Grandes
ilusões geram grandes desilusões. Assim é na vida; assim é na ordem do
pensamento.
Vivemos
tempos reconhecidamente individualistas, marcados por um egocentrismo cultural
que parece levar de vencida uma batalha em que todos somos, em simultâneo,
adversários e leais defensores, num combate absurdo, em que parecemos querer
insurgir-nos ao mesmo tempo que nos rendemos como se a derrota nos fosse
favorável. Queixamo-nos dele, mas vivemos dele, como se não pudéssemos
dispensá-lo.
Este
paradoxo da nossa sociedade contemporânea, a que já chamaram pós-moderna,
hipermoderna, mas também anti moderna e, mesmo, época de crise, sem identidade
nem definição, merece análise. Seja o que for que chamemos à nossa época, será
difícil escapar ao reconhecimento de que se configura como um tempo de
afirmação da autonomia entendida de forma solipsista [o indivíduo encerrado em si mesmo]: definimo-nos por oposição aos outros. Representa muito bem
esta definição um propalado adágio que sustenta que «a minha liberdade acaba
onde começa a do outro». Uma frase que, de tantas vezes repetida, se torna uma
verdade em que pouco se reflete. Nela se concentra, porém, a visão que, de
facto, se foi consolidando do que seja a liberdade: um exercício meramente
individual em que os outros são um estorvo. Uma tal definição nasce, porém, de
um tremendo erro. O erro em que parece gravitar uma certa linha de entendimento
do que seja a modernidade.
Para
nos entendermos, consideremos a modernidade como a era iniciada no século XV (é
usualmente atribuído à queda de Constantinopla, em 1453, o estatuto de marco
definidor do fim da idade média e início da moderna), que se afirma pelos
valores da autonomia, pela ideia do progresso e pela importância do futuro. A
modernidade vincula-se à ideia de afirmação do humano diante de tudo o que
pudesse limitá-lo. Tal ideia, por si, positiva, contribuiu, porém, para a
gestação de um conceito de liberdade como afirmação da identidade por oposição
a outros, favorecendo a convicção de que o processo de libertação seja um
dinamismo meramente individual, em que tanto mais se será quanto mais se
afastar da relação com os demais. Neste quadro, apareceram movimentos
fortíssimos que vincularam a modernidade a esta compreensão, influenciando, de
modo decisivo, o pensamento ocidental, particularmente a partir do século XVIII
(com nomes como Rousseau, Hobbes, Locke e tantos outros que ainda hoje
continuam a chegar-nos, por exemplo, através de certas conceções pedagógicas), e
cuja marca continua a sentir-se, talvez mais forte do que nunca, afirmando que
antes da comunidade está o indivíduo. Mais ainda, sustentando que o ser humano
só será na medida em que se afirmar como indivíduo, na sua solidão. Todo o
pensamento liberal (nas suas mais diversas manifestações: da política à
economia, da moral à própria teologia) tem a sua génese neste processo.
Como
observa, porém, um dos grandes gurus desta visão da sociedade, no final do
século XX, Francis Fukuyama, há aqui uma espécie de pecado original de que
importa tomarmos consciência para começar a inverter este processo que não
poderá senão conduzir a sociedade ao seu próprio fim, pois uma tal visão faz da
sociedade uma mera soma de indivíduos.
Fukuyama
recorda, num dos seus mais recentes livros - «as origens da ordem política»-,
que Rousseau, Hobbes e Locke estão entre os mais influentes preconizadores
desta visão. Ora, continua Fukuyama, «qualquer um dos três pensadores
considerou os seres humanos no estado de natureza enquanto indivíduos isolados,
para os quais a sociedade não era natural. […] a sociedade humana surge apenas
com a passagem do tempo e envolve cedências ao nível da liberdade natural.»
Fukuyama vem a reconhecer, no referido livro, que, por oposição a estes, muitos
séculos antes, «Aristóteles estava mais correto do que estes teóricos liberais
dos primórdios da modernidade, quando afirmava que os seres humanos são
políticos por natureza».
Tais
afirmações devem levar-nos a reconhecer que o que nos define não pode ser uma
certa ideia de liberdade em que os outros são um estorvo, mas uma ideia de
liberdade em que a nossa realização só pode ocorrer porque nela e com ela
também os outros se realizam. Melhor seria, assim, dizer que a nossa liberdade
só aumenta na medida em que fizer aumentar a liberdade dos outros e diminuirá
na medida em que fizer diminuir a dos demais.
A
grande ilusão da modernidade – aliás, de uma certa modernidade! – foi admitir
que alguém pudesse tornar-se mais humano sem os outros. Tal ilusão não poderia
senão gerar enorme desilusão, pois parte de pressupostos errados, pressupostos
sobre o que seja o ser humano que nada têm a ver com a real natureza humana. O
homem só se torna humano na medida em que os outros suscitam nele a humanidade
que está em potência. Tal reconhecimento faz de nós um-ser-para-os-outros e
um-ser-com-os-outros. Tudo o que seja negação disto será negação do humano na
sua própria definição.
E
veja-se como tal pode permitir compreender como decisões que pressupõem um
humano fechado sobre si mesmo, autocompreendido, são decisões suicidas e
«geradoras» de morte. No contexto português atual, em que se discute a
possibilidade da legalização da eutanásia, este é o erro de tal aceitação, na
sua origem. Muitos, que defendem a eutanásia como se ela fosse uma espécie de
suicídio perpetrado por outro, erram, precisamente, por pressuporem que o
suicídio fosse um ato meramente individual. Nada mais errado, sendo que a
eutanásia não é um suicídio, mas um ato perpetrado por alguém a quem caberia
cuidar a pretexto da compaixão.
Como
recorda a psiquiatra, Alexandrina Meleiro, na Revista Brasileira de Medicina
(Set 2013) recuperando afirmações formuladas pelo filho de um suicida, «quando
uma pessoa se mata, não se mata só a si mesma. Mata todos ao seu redor. Mata
todos os que a amam. Condena todos os outros para sempre. O suicídio amaldiçoa
os seus parentes e amigos para sempre. A pessoa que se mata condena e prende
todos os outros.»
Importa
superar a ilusão, para não redundar numa desilusão. E a sua superação só poderá
ocorrer olhando, de frente, o humano real que somos, aceitando-o como é, nos seus
limites, porque a fragilidade, a vulnerabilidade, fazem parte da sua
identidade; são, aliás, a condição que nos torna recetivos aos outros e, por
isso, afinal, capazes de ser afetados (o que os afetos demonstram!)
por eles e, com eles, construir a identidade que somos que, enfim, é um nó de
identidades em confluência. Nós somos pelos outros. Os outros são-no por nós. E
isto não gera desilusão: realiza-nos!