quarta-feira, abril 26, 2017

A propósito de vacinas e outras modas - é urgente blindar a vida humana...


O diretor geral da saúde, Dr. Francisco George, pronunciava-se, há dias, a pretexto do surto de sarampo que veio revelar a «moda bizarra ao estilo hippie» de não vacinar os filhos, que “não é aceitável que o dever que o pai e mãe têm de proteger a criança não seja observado”. Li e concordei, pois devia ser claro para todos – digo eu – que um filho não é um direito dos pais, mas constitui-se como um dever para eles, na medida em que é um outro ser, que não é pertença dos pais e que carece de proteção e cuidado.
Tenho de confessar, porém, que, ao ler estas declarações, emergiu em mim uma espécie de sentimento de estranheza que rapidamente dei conta de não se dever ao seu conteúdo, mas ao seu autor. Na verdade, com um rápido esforço de memória, recordei que, quando, em 2007, se referendou o aborto (que teimosamente se insiste em chamar interrupção, como se fosse possível retomá-la algum tempo depois!), o mesmo Francisco George colocou na gaveta a ideia de que «não é aceitável que o dever que o pai e a mãe têm de proteger a criança não seja observado». Pelo contrário, seguindo a moda «hippie» de então e que se implantou com força, nos países ocidentais, depois do falso caso “Roe versus Wade” (em 1973), esqueceu a proteção do filho e só olhou para a autonomia da mãe (nem sequer a do pai é atendida!).
Uma tal constatação deve alertar-nos. Muitos são os «Franciscos Georges» cujas opiniões são fortes quando a hora convém, mas que amolecem quando a maré muda, deixando a proteção da vida humana à mercê destas oscilações.
Esta verificação deveria ser suficiente para que se blindasse o que não tem graus nem degraus: a vida não tem graus de existência – ou é ou não é. E quando não é, já nada há a fazer. Por isso, é necessário protegê-la enquanto é, sejam quais forem as circunstâncias adversas. Uma preocupação tão candente, neste momento em que se problematiza a possibilidade de legalizar a eutanásia!
Estamos, ao discutir estas matérias, na raiz de um problema que a emergência dos movimentos populistas deverá levar a colocar com acuidade: que pressupostos deve a democracia considerar intocáveis? Ou não há matérias insuscetíveis de dependerem da vontade das maiorias e, por isso, das modas de turno?
Sou, seguindo o pensamento de Gustavo Zagrebelsky, antigo juiz e presidente do tribunal constitucional italiano e autor do livro «A crucificação e a democracia», editado pela Tenacitas, defensor de que as democracias críticas, as que perduram no tempo e são autenticamente respeitadoras do que é a verdadeira democracia, são aquelas que sabem que há matérias que elas não devem fazer depender das maiorias. São as matérias de natureza irreversível: aquelas de que não há retorno possível. Entram nestas matérias as que dizem respeito à vida e à morte. O Estado, a democracia, enquanto a afirmação da soberania do povo, deve saber-se devedora do respeito pela vida de cada um. De outro modo, a democracia poderá, no limite, decidir a sua própria extinção e, pela via democrática, escolher a ditadura, o que será uma contradição.

Vozes como a do diretor geral da saúde, para quem a proteção dos filhos depende do sucesso do plano nacional de vacinação e não de um genuíno reconhecimento do dever de proteção do mais frágil, demonstram a necessidade de que não se fique dependente das oscilações opinativas para proteger o que não tem oscilação. Cada vida é inviolável. Sempre! Seja porque a vida de alguém se constitui como um dever de dela cuidar até ao nascimento, seja porque se constitui como uma frágil vida carregada pelo peso do tempo, mas em que ainda reluz a centelha de um humano envelhecido. A vida não tem graus. É una e, por isso, sempre merecedora de cuidado. E se, por uma moda ‘hippie’, se perdeu essa consciência, o Estado e a sociedade têm o dever de a fazer despertar. Quem sabe se, a pretexto da bizarra moda de não vacinar, nos aperceberemos de quão bizarro é impedir de nascer quem pede proteção ao único que lha pode conceder? Quanto maior o poder, maior o dever!

