segunda-feira, outubro 27, 2014

Há um tempo para decidir e um tempo para ser fiel às decisões

Vivemos em tempo de crise de compromisso. A palavra dada, hoje, não é certeza, amanhã. Assim nas pequenas como nas mais decisivas escolhas: seja no negócio feito seja no amor celebrado e anunciado publicamente. E o mais estranho é que tal já parece não causar estranheza, o que torna mais penosa a situação. Há como que uma acomodação geral que parece gerar rendição, como se a situação conviesse, pois, mais cedo ou mais tarde, se espera beneficiar dela. Valerá a pena, porém, refletir sobre o que está aqui em causa, não apenas nas suas consequências, que são sabidas e evidentes, mas nas suas causas. Na verdade, o diagnóstico desta situação revela uma imagem do ser humano que não podemos subscrever.
Muitos são os que classificam a nossa época como o tempo em que a dimensão do ser humana mais valorizada é a do afeto e mais do que o afeto, os afetos. Chamam-lhe era «pós-moderna» (por oposição à moderna, em que a dimensão mais valorizada era a inteligência, a razão), ou «hipermoderna» (marcada pela deceção) ou, ainda, «sobremoderna» (em que os tempos e lugares da vida deixaram de ser significantes, de ter carga simbólica e força de presença existencial. Vivemos aquilo a que um antropólogo francês, Marc Augé, chamava os «não-lugares». Passamos pela vida mas ela não nos deixa marcas significativas e nós, também, não deixamos nela marcas, porque os tempos e os lugares já nada dizem: são, apenas, sítios e sequências de tempo ‘onde’ temos de transitar.
Esta condição humana só pode levar-nos a um abismo de tristeza e angústia, que nos exige redescobrir aquilo que lhe confere sentido e significado. Tal é a resposta que deverá caber às religiões, e, em particular, ao cristianismo, de que se espera que ouse sair da rotina das repetições para «revelar» os significados que, por detrás da linguagem religiosa, se desvendam. Tal papel ganha especial pertinência no caso que estamos a analisar. Só pode comprometer-se, só pode dar a palavra e ser-lhe fiel quem discerniu, à luz de um sentido último, o valor de cada pequena decisão. Com efeito, estou convencido de que a crise do compromisso é uma crise de sentido, por um lado, mas também uma crise de humanidade, por outro, ainda que ambas andem estreitamente unidas. Explico-me.
Se não sabemos para onde vamos, como dizia o grande estoico latino, Séneca, nada nos será útil. Ele dizia-o de um modo mais metafórico: «não há ventos favoráveis para barco sem destino». Quem não sabe para onde vai, não vai para lado nenhum. Se não nos sabemos feitos para algo maior, eterno, definitivo, nada é senão reduzido ao já. Esta é a primeira dimensão da resposta: a crise religiosa começada no século XIX e de que ainda se recolhem os estilhaços, faz mossa, e criou a fragilização do sentido do próprio agir humano.
Mas há outra dimensão, que já deixávamos transparecer no início.
O ser humano é, certamente, também afeto, dimensão sensitiva. O ser humano sente o que acontece ao seu redor e nada lhe é indiferente. Porém, por ser feito de vontade e inteligência, ele não pode reduzir-se à afetividade. Amar, por exemplo, não pode ser só «sentir» ou «um sentimento». Se o fosse seria muito pouco. Ele tem de ser uma decisão do ser humano enquanto todo. O ser humano define-se enquanto ser capaz de discernir, escolher. E, após escolher, a sua vontade, sempre iluminada pela razão, pela inteligência, deve ser mobilizada para permanecer fiel ao que, por discernimento feito, decidiu escolher. E aqui é notório um quadro de falhas no processo de escolha, nos nossos tempos. Em primeiro lugar, a vertigem em que vivemos, faz com que pouco ou nenhum tempo nos reste para poder discernir e escolher e, em segundo lugar, muitas vezes, não escolhemos em plena presença de tudo o que somos, mas determinados apenas pelo que sentimos. E isso é muito pouco. Somos muito mais do que sentimos. Somos a síntese inteligente e decidida do que fazemos com o que sentimos. O ser humano «pós-moderno» deixou-se reduzir a sensações e isso põe em crise, parafraseando Giovanni Sartori, «o próprio homo sapiens», isto é, quem somos como seres distintos dos demais animais e entes. É urgente redescobrir o tempo para discernir, para escolher e, feita a escolha, decidirmo-nos, em cada dia, a ser fiel à decisão. Quanta implicação daqui resultaria para a vivência do amor, da liberdade, para a construção da própria felicidade!

Luís Silva

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