Começo por fazer uma declaração de
interesses: mesmo contra o meu interesse individual, sou a favor daquilo que os
contratos de associação, na educação, defendem. Pelo facto de ser professor
numa escola pública de iniciativa estatal, não perdi a noção do que está em
causa e, como sempre me pautei pela verdade e fidelidade aos valores que
considero fundamentais, não é porque eu possa ser afetado nos meus interesses
individuais que deixarei de os defender.
Quem existe primeiro: o Estado ou a sociedade? O que fica
em causa com o fim dos contratos de associação?
O que está em causa não é, nem pode ser, só
uma questão de gestão dos recursos financeiros. Se assim for, o Estado social
morreu! É, aliás, o que está em causa em alguns Estados americanos em que se
discute, por exemplo, se faz sentido financiar, publicamente, doenças que foram
contraídas por motivo de comportamentos tidos por quem as padece (por ter
fumado, por ter conduzido com excesso de velocidade, etc…). O raciocínio não
pode ser reduzido à mera discussão de cifrões, quando em causa está a justiça e
uma liberdade tão fundamental como a de educar. Para mais, esta discussão tem
mostrado todo o tipo de números: uns demonstram que a escola pública de
iniciativa estatal é mais cara, outros que é mais barata… Bem parece que os
estudos e resultados são feitos à medida de quem os solicita!
O caráter pantanoso desta motivação obriga a
ir ao que é fundamental. E o que é fundamental é o que nos dizem a Constituição
e a lei de bases do sistema educativo, ambas fazendo decorrer o que aqui está
em discussão de um princípio que tem estado esquecido: o princípio que afirma
que o Estado é subsidiário da sociedade. O Estado existe porque existe a
sociedade e não o contrário. O Estado deve ser garante da justiça e da equidade
e não o destruidor da sociedade porque a pretende absorver e substituir. É bom
que se afirme, aliás, que nem a iniciativa estatal nem a iniciativa privada
são, só por si, garantia de justiça. A justiça está-lhes acima: ambas são um
meio para a sua realização, pelo que nunca se devem absolutizar. O que torna
boa uma resposta não é o facto de ser de iniciativa do Estado ou de ser de
iniciativa privada, mas sim se respeita a justiça e a equidade, o bem comum e a
integralidade da pessoa.
Quem é o primeiro responsável pela educação das crianças:
o Estado ou os pais?
Mas regressemos à enunciação do princípio
acima invocado. Tal princípio, designado como «subsidiariedade», afirma que
«quando uma instância mais próxima consegue assegurar a resposta a um problema,
de forma justa, não deve ser a superior a assegurá-la». Na constituição, este
princípio, em matéria de educação, é garantido, entre outros, no artigo 67º, em
que se afirma que ao Estado incumbe «c) Cooperar com os pais na educação dos
filhos», o que significa reconhecer-lhes, aos pais, o papel original e ao
Estado o subsidiário em relação aos pais em matéria de educação. Este princípio
é repercutido na lei de bases do sistema educativo, em que se afirma, no artigo
57º, que «é
reconhecido pelo Estado o valor do ensino particular e cooperativo como uma
expressão concreta da liberdade de aprender e ensinar e do direito da família a
orientar a educação dos filhos». Tal definição de motivos afasta o caráter
provisório da possibilidade de uma rede pública com iniciativa estatal e
particular. Não é por razões conjunturais, mas sim fundamentais, que existe
rede pública com iniciativa estatal e particular, sendo que quem opta, gozando
a liberdade constitucional, por uma escola pública de iniciativa particular,
não deve ser avaliado como estando a ter um privilégio, mas sim como usufruindo
de um direito que deve ver respeitado. É, aliás, muito estranho o raciocínio
dos que defendem que quem escolhe uma escola pública de iniciativa particular
não deve ver garantido o seu direito só pela razão de estar a fazer uma
determinada escolha ou opção bem definida, como se, por esse motivo, tivesse,
necessariamente, de pagar a sua escolha. Como se escolher fosse sempre um
privilégio e não correspondesse a um direito! Seria curioso aplicar este
raciocínio a quem o defende: defenderia, por exemplo, que, por alguém ser
eleito por um determinado partido, só pelo facto de ser de um partido
identificado, o seu vencimento fosse pago pelo partido por que foi eleito? Ou que,
por se ser representante de um sindicato determinado, se tivesse de ser
remunerado por ele? Em nenhum destes casos se pretende aplicar o raciocínio que
se utiliza quando em causa estão as escolhas dos outros. O direito
constitucional de escolher o modelo de educação que se pretende tem de ser
salvaguardado. E o melhor modo tem sido, de facto, através dos contratos de
associação. Este tem sido o instrumento que tem permitido que todos, ricos e
pobres, beneficiem do serviço público que lhes é prestado, mesmo que em instituições
de iniciativa particular. Ora, o que deveria discutir-se é se a justiça e o
acesso de todos está garantido e em que condições e não pôr em causa a sua
possibilidade como se na iniciativa estatal se esgotasse a oferta pública. Se
tal afirmação fosse verdadeira, nesta como noutras áreas, então teríamos de
concluir que só um modelo coletivista de Estado seria justo e equitativo. O
público reduzir-se-ia ao que é de iniciativa estatal. Nada caberia no estatuto
de serviço público senão isso. E o que seria de todas as entidades coletivas de
utilidade pública, tantas delas de iniciativa particular e que têm mantido de
pé esta nação quando tudo o mais desaba?
