(A pretexto da proximidade dos 10 anos do referendo sobre
aborto – 11 de fevereiro de 2007 -, recupero um texto que escrevi em 2011, nunca publicado neste blogue)
A fronteira entre a democracia e
a tirania pode ser estreita e quase invisível. Aliás, a força da democracia
está em reconhecer os seus limites, em reconhecer que não tem legitimidade para
decidir sobre tudo. Quando tal não acontece, reúnem-se condições para que a
democracia se tiranize. Na verdade, ao existirem, nos Estados, Constituições
que definem pressupostos que consideram intocáveis, como seja, no caso da
Constituição da República Portuguesa, a dignidade da pessoa humana, está a
reconhecer-se a existência de verdades pressupostas que não são susceptíveis de
democratização, isto é, de alteração por decisão da maioria. A sua modificação
constituiria uma mudança de tal ordem que os regimes se sentiriam postos em
causa. Por isso é que, com frequência, se recorre ao apelo à verificação da
constitucionalidade de uma determinada lei.
Ora, quando os Estados aligeiram
esta preocupação e tendem a democratizar o que deveria escapar a tal condição,
podem reunir-se condições para que o povo se tiranize a si próprio, na medida
em que já não há pressupostos aceites comummente.
Em nosso entender, o que vem
acontecendo nos Estados ocidentais que se decidiram a liberalizar a prática
abortiva, fruto de um tendência que tem início em 1973, com um caso de
tribunal, ocorrido nos Estados Unidos, e que hoje é sabido ter sido forjado, configura
um quadro que pode conduzir as democracias à sua própria falência. Por que
motivo haverá de ser legítimo eliminar outro humano por circunstâncias
mutáveis, pelo simples facto de que a sua ainda tenríssima idade o torna
totalmente dependente da vontade de um só? Abdicar, por parte dos Estados, da
tutela do bem que é a vida de alguém, entregando-o à decisão individual,
derivando essa abdicação, não do reconhecimento efectivo de que lhe escapa (o
que não é verdade), mas da decisão da maioria, significa atribuir à democracia
mais poderes do ela própria tem. Na verdade, como refere o ex-presidente do
Supremo Tribunal de Justiça Italiano, Gustavo Zagrebelsky, no seu livro «A
crucificação e a democracia», editado pela Tenacitas, há dois tipos de
democracias: as críticas e as não-críticas. A distinção entre umas e outras
reside no facto de se reconhecerem capazes ou não de decidir sobre matérias que
são irreversíveis, como a vida ou morte dos seus cidadãos. As democracias
críticas sabem-se incompetentes para decidir sobre a morte de alguém e, por
isso, não acolhem como legítimos actos dos quais redundem consequências
irreversíveis. No sentido contrário, as democracias não-críticas acolhem, com
naturalidade, decisões com consequências irreversíveis. Assim é com a pena de
morte, a eutanásia, o aborto, etc. Em todas estas matérias, as decisões são
irreversíveis. Nas democracias críticas, elas não têm lugar, tendo-o nas
democracias não-críticas, que, com facilidade, progridem para tiranias
totalitárias que esmagam as minorias, em nome da maioria.
O desafio está lançado. Arrepiar
caminho, para que a democracia continue a sê-lo nas matérias em que é
competente.
Luís Silva