As
palavras são escassas quando a obra é imensa. E a vida do Professor Daniel
Serrão é uma imensa obra jamais acabada, porque defender a dignidade da vida
humana é conquista nunca garantida, de que ele sempre teve consciência.
Atestam-no a sua entrega e dedicação sem limites. Todos os que, pelo país fora,
se sentem lutadores pela causa da defesa da dignidade da vida humana reconhecem-se,
nesta hora de perda deste sábio ímpar, como anões aos ombros de um gigante.
Daniel Serrão é um dos gigantes da nossa história e a memória saberá honrar
essa sua condição. A Daniel Serrão devemos a união dos esforços em horas em que
o País pareceu sucumbir perante dinamismos que pretendiam ofuscar a consciência
de que a dignidade humana não se perde, quaisquer que sejam as circunstâncias.
Uma união que se fez de sabedoria, sensatez, clarividência e honestidade
intelectual. Nunca vacilou, nunca desistiu, nunca parou.
Qualidades
que lhe valeram o reconhecimento nacional e internacional de que são exemplo a
pertença à Academia Pontifícia para a Vida, a convite do Papa S. João Paulo II,
ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida em representação da
Academia das Ciências, ao Comité Internacional de Bioética da UNESCO, ao Comité
Diretor de Bioética do Conselho da Europa, entre tantos outros cargos.
Mas
o professor Daniel Serrão é muito mais do que um currículo ímpar, invulgar,
singular. Surpreendia a sua total disponibilidade, mesmo quando se sabia que
muitas eram as solicitações. Um dia, em Aveiro, no CUFC, por ocasião da
apresentação do seu livro «Aqui diante de mim», resultado de entrevistas dadas
a Henrique Manuel, quando lhe perguntaram como conseguia corresponder a tantos
desafios, confidenciou que nunca adiava nada. Tudo era feito no tempo devido.
Aceitava
todos os convites para partilhar o seu enorme saber, a sua inteligente leitura
dos desafios. E quem o convidava tinha uma certeza: o professor Daniel Serrão falava
com a segurança de quem tem autoridade! Nenhuma afirmação era infundada. A
lógica perpassava o seu discurso com a humanidade de alguém que se sabia um
defensor da vida, particularmente quando mais fragilizada.
A
sua ligação a Aveiro e disponibilidade para visitar a cidade e o seu distrito
eram notórias e começam bem cedo na sua vida. Em 1944, completou, em Aveiro, o
curso geral dos liceus. Talvez tal ajude a compreender que tenha tido sempre
uma palavra de prontidão perante os muitos convites com que as instituições a
que tive a honra de pertencer lhe foram formulando.
A
minha relação com o professor Daniel Serrão começa em 1998. Eu estava ainda a
completar o curso, na Universidade Católica, no Porto, e fazia parte do grupo
de base da Acção Católica Rural que o convidou para, em 13 de maio de 1998,
falar, em Pessegueiro do Vouga, sobre «vida, um valor a amar». Aqui começava um
caminho e uma relação de amizade que se estendeu pelo tempo. Mais ainda. Esta
sua pronta resposta gerou em mim o reconhecimento de uma dívida que um dia lhe
confidenciei. A ele e ao Professor Walter Osswald devo terem-me mostrado que
podíamos beneficiar do saber destes homens singulares, pois eles estavam
disponíveis para aceitar os nossos convites. A prontidão da aceitação do
professor Daniel Serrão desarmou-me.
Nesse
mesmo ano, em 6 de junho de 1998, voltou a Sever do Vouga para participar em debate
sobre o aborto e o referendo. Tive a honra de o ir buscar a Águeda e virmos os
dois em conversa honesta e transparente de que guardo confidências que me
ajudaram a compreender a realidade nacional. Compreendia os dinamismos da
sociedade portuguesa como poucos...
No
ano seguinte, em 12 de março de 1999, regressou a Pessegueiro do Vouga, a
convite em nome da Acção Católica Rural para falar sobre ‘sexualidade e
educação’ , no contexto das Jornadas da família.
Alguns
anos mais tarde, em 17 abril 2006, convidei-o para um debate, em Estarreja,
sobre «aborto, crime ou direito?», realizado na Biblioteca Municipal daquela
cidade.