Será essa a ideia de Estado
que se quer preconizar? Será essa a ideia de equidade que se pretende defender?
O ensino público de educação só deve ser
prestado por instituições de iniciativa estatal?
E o que dizer de tudo o que
agora se discute, quando se constata que do que estamos a falar é de apenas 1%
de todos os estabelecimentos de educação do país, quando, comparando com casos
como a Holanda, concluímos que, aí, entre 70% a 80% dos estabelecimentos
públicos são de iniciativa particular, num regime semelhante ao dos contratos
de associação?
Para quem possa interpretar
esta posição como motivada por qualquer intuito que não o da simples defesa dos
valores aqui evidenciados, socorro-me do que ouvi, de viva voz, em 2010, no
Fórum «Pensar a Escola, Preparar o Futuro», ao insuspeito professor Guilherme
d’Oliveira Martins, então presidente do Tribunal de Contas e ex-ministro da
Educação de um governo do Eng. António Guterres: «As redes têm de buscar e encontrar
tudo o que seja criador, construtivo, tudo o que tenha a capacidade de fazer
crescer e desenvolver. Por isso, ao falar de redes de serviço público de
educação, temos de referir as várias componentes, as várias iniciativas –
social, privada e estatal. Todas essas iniciativas têm que se complementar,
nenhuma pode ser desperdiçada, e a liberdade de ensinar e aprender é algo que
tem de ser profundamente assumido em todas as suas consequências […] devendo a
lógica de rede contrapor-se ao centralismo e à orgânica hierarquizada. Se bem
repararem, a maior parte das vezes encontramos um consenso discursivo sobre a
liberdade, mas depois há uma grande dificuldade prática em cumprir, há uma
grande distância entre o que se diz e o que se faz.» Estas não são palavras
minhas. São do Professor Guilherme d’Oliveira Martins e podem ser lidas, na
íntegra, na revista que recolheu as conferências proferidas no fórum acima
referido, promovido na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. (Conferir Revista
Pastoral Catequética 23, 2012, p.
72-73). A revista é de 2012, mas reproduz conferências de 2010.
O professor Guilherme
d’Oliveira Martins vai ainda mais longe, concretizando estes pressupostos e
recordando que «em Portugal tivemos uma experiência extraordinária, que foi a
criação da rede de educação pré-escolar. Uma vez que se tratou da criação de
uma rede nova, tivemos um enorme sucesso, porque foi possível envolver à
partida as várias iniciativas. Só isso garantiu esse sucesso e não foi feito
aquilo que tradicionalmente se faz, que é construir de cima para baixo o
sistema e ter a ideia de que o Estado vai fazer tudo.» (p. 73) A rematar a sua
conferência, o ex-ministro sublinha que «o serviço público de educação assenta,
pois, na ideia democrática do pluralismo, na ideia de que as diferenças e que o
reconhecimento das diferenças é fundamental para assegurar que a liberdade seja
igual e que a igualdade seja livre [pois] ao falarmos de serviço público de
educação, estamos a referir o serviço das pessoas, pelas pessoas e para as
pessoas.» (p.74)
Já não é de hoje o objetivo de acabar
com o pluralismo na educação…
Há, na forma como se está a
denunciar os contratos de associação, muita ideologia em jogo e muita falta de
transparência. E não se pense que estou a sustentar o enriquecimento de grandes
grupos com a educação. Isso não faz parte dos meus interesses nem das minhas
motivações. Estou, sim, a recordar-me da história do nosso país que, sempre que
eliminou a diversidade de escolhas, na educação, conduziu o país ao naufrágio.
Disso, o melhor exemplo é o do Marquês de Pombal que, como bem recorda Jorge
Buescu, no seu ensaio «Matemática em Portugal: uma questão de educação»,
extinguiu o ensino ministrado pelos jesuítas, conduzindo o país a um descalabro
que durou 150 anos (cfr. P. 61). Henrique Leitão, Prémio Pessoa em 2014, faculta
argumentos para fundamentar esta afirmação, no programa Visita Guiada de 10 de novembro de 2014, dedicado à forma como o
Marquês de Pombal criou a ideia falsa de que os jesuítas eram contra a ciência,
ideia que lhe criou as condições para orquestrar a sua expulsão de Portugal,
com graves custos para a cultura científica no país.
O momento exige frescura de
espírito, coragem para olhar para os valores que estão em causa e distância
para abordar a matéria sem ideologias, nem liberais, nem estatizantes. O que
deve estar em causa não deve ser quem tem os interesses mais poderosos, mas a
defesa de um direito a escolher como quero educar os meus filhos. E esse deve
ser um direito insofismável e não apenas reservado a quem tem condições
financeiras para o exercer. Os contratos de associação têm sido o melhor
instrumento para o assegurar.