O
conceito de fundamentalismo tem, no contexto dos estudos fenomenológicos sobre
a religião, uma especificidade que não será a que teremos aqui. Com efeito, na
fenomenologia da religião, o termo aparece associado aos movimentos de matriz
protestante, surgidos em reação às tendências liberais de interpretação da
bíblia, que encontraram resposta defensiva na conferência de Niagara Falls, em
1895.
Não
é ao conceito preciso aqui implícito que nos pretendemos confinar, agora.
Fundamentalismo será, aqui, o sinónimo da atitude de quem considera a
formulação que possui como sendo a única forma de expressão da verdade,
considerando, por isso, essa formulação como definitiva, não admitindo outras
vias de resposta, e restando-lhe, por isso, a imposição forçada aos demais.
Vem
esta reflexão a propósito dos preocupantes sinais, a que vamos assistindo, de
emergência de movimentos que, assentes nesta visão aqui designada como
fundamentalista, se propõem impor a verdade que possuem pela via da força,
socorrendo-se, inclusive, se necessário, da violência e do terror. Tal leitura,
que vem encontrando, nos movimentos jihadistas (que vão buscar a sua raiz
última ao wahhabismo, corrente fundada por Muhammad Abd’ al-Wahhab no século
XVIII), um terreno fértil de proliferação, não é, infelizmente, um exclusivo
desta manifestação religiosa. De algum modo, também encontramos tristes
réplicas na intolerância inquisitorial católica ou nos movimentos ortodoxos e
ultraortodoxos judaicos, no fundamentalismo hindu (consolidado a partir de final
do século XIX) ou, ainda, no de matriz sikh (cujas raízes remontam já ao século
XVII).
É
relevante, para a nossa reflexão, tomar consciência, desde já, de que o
fenómeno, tendo forte expressão no contexto religioso, não é um exclusivo seu.
De facto, o que se expressa no fundamentalismo religioso é a tentação comum de
impor aos demais a verdade que se possui, seja ela de foro político,
desportivo, nacionalista ou outro.
É
perante esta constatação que importa verificar que, sendo frequente a
instrumentalização da religião para este fim, poderá, curiosamente,
encontrar-se na própria religião o antídoto contra este terrível veneno. Na
verdade, o que acontece no fundamentalismo é a consideração de que uma
determinada forma de olhar a realidade seja a última, definitiva e insuperável,
conferindo-se-lhe um caráter absoluto e inultrapassável.
Formulado
deste modo, podemos constatar que o que acontece no fundamentalismo contradiz o
conteúdo mais básico de qualquer das três religiões proféticas – Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo. Na verdade, cada uma delas defende que um é o Criador
e outra a criação. O absoluto está fora da história, cabendo à história a
condição de caminho em direção ao absoluto, ainda que nunca conseguindo
atingi-lo de modo definitivo. Poderá, à luz desta constatação, verificar-se que
nenhuma outra experiência humana para além da religiosa está em tão
privilegiada condição para combater as tentações de absolutização da verdade
como definitiva como o está a religião, em particular as proféticas. Disto tem
particular consciência o Papa Francisco que, na sua encíclica Lumen Fidei, recordou, no número 34, que
“a fé não é intransigente, mas cresce na convivência que respeita o outro. O
crente não é arrogante; pelo contrário, a verdade torna-o humilde, sabendo que,
mais do que possuirmo-la nós, é ela que nos abraça e possui. Longe de nos
endurecer, a segurança da fé põe-nos a caminho e torna possível o testemunho e
o diálogo com todos.”
Esta
formulação feliz do Papa Francisco (nesta encíclica escrita a quatro mãos com o
Papa emérito Bento XVI) permite consciencializar que, ao discutirem-se os
problemas que nos coloca o fundamentalismo, a opção não é entre o
fundamentalismo e o relativismo (como se, então, tudo valesse o mesmo!), mas
sim entre estas duas opções e a convicção fundamentada e dialogante. O crente,
que se sabe a caminho, sabe ter descoberto um tesouro, que, como tal, pretende
partilhar com os demais, mas que jamais lhes deve impor. Porque não se impõe um
tesouro a ninguém.
Para
tal, exige-se que o crente se disponha a conhecer as razões da sua fé, sabendo
que o modo de Deus se lhe apresentar não esgota a totalidade da riqueza de
Deus, pois, como bem recordava, já no século II, São Justino, há outros
caminhos onde se manifestam as «sementes do verbo» (“Semina Verbi”), ideia
central tantas vezes repercutida no pensamento de alguns dos maiores teólogos
cristãos, merecendo aqui destaque o de Karl Rahner, que a tinha, seguramente,
como fundamento da sua convicção de que a verdade poderia estar, também,
naqueles que ele designava como “cristãos anónimos”, não por uma qualquer visão
arrogante e presunçosa perante os outros, mas como atitude de reconhecimento da
fraternidade que une em Deus a todos os que buscam a verdade. Desta leitura
fazem eco, no Vaticano II, quer Nostra
Aetate, quer Dignitatis Humanae,
dois documentos fundamentais para a compreensão do pensamento católico sobre
esta problemática.
Exige-se,
ainda, perceber que o mistério de Deus que se repercute nas palavras ditas em
cada tempo e lugar não pode confinar-se à concretude das formulações e das
designações. Ele transcende-as, ainda que nelas subsista a verdade que as torna
válidas e seguras. Na realidade, a tentação de deter a verdade não é de agora.
Os próprios discípulos a sentiram, mas a resposta de Jesus Cristo foi clara: “Disse-lhe João: «Mestre, vimos alguém expulsar
demónios em teu nome, alguém que não nos segue, e quisemos impedi-lo porque não
nos segue.» Jesus
disse-lhes: «Não o impeçais, porque não há ninguém que faça um milagre em meu
nome e vá logo dizer mal de mim. Quem não é contra nós é por nós.” (Lc
9, 38-40). E o que dizer do critério último para
a salvação, como no-lo apresenta Mateus, na sua plástica imagem sobre o juízo
final, apresentada em 25, 30-46? O critério será a transformação da
verdade revelada em realidade humanizada.
Importa,
por isto tudo, entender que o fundamentalismo é uma tentação que perverte e
trai a religião, na medida em que confunde a criação (o finito) com o Criador
(o absoluto), pretendendo no finito o que só se atingirá no absoluto. Importa,
também, compreender que, perante o fundamentalismo, a opção que resta não é o
relativismo, mas a convicção fundamentada e dialogante, disposta a partilhar e
aprender. Condições que devolverão, seguramente, às religiões o seu papel de
fundadoras de uma sociedade mais humanizada e, por isso, mais capaz de
encaminhar o homem para o seu destino definitivo, ao mesmo tempo que promoverão
o encontro com outros tipos de leitura da realidade, como a abordagem
científica, filosófica, etc. Muito terá o nosso tempo a ganhar se se processar
a libertação de toda uma série de preconceitos de uns para com outros, e se se
cultivar a convicção de que todos estamos a caminho. Às religiões poderá caber
mostrar para onde se dirige esse caminho. Assim saibam elas fazer-se ao caminho
com os homens.