontrar quem tenha vivência semelhante,
a quem pode contar e falar e chorar a dor que não se apaga?
Onde pode encontrar
espaços de partilha e encontro que possam ajudar a reconfigurar sentido aquela família
onde sobreveio o primeiro divórcio? Sabe-se que, numa família onde ocorre um
primeiro divórcio, aumenta consideravelmente a probabilidade de outros
sobrevirem. O que fazemos, como Igreja, para prevenir a sua ocorrência? Que
acolhimento damos a quem é vítima do abandono conjugal e fica só, muitas vezes
com filhos que pedem a serenidade que, entretanto, se esfuma?
Quem anuncia, nas
periferias existenciais, que o Amor tudo vence e que essa vitória começa, já,
no acolhimento que se encontra, nessa hora que deixa no coração a dor de uma
ausência sempre presente?
Os primeiros
cristãos tinham um cuidado especial por estes a quem o luto colocava em periferia.
Eles eram o alvo da preferência das primeiras comunidades. Importa recuperar o
que permanece dessa genuinidade cristã.