O nosso tempo tem andado muito
esquecido. Esquece-se com facilidade! Anula a memória de si e a memória que o
possa incomodar. E isso significa faltar à verdade. Que o diga a ideia grega
sobre o que é a verdade.
Para os gregos, «verdade»
dizia-se com palavras como «ousía» («a verdade do ser»), «orthót(ê)s» («retidão,
coerência»), mas também «alêtheia». Vale a pena determo-nos nesta última
palavra, que nos servirá de guia para esta reflexão.
«Alêtheia» – «verdade» -
compunha-se de «lêtheia» precedido de um prefixo de negação, «a». Ora, «lêtheia»
tem origem em «lêthos» que quer dizer «esquecimento», «ocultação». Ser
verdadeiro era, a esta luz, «não se esquecer», «não ocultar», poderíamos dizer
«revelar». É curioso, aliás, que um dos rios que os gregos diziam existir no
Hades (Inferno), segundo a cosmologia helénica, tivesse o nome de «Letes».
Diziam os gregos que os mortos que bebessem das suas águas esqueciam toda a sua
vida passada, pois o Hades era o lugar do esquecimento… O que fazia do Inferno,
numa interpretação ampla, o lugar da mentira, da anulação, da perda da
identidade. Hoje, alguns teólogos recuperam algo desta abordagem, ao falar do
Inferno como uma possibilidade real de total anulação da identidade e da
pessoa.
Servem estas reflexões de prisma
de análise da sociedade em que nos movemos. Sociedade em que a verdade parece
distante das decisões e das ações de quem nela se situa. Desde os Panama Papers aos sucessivos
esquecimentos de quem fez falir banco após banco, passando pelo doping no
desporto até à mentira na prestação de provas em exames de acesso à
universidade, ou, ainda, à manipulação de dados sobre as emissões de gases
poluentes pelos veículos automóveis, a falta de verdade parece grassar como uma
amnésia coletiva.
O rio Letes parece ter desaguado
bem perto de nós e os vivos decidiram brindar com as suas fascinantes águas.
E repare-se como pensar a verdade
como o «não esquecimento» ajuda a compreender de um outro modo a importância de
não esconder as nossas origens ou a nossa memória. Recuperar a memória é um
outro modo de respeitar a verdade, característica que este tempo, designado por
Lipovetsky como hipermoderno, parece querer arredar e afastar com eficácia.
Vivemos num tempo sem memória. Nem memória de passado, nem memória de futuro.
Uma alimenta-se, aliás, da outra. Não há sentido do amanhã se não se sabe de
onde se provém e que identidade se possui.
Discutir o problema da verdade
pode, ainda, encontrar na cultura clássica, uma outra genuína dualidade que é aqui
muito oportuna. A dualidade referida por Parménides, um filósofo do século V
a.C., para quem havia que distinguir entre o ser, do âmbito da verdade, e o
parecer, do âmbito da ilusão e do não-ser. Não deixa, à luz desta síntese muito
sumária, de ser relevante verificar como vivemos num tempo que se satisfaz com
a ilusão, estando, permanentemente, na fronteira do não-ser, da mentira.
Vivemos, muitas vezes, à medida que, a conta-gotas, nos fazem sair as notícias
sobre novos «esquecimentos», a sensação de estar num lugar de espelhos em que
não sabemos o que é verdade e o que é ilusão.
Contudo, mesmo que nos queiram
fazer crer que o «crime compensa», as lições recentes da história mostram-nos
que até essa convicção é ilusão. A verdade pode demorar a emergir, mas é bom
lembrar que a eficácia da água do Letes é efémera e temporária, porque vã. Na
verdade, o Hades já foi vencido e Aquele que tem a chave dessa vitória chama-se
«Verdade».
Mesmo numa comezinha leitura de
curta distância, é fácil verificar que o fim dos que cederam à sedução de beber
das águas do rio do Hades não foi honroso nem de saudável memória. Convirá,
talvez, esquecê-lo… ou será melhor lembrá-lo para sempre?