Dois
dias depois (a sua disponibilidade era, de facto, desarmante!), participava num
debate sobre «Embriões excedentários humanos: que estatuto? Que futuro?»,
realizado no auditório de Pessegueiro do Vouga, para um público de alunos da
escola secundária de Sever do Vouga, onde eu era e fui professor até 2009.
Surpreendera, nesse dia, a sua capacidade de adequar o discurso ao destinatário
juvenil. Um mestre, não só na erudição, mas também na pedagogia!
Em
3 de fevereiro de 2010, participou numa das primeiras tertúlias à quarta,
subordinada ao tema «Existe o direito de morrer?», realizada no CUFC, em
Aveiro, por iniciativa do Iscra, a cuja direção eu pertencia nessa altura.
Moderei este debate em que recordei palavras do próprio professor Daniel
Serrão, tão significativas, nesta hora em que evocamos a sua marca:
«Com
a morte de cada homem termina um universo cultural específico, mais ou menos
rico mas sempre
original
e irrepetível. O que o homem deixa quando morre - os seus escritos, os objectos
culturais que criou, a memória da sua palavra, dos seus gestos ou do seu
sorriso naqueles que com ele viveram, os filhos que gerou - tudo exprime uma
realidade que está para além do corpo físico, de um certo corpo físico que esse
homem usou para viver o seu limitado tempo pessoal de ser homem.»
In
"Viver, envelhecer e morrer com dignidade"
A
mesma organização (Iscra) promoveu, em colaboração com a Editora Esfera do
Caos, a apresentação do livro «aqui, diante de mim», no CUFC, em 29 de março de
2012, obra apresentada por D. António Marcelino, Bispo Emérito de Aveiro,
estando também presente o jornalista Henrique Manuel, autor das entrevistas que
deram origem ao livro. O próprio Henrique Manuel partilhava, ali, a sua
surpresa perante a prontidão com que o professor Daniel Serrão, então já com 84
anos, respondia a todas as perguntas que o jornalista lhe enviava.
Em
17 de maio de 2012, participou no ciclo de cinema vida, dedicado à eutanásia,
tendo analisado o filme «one million dollar baby».
Já
em 2013 aceita, sem qualquer reserva, o convite para escrever um conto para o
livro que a ADAV-Aveiro estava a organizar para as comemorações dos seus 15
anos, que se celebrariam em julho de 2015. Como sempre, o professor Daniel
Serrão não adiava. Convidei-o para escrever o conto em 24 de maio de 2013.
Estava em viagem e logo me respondeu de um aeroporto, dizendo que aceitava. No
dia 15 de junho de 2013, enviou-me o conto « A singularidade de um Sem-Abrigo».
As comemorações ocorreram em 4 de julho de 2015. Já o professor Daniel Serrão
sofrera o grave atropelamento que o deixou enfermo desde outubro de 2014. Mas a
ADAV reservou uma homenagem e reconhecimento de que o livro «a vida conta…
branco no preto» é um dos mais significativos sinais.
O
modo como termina o conto ilustram a causa que abraçou em toda a sua vida. Ao
professor Daniel Serrão entrego, a fechar esta breve homenagem sempre
insuficiente e dolorosamente sentida, as últimas palavras. Porque a quem é
maior se deve dar a última palavra, não sem antes lhe dizer «Obrigado,
Professor Daniel Serrão e até à eternidade»:
«Foi
a minha vez de ficar silencioso a reflectir sobre o que acabava de ouvir.
De
facto a dignidade humana não se perde com ser pobre nem com ser auto-excluído
da sociedade onde os outros habitam e se sentem bem, mesmo que de modo
hipócrita.
A
dignidade do ser humano radica na sua natureza intrínseca e estruturante: um
ser vivo da espécie humana que ama e pensa. Bem ou mal, não importa.
E
porque acredito na Transcendência, acrescento à dignidade natural a dignidade
espiritual que é recebida por todo o ser humano como criatura de Deus
transcendente. Ou do Altíssimo, como sempre se diz na Tradição hebraica.
Olhei
o José Maria, um singular Sem-Abrigo, uma última vez, sem lhe falar. E vi nele
um homem digno sob os andrajos, a sujidade e a duvidosa higiene. […]»
(Do
conto: A singularidade de um Sem-Abrigo in A
vida conta… branco no preto. Aveiro: Editora Tempo Novo, 2015)