Vivemos em tempo de crise de compromisso. A palavra
dada, hoje, não é certeza, amanhã. Assim nas pequenas como nas mais decisivas
escolhas: seja no negócio feito seja no amor celebrado e anunciado
publicamente. E o mais estranho é que tal já parece não causar estranheza, o
que torna mais penosa a situação. Há como que uma acomodação geral que parece gerar
rendição, como se a situação conviesse, pois, mais cedo ou mais tarde, se
espera beneficiar dela. Valerá a pena, porém, refletir sobre o que está aqui em
causa, não apenas nas suas consequências, que são sabidas e evidentes, mas nas
suas causas. Na verdade, o diagnóstico desta situação revela uma imagem do ser
humano que não podemos subscrever.
Muitos são os que classificam a nossa época como o
tempo em que a dimensão do ser humana mais valorizada é a do afeto e mais do
que o afeto, os afetos. Chamam-lhe era «pós-moderna» (por oposição à moderna,
em que a dimensão mais valorizada era a inteligência, a razão), ou
«hipermoderna» (marcada pela deceção) ou, ainda, «sobremoderna» (em que os
tempos e lugares da vida deixaram de ser significantes, de ter carga simbólica
e força de presença existencial. Vivemos aquilo a que um antropólogo francês,
Marc Augé, chamava os «não-lugares». Passamos pela vida mas ela não nos deixa
marcas significativas e nós, também, não deixamos nela marcas, porque os tempos
e os lugares já nada dizem: são, apenas, sítios e sequências de tempo ‘onde’
temos de transitar.
Esta condição humana só pode levar-nos a um abismo
de tristeza e angústia, que nos exige redescobrir aquilo que lhe confere
sentido e significado. Tal é a resposta que deverá caber às religiões, e, em
particular, ao cristianismo, de que se espera que ouse sair da rotina das
repetições para «revelar» os significados que, por detrás da linguagem
religiosa, se desvendam. Tal papel ganha especial pertinência no caso que
estamos a analisar. Só pode comprometer-se, só pode dar a palavra e ser-lhe
fiel quem discerniu, à luz de um sentido último, o valor de cada pequena
decisão. Com efeito, estou convencido de que a crise do compromisso é uma crise
de sentido, por um lado, mas também uma crise de humanidade, por outro, ainda
que ambas andem estreitamente unidas. Explico-me.
Se não sabemos para onde vamos, como dizia o grande
estoico latino, Séneca, nada nos será útil. Ele dizia-o de um modo mais
metafórico: «não há ventos favoráveis para barco sem destino». Quem não sabe
para onde vai, não vai para lado nenhum. Se não nos sabemos feitos para algo
maior, eterno, definitivo, nada é senão reduzido ao já. Esta é a primeira
dimensão da resposta: a crise religiosa começada no século XIX e de que ainda
se recolhem os estilhaços, faz mossa, e criou a fragilização do sentido do
próprio agir humano.
Mas há outra dimensão, que já deixávamos
transparecer no início.
O ser humano é, certamente, também afeto, dimensão
sensitiva. O ser humano sente o que acontece ao seu redor e nada lhe é
indiferente. Porém, por ser feito de vontade e inteligência, ele não pode
reduzir-se à afetividade. Amar, por exemplo, não pode ser só «sentir» ou «um
sentimento». Se o fosse seria muito pouco. Ele tem de ser uma decisão do ser
humano enquanto todo. O ser humano define-se enquanto ser capaz de discernir,
escolher. E, após escolher, a sua vontade, sempre iluminada pela razão, pela
inteligência, deve ser mobilizada para permanecer fiel ao que, por discernimento
feito, decidiu escolher. E aqui é notório um quadro de falhas no processo de
escolha, nos nossos tempos. Em primeiro lugar, a vertigem em que vivemos, faz
com que pouco ou nenhum tempo nos reste para poder discernir e escolher e, em
segundo lugar, muitas vezes, não escolhemos em plena presença de tudo o que
somos, mas determinados apenas pelo que sentimos. E isso é muito pouco. Somos
muito mais do que sentimos. Somos a síntese inteligente e decidida do que
fazemos com o que sentimos. O ser humano «pós-moderno» deixou-se reduzir a
sensações e isso põe em crise, parafraseando Giovanni Sartori, «o próprio homo
sapiens», isto é, quem somos como seres distintos dos demais animais e entes. É
urgente redescobrir o tempo para discernir, para escolher e, feita a escolha,
decidirmo-nos, em cada dia, a ser fiel à decisão. Quanta implicação daqui
resultaria para a vivência do amor, da liberdade, para a construção da própria
felicidade!
Luís Silva