sábado, janeiro 21, 2017

A ética das decisões reversíveis

(A pretexto da proximidade dos 10 anos do referendo sobre aborto – 11 de fevereiro de 2007 -, recupero um texto que escrevi em 2011, nunca publicado neste blogue)

A fronteira entre a democracia e a tirania pode ser estreita e quase invisível. Aliás, a força da democracia está em reconhecer os seus limites, em reconhecer que não tem legitimidade para decidir sobre tudo. Quando tal não acontece, reúnem-se condições para que a democracia se tiranize. Na verdade, ao existirem, nos Estados, Constituições que definem pressupostos que consideram intocáveis, como seja, no caso da Constituição da República Portuguesa, a dignidade da pessoa humana, está a reconhecer-se a existência de verdades pressupostas que não são susceptíveis de democratização, isto é, de alteração por decisão da maioria. A sua modificação constituiria uma mudança de tal ordem que os regimes se sentiriam postos em causa. Por isso é que, com frequência, se recorre ao apelo à verificação da constitucionalidade de uma determinada lei.
Ora, quando os Estados aligeiram esta preocupação e tendem a democratizar o que deveria escapar a tal condição, podem reunir-se condições para que o povo se tiranize a si próprio, na medida em que já não há pressupostos aceites comummente.
Em nosso entender, o que vem acontecendo nos Estados ocidentais que se decidiram a liberalizar a prática abortiva, fruto de um tendência que tem início em 1973, com um caso de tribunal, ocorrido nos Estados Unidos, e que hoje é sabido ter sido forjado, configura um quadro que pode conduzir as democracias à sua própria falência. Por que motivo haverá de ser legítimo eliminar outro humano por circunstâncias mutáveis, pelo simples facto de que a sua ainda tenríssima idade o torna totalmente dependente da vontade de um só? Abdicar, por parte dos Estados, da tutela do bem que é a vida de alguém, entregando-o à decisão individual, derivando essa abdicação, não do reconhecimento efectivo de que lhe escapa (o que não é verdade), mas da decisão da maioria, significa atribuir à democracia mais poderes do ela própria tem. Na verdade, como refere o ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça Italiano, Gustavo Zagrebelsky, no seu livro «A crucificação e a democracia», editado pela Tenacitas, há dois tipos de democracias: as críticas e as não-críticas. A distinção entre umas e outras reside no facto de se reconhecerem capazes ou não de decidir sobre matérias que são irreversíveis, como a vida ou morte dos seus cidadãos. As democracias críticas sabem-se incompetentes para decidir sobre a morte de alguém e, por isso, não acolhem como legítimos actos dos quais redundem consequências irreversíveis. No sentido contrário, as democracias não-críticas acolhem, com naturalidade, decisões com consequências irreversíveis. Assim é com a pena de morte, a eutanásia, o aborto, etc. Em todas estas matérias, as decisões são irreversíveis. Nas democracias críticas, elas não têm lugar, tendo-o nas democracias não-críticas, que, com facilidade, progridem para tiranias totalitárias que esmagam as minorias, em nome da maioria.
O desafio está lançado. Arrepiar caminho, para que a democracia continue a sê-lo nas matérias em que é competente.


Luís Silva

domingo, janeiro 08, 2017

Daniel Serrão: Uma vida pela vida - Uma homenagem sempre insuficiente e um testemunho sentido