terça-feira, abril 04, 2017

A maldição de Cassandra - Vivemos tempos de impossível amoralidade

Nenhum ato genuinamente humano está destituído de moralidade. Toda a ação de um ser humano consciente é suscetível de leitura moral. A leitura moral é aquela que incide sobre a bondade e a maldade das ações.
Desde sempre, porém, como bem demonstra a narrativa bíblica do paraíso, quisemos fazer de conta que não sabíamos que os atos são sempre ou bons ou maus. Preferimos pensá-los como belos ou feios ou, então, como lícitos ou ilícitos, bastando-nos, para isso, mudar as leis. Mas, de facto, não é assim. Há atos que realizam a humanidade que há em nós e há atos que a destroem ou não a respeitam. Não basta, para isso, que os atos tenham sido legitimados pelo nosso desejo ou pela nossa autonomia. Bem certo que a autonomia é a condição para que os atos bons ou maus nos sejam imputados e sejamos por eles responsabilizados. Mas a autonomia não é condição suficiente para a sua moralidade. E este parece-me ser o drama do nosso tempo. Absolutizámos a condição necessária que é a autonomia, tornando-a uma condição suficiente.
Torno mais claro o meu discurso.
Não basta que tenhamos querido fazer algo ou que determinado comportamento tenha sido consentido ou até pretendido para que se torne um comportamento bom. A sua bondade é-lhe inerente e resulta do seu grau de respeito pela dignidade que é anterior ao meu ou ao reconhecimento dos outros.
Vem isto a propósito da vertigem libertária que vem tomando, como um tsunami, a legislação portuguesa que legaliza tudo, desde que seja consentido ou pretendido. Assim aconteceu com o aborto e está prestes a acontecer com a prostituição, com a eutanásia, com as drogas e, se continuarmos esta vertigem, chegaremos ao que já se discute na Suécia, entre as juventudes partidárias, que pretendem legalizar o incesto, desde que realizado entre dois adultos. Na Alemanha, em 2001, ficou claro que um ato livre e autónomo só é legítimo se respeitar a dignidade da vida humana, quando os tribunais tiveram de decidir o que fazer com o canibal de Rotemburgo, num caso em que um adulto divulgou que pretendia ser morto e devorado por alguém, e tal veio a ocorrer. O canibal de Rotemburgo, apesar de tudo ter sido feito com documentos assinados e concretizado entre adultos, foi mesmo condenado por homicídio e por profanação de cadáver. Mas há muitos para quem tal seria legítimo, pois foi realizado entre adultos. Como é possível?
Assistimos, com efeito, a uma surdez e cegueira perante o que devia ser claro e evidente: o que atenta contra a dignidade da vida humana não pode ser aceite e tolerado e deve ser reconhecido como imoral. Não há que ter medo de reconhecer a imoralidade. De outro modo, continuaremos a condenar Cassandra à sua maldição. E qual é a maldição de Cassandra?
A história de Cassandra ilustra a dificuldade em dar ouvidos ao discurso moral. Resistimos a ele. Queremos que ele não tenha razão. Preferimos pensar que as coisas são belas (da ordem do estético) ou lícitas (da ordem do jurídico). Dizer que são boas ou más incomoda-nos. Isso não é de hoje. O mito de Cassandra, que tem mais de 2800 anos, ilustra-o, de forma cabal. Podemos encontrá-lo, quer na Ilíada, quer na Odisseia, epopeias de Homero.
E o que nos conta o mito de Cassandra?
Socorro-me da narrativa de Luc Ferry, no seu livro «A sabedoria dos mitos», da editora Temas e Debates (pp. 174-175)
« [Cassandra] vive marcada por uma aflição nefasta que lhe vem de Apolo. O deus da Música apaixonou-se por ela e, para ganhar os seus favores, confere-lhe um maravilhoso dom: prever o futuro. Cassandra aceita, mas, no último momento, recusa ceder aos avanços do deus… que lho leva bastante a mal. Para se vingar, lança-lhe um terrível encanto: ela poderá sempre prever corretamente o futuro – o prometido é devido – mas nunca ninguém acreditará nela! É assim que Cassandra roga ao pai que não deixe entrar o cavalo de Troia na cidade. Em vão, pois ninguém a escuta.»
Como sabemos, o cavalo de Troia, que os troianos tomaram como um troféu pela sua vitória perante a retirada (simulada) dos gregos, afinal, escondia, no seu interior, o inimigo que veio a entrar, assim, no interior da cidade, acabando por vencê-la. Cassandra bem avisara, mas a sua voz não se ouviu.
Contrariamente ao preconceito que se foi avolumando, em especial nestes últimos dois séculos, a moral personalista, que reconhece a intocável dignidade da vida humana, o seu caráter sagrado e anterior a todo o reconhecimento, é o que de mais vanguardista poderemos encontrar, no momento de decidir. Ela não é a voz de um velho de Restelo, como, tantas vezes, afirmamos ou supomos. Ela é, como Cassandra, a voz antecipada do futuro que nos diz que, por este caminho, fácil e evidente diante dos olhos, chegaremos a terreno de escolhos e perigos desnecessários. Há que continuar, por isso, a refletir e a pensar para procurar um caminho melhor. Ela é o desafio de utilizar a inteligência em vez de ceder à imediatez.
Na verdade, a moral personalista assegura, na linha do que Kant consagrou, na sua «Fundamentação da Metafísica dos Costumes», que as pessoas têm sempre de ser tratadas como fins e nunca como meios, pois, como afirmava "no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade." (Fundamentação da Metafísica dos costumes, edições 70, p. 77)
E essa é a condição de cada ser humano. Não tem um preço porque não pode ser reduzido a meio.
Mas Cassandra continua a gritar sem que se lhe deem ouvidos.

…e o cavalo de Troia vai atravessando as muralhas, a pretexto de ser um troféu.

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

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