Nenhuma ação humana pode realizar-se sem ser movida
por algum valor. Todo o homem que age (e até quando decide não agir) fá-lo em
nome (consciente ou inconscientemente) de valores. Neste contexto, a amoralidade
é uma possibilidade meramente abstrata. Assim, quando se fala de crise de
valores, do que se está a falar é de uma inversão ou, mesmo, perversão da
hierarquia dos valores. Aqueles que deveriam ser os valores prioritários são
secundarizados, em nome de outros que, de segundos, passam a primeiros. Este é
o enquadramento que permite, por exemplo, no contexto português, analisar como
foi decidida a adoção de leis sobre o aborto ou como está a ser discutida a
possibilidade de legalizar a eutanásia. Em ambas as discussões, os decisores
políticos deixaram prevalecer valores secundários em relação a valores mais
fundamentais e estruturantes.
À luz deste enquadramento, valerá a pena recuperar
a ideia de que esta crise de valores tem uma outra crise latente, sobre a qual
vale a pena refletir.
É que a inversão dá-se concedendo prioridade a
valores mais imediatos em relação a outros que, por serem mais radicais, exigem
que se reflita sobre eles e sobre a sua importância. E tal exige prescindir de
seguir as emoções momentâneas para dar tempo ao raciocínio e à reflexão. E aí
nasce o problema.
Na realidade, os grandes nomes da reflexão detida e
serena, entre os quais poderemos invocar a autoridade dos Papas mais recentes
(Bento XVI deu particular importância a esta matéria), mas também outros de
quadrantes diferentes (Giovanni Sartori, Gilles Lipovetsky, Alain de Botton)
vêm dizendo que vivemos uma crise que atinge o âmago do que nos define como
homo sapiens. A nossa evolução distintiva fez de nós seres que souberam
transcender as emoções, os instintos, em nome da razão e da reflexão cuidada e
tranquila e, por isso, distante da intensidade dos acontecimentos. Esse é o
papel que se espera, aliás, do direito e da justiça: conferir distância crítica
para ajuizar bem. E «bem» é dando prevalência aos valores fundamentais em
relação aos secundários.
Mas retomemos o fio do raciocínio. Para tal,
recuperemos dados da reflexão de Giovanni Sartori que afirma que, se
deixássemos alguém ser educado pela televisão ou pelos meios de comunicação
social, essa pessoa seria incapaz de pensar com lógica, perderia, por isso, a
dimensão de «sapiens», substituindo-a pela dimensão do «ver». O homo sapiens
cederia o lugar ao «homo videns». Outros, ainda, na linha de Huizinga, reduzem
o homem à dimensão do divertimento, designando-o como «homo ludens», o homem
que joga, que se diverte. É, aliás, neste registo que Gilles Lipovetsky analisa
esta fase da história em que estamos e a considera como «hipermoderna», uma era
de deceção, em que nos distraímos para ocultar a interrogação sobre a vida.
Esta hipermodernidade cria seres que desistem de viver a sua vida e se divertem
a imitar idades que já não têm. Chama a estes indivíduos adultos, que se
distraem sendo adolescentes, os «adultescentes». O que há de comum a todos
estes retratos é algo inquietante. Estamos num tempo que desistiu de parar para
pensar e interrogar-se sobre o sentido das suas ações, das suas decisões,
enfim, da sua vida! É, aliás, este o desafio fundamental da ação e missão da Igreja,
hoje. A Igreja tem respostas, a Igreja tem uma proposta de salvação para a
humanidade; contudo, vale a pena saber se a humanidade se sabe perdida! Ter
respostas quando não há perguntas cria um diálogo surdo. O grande repto é, sem
dúvida, suscitar a interrogação, fazê-la emergir, pôr a pensar sobre a vida, e
não dar como certo que o que muitos dizem ser aceitável corresponderá ao que é
verdadeiro e certo. É de justiça, neste contexto, recuperar as sábias palavras
do sempre oportuno Chesterton, no seu livro «Ortodoxia»: «Um homem deve ter
dúvidas sobre si mesmo, mas não deve ter dúvidas sobre a verdade; ora, o que se
passa hoje é exatamente o inverso» E este era um retrato do que se passava no
início do século XX. Mas os gérmenes já lá estavam. Hoje, a convicção de que já
não valerá a pena continuar a procurar a verdade gerou a certeza de que ela não
existe. E, com a morte da verdade, a ética fica moribunda.
É curioso, por isso, constatar que, hoje, poucos
terão feito tanto pela verdade e pela ética como a Igreja, ainda que muitos a
pretendam acantonar num preconceito de obscurantismo e irracionalidade. O já
referido Chesterton, agora pela boca de uma das personagens das suas obras de
ficção policial, o Padre Brown, reconhecia exatamente o mesmo: «eu sei que as
pessoas acusam a Igreja de diminuir a razão, mas o que sucede é o inverso. Na
Terra, somente a Igreja atribui verdadeira supremacia à razão. Na Terra,
somente a Igreja afirma que o próprio Deus está sujeito à razão.» E assim é,
com efeito. É bom lembrar que nunca a Igreja cedeu ao nominalismo ou à visão
arbitrária sobre as decisões divinas. A Igreja nunca subscreveu, por exemplo,
as abordagens predestinacionistas, que defendiam que nada nos podia permitir
saber qual o caminho da salvação.
E hoje, mais do que nunca, é necessário reconhecer
que, sem o respeito pela verdade, pela busca insaciável do que ‘é’ e ‘deve ser’,
geram-se as condições para a arbitrariedade que fará regredir o homem ao antes
de si. «As pessoas que começam a lutar contra a Igreja em nome da liberdade e
da humanidade acabam por combater a liberdade e a humanidade para poderem lutar
contra a Igreja». Chesterton, de novo!
Neste retrato, fica evidente que a crise de valores
expressa uma latente crise de verdade, de lógica, de pensamento, de razão e de
lucidez. Como sempre, desde a sua origem, espera-se da Igreja, hoje, que
continue a salvar a humanidade. E salvá-la, hoje, é continuar a exigir-lhe que
reflita e que não decida sem refletir. Porque «sem verdade, cai-se numa visão
empirista e cética da vida, incapaz de se elevar acima da ação porque não está
interessada em identificar os valores — às vezes nem sequer os significados —
pelos quais julgá-la e orientá-la.» (Bento XVI, Caritas in Veritate 9). A verdade é esse horizonte que permite
discernir e interpretar os sinais dos tempos. De outro modo, como reconhecia o
estoico latino Séneca, não haverá ventos favoráveis por andarmos sem destino.
Pois, se andarmos e persistirmos no erro, sem com tal nos inquietarmos,
andaremos errantes! Errar far-nos-á errantes!