As palavras são escassas quando a obra é imensa. E a vida do Professor Daniel Serrão é uma imensa obra jamais acabada, porque defender a dignidade da vida humana é conquista nunca garantida, de que ele sempre teve consciência. Atestam-no a sua entrega e dedicação sem limites. Todos os que, pelo país fora, se sentem lutadores pela causa da defesa da dignidade da vida humana reconhecem-se, nesta hora de perda deste sábio ímpar, como anões aos ombros de um gigante. Daniel Serrão é um dos gigantes da nossa história e a memória saberá honrar essa sua condição. A Daniel Serrão devemos a união dos esforços em horas em que o País pareceu sucumbir perante dinamismos que pretendiam ofuscar a consciência de que a dignidade humana não se perde, quaisquer que sejam as circunstâncias. Uma união que se fez de sabedoria, sensatez, clarividência e honestidade intelectual. Nunca vacilou, nunca desistiu, nunca parou.
Qualidades que lhe valeram o reconhecimento nacional e internacional de que são exemplo a pertença à Academia Pontifícia para a Vida, a convite do Papa S. João Paulo II, ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida em representação da Academia das Ciências, ao Comité Internacional de Bioética da UNESCO, ao Comité Diretor de Bioética do Conselho da Europa, entre tantos outros cargos.
Mas o professor Daniel Serrão é muito mais do que um currículo ímpar, invulgar, singular. Surpreendia a sua total disponibilidade, mesmo quando se sabia que muitas eram as solicitações. Um dia, em Aveiro, no CUFC, por ocasião da apresentação do seu livro «Aqui diante de mim», resultado de entrevistas dadas a Henrique Manuel, quando lhe perguntaram como conseguia corresponder a tantos desafios, confidenciou que nunca adiava nada. Tudo era feito no tempo devido.
Aceitava todos os convites para partilhar o seu enorme saber, a sua inteligente leitura dos desafios. E quem o convidava tinha uma certeza: o professor Daniel Serrão falava com a segurança de quem tem autoridade! Nenhuma afirmação era infundada. A lógica perpassava o seu discurso com a humanidade de alguém que se sabia um defensor da vida, particularmente quando mais fragilizada.
A sua ligação a Aveiro e disponibilidade para visitar a cidade e o seu distrito eram notórias e começam bem cedo na sua vida. Em 1944, completou, em Aveiro, o curso geral dos liceus. Talvez tal ajude a compreender que tenha tido sempre uma palavra de prontidão perante os muitos convites com que as instituições a que tive a honra de pertencer lhe foram formulando.
A minha relação com o professor Daniel Serrão começa em 1998. Eu estava ainda a completar o curso, na Universidade Católica, no Porto, e fazia parte do grupo de base da Acção Católica Rural que o convidou para, em 13 de maio de 1998, falar, em Pessegueiro do Vouga, sobre «vida, um valor a amar». Aqui começava um caminho e uma relação de amizade que se estendeu pelo tempo. Mais ainda. Esta sua pronta resposta gerou em mim o reconhecimento de uma dívida que um dia lhe confidenciei. A ele e ao Professor Walter Osswald devo terem-me mostrado que podíamos beneficiar do saber destes homens singulares, pois eles estavam disponíveis para aceitar os nossos convites. A prontidão da aceitação do professor Daniel Serrão desarmou-me.
Nesse mesmo ano, em 6 de junho de 1998, voltou a Sever do Vouga para participar em debate sobre o aborto e o referendo. Tive a honra de o ir buscar a Águeda e virmos os dois em conversa honesta e transparente de que guardo confidências que me ajudaram a compreender a realidade nacional. Compreendia os dinamismos da sociedade portuguesa como poucos...
No ano seguinte, em 12 de março de 1999, regressou a Pessegueiro do Vouga, a convite em nome da Acção Católica Rural para falar sobre ‘sexualidade e educação’ , no contexto das Jornadas da família.
Alguns anos mais tarde, em 17 abril 2006, convidei-o para um debate, em Estarreja, sobre «aborto, crime ou direito?», realizado na Biblioteca Municipal daquela cidade.
Dois dias depois (a sua disponibilidade era, de facto, desarmante!), participava num debate sobre «Embriões excedentários humanos: que estatuto? Que futuro?», realizado no auditório de Pessegueiro do Vouga, para um público de alunos da escola secundária de Sever do Vouga, onde eu era e fui professor até 2009. Surpreendera, nesse dia, a sua capacidade de adequar o discurso ao destinatário juvenil. Um mestre, não só na erudição, mas também na pedagogia!
Em 3 de fevereiro de 2010, participou numa das primeiras tertúlias à quarta, subordinada ao tema «Existe o direito de morrer?», realizada no CUFC, em Aveiro, por iniciativa do Iscra, a cuja direção eu pertencia nessa altura. Moderei este debate em que recordei palavras do próprio professor Daniel Serrão, tão significativas, nesta hora em que evocamos a sua marca:
«Com a morte de cada homem termina um universo cultural específico, mais ou menos rico mas sempre
original e irrepetível. O que o homem deixa quando morre - os seus escritos, os objectos culturais que criou, a memória da sua palavra, dos seus gestos ou do seu sorriso naqueles que com ele viveram, os filhos que gerou - tudo exprime uma realidade que está para além do corpo físico, de um certo corpo físico que esse homem usou para viver o seu limitado tempo pessoal de ser homem.»
In "Viver, envelhecer e morrer com dignidade"
A mesma organização (Iscra) promoveu, em colaboração com a Editora Esfera do Caos, a apresentação do livro «aqui, diante de mim», no CUFC, em 29 de março de 2012, obra apresentada por D. António Marcelino, Bispo Emérito de Aveiro, estando também presente o jornalista Henrique Manuel, autor das entrevistas que deram origem ao livro. O próprio Henrique Manuel partilhava, ali, a sua surpresa perante a prontidão com que o professor Daniel Serrão, então já com 84 anos, respondia a todas as perguntas que o jornalista lhe enviava.
Em 17 de maio de 2012, participou no ciclo de cinema vida, dedicado à eutanásia, tendo analisado o filme «one million dollar baby».
Já em 2013 aceita, sem qualquer reserva, o convite para escrever um conto para o livro que a ADAV-Aveiro estava a organizar para as comemorações dos seus 15 anos, que se celebrariam em julho de 2015. Como sempre, o professor Daniel Serrão não adiava. Convidei-o para escrever o conto em 24 de maio de 2013. Estava em viagem e logo me respondeu de um aeroporto, dizendo que aceitava. No dia 15 de junho de 2013, enviou-me o conto « A singularidade de um Sem-Abrigo». As comemorações ocorreram em 4 de julho de 2015. Já o professor Daniel Serrão sofrera o grave atropelamento que o deixou enfermo desde outubro de 2014. Mas a ADAV reservou uma homenagem e reconhecimento de que o livro «a vida conta… branco no preto» é um dos mais significativos sinais.
O modo como termina o conto ilustram a causa que abraçou em toda a sua vida. Ao professor Daniel Serrão entrego, a fechar esta breve homenagem sempre insuficiente e dolorosamente sentida, as últimas palavras. Porque a quem é maior se deve dar a última palavra, não sem antes lhe dizer «Obrigado, Professor Daniel Serrão e até à eternidade»:
«Foi a minha vez de ficar silencioso a reflectir sobre o que acabava de ouvir.
De facto a dignidade humana não se perde com ser pobre nem com ser auto-excluído da sociedade onde os outros habitam e se sentem bem, mesmo que de modo hipócrita.
A dignidade do ser humano radica na sua natureza intrínseca e estruturante: um ser vivo da espécie humana que ama e pensa. Bem ou mal, não importa.
E porque acredito na Transcendência, acrescento à dignidade natural a dignidade espiritual que é recebida por todo o ser humano como criatura de Deus transcendente. Ou do Altíssimo, como sempre se diz na Tradição hebraica.
Olhei o José Maria, um singular Sem-Abrigo, uma última vez, sem lhe falar. E vi nele um homem digno sob os andrajos, a sujidade e a duvidosa higiene. […]»
(Do conto: A singularidade de um Sem-Abrigo in A vida conta… branco no preto. Aveiro: Editora Tempo Novo, 2015)

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