O diretor geral da saúde, Dr. Francisco George,
pronunciava-se, há dias, a pretexto do surto de sarampo que veio revelar a
«moda bizarra ao estilo hippie» de não vacinar os filhos, que “não é aceitável
que o dever que o pai e mãe têm de proteger a criança não seja observado”. Li e
concordei, pois devia ser claro para todos – digo eu – que um filho não é um
direito dos pais, mas constitui-se como um dever para eles, na medida em que é
um outro ser, que não é pertença dos pais e que carece de proteção e cuidado.
Tenho de confessar, porém, que, ao ler estas
declarações, emergiu em mim uma espécie de sentimento de estranheza que
rapidamente dei conta de não se dever ao seu conteúdo, mas ao seu autor. Na
verdade, com um rápido esforço de memória, recordei que, quando, em 2007, se
referendou o aborto (que teimosamente se insiste em chamar interrupção, como se
fosse possível retomá-la algum tempo depois!), o mesmo Francisco George colocou
na gaveta a ideia de que «não é aceitável que o dever que o pai e a mãe têm de
proteger a criança não seja observado». Pelo contrário, seguindo a moda
«hippie» de então e que se implantou com força, nos países ocidentais, depois
do falso caso “Roe versus Wade” (em 1973), esqueceu a proteção do filho e só
olhou para a autonomia da mãe (nem sequer a do pai é atendida!).
Uma tal constatação deve alertar-nos. Muitos são os
«Franciscos Georges» cujas opiniões são fortes quando a hora convém, mas que
amolecem quando a maré muda, deixando a proteção da vida humana à mercê destas
oscilações.
Esta verificação deveria ser suficiente para que se
blindasse o que não tem graus nem degraus: a vida não tem graus de existência –
ou é ou não é. E quando não é, já nada há a fazer. Por isso, é necessário
protegê-la enquanto é, sejam quais forem as circunstâncias adversas. Uma
preocupação tão candente, neste momento em que se problematiza a possibilidade
de legalizar a eutanásia!
Estamos, ao discutir estas matérias, na raiz de um
problema que a emergência dos movimentos populistas deverá levar a colocar com
acuidade: que pressupostos deve a democracia considerar intocáveis? Ou não há
matérias insuscetíveis de dependerem da vontade das maiorias e, por isso, das
modas de turno?
Sou, seguindo o pensamento de Gustavo Zagrebelsky,
antigo juiz e presidente do tribunal constitucional italiano e autor do livro «A
crucificação e a democracia», editado pela Tenacitas, defensor de que as
democracias críticas, as que perduram no tempo e são autenticamente
respeitadoras do que é a verdadeira democracia, são aquelas que sabem que há matérias
que elas não devem fazer depender das maiorias. São as matérias de natureza
irreversível: aquelas de que não há retorno possível. Entram nestas matérias as
que dizem respeito à vida e à morte. O Estado, a democracia, enquanto a
afirmação da soberania do povo, deve saber-se devedora do respeito pela vida de
cada um. De outro modo, a democracia poderá, no limite, decidir a sua própria
extinção e, pela via democrática, escolher a ditadura, o que será uma
contradição.
Vozes como a do diretor geral da saúde, para quem a
proteção dos filhos depende do sucesso do plano nacional de vacinação e não de
um genuíno reconhecimento do dever de proteção do mais frágil, demonstram a
necessidade de que não se fique dependente das oscilações opinativas para
proteger o que não tem oscilação. Cada vida é inviolável. Sempre! Seja porque a
vida de alguém se constitui como um dever de dela cuidar até ao nascimento,
seja porque se constitui como uma frágil vida carregada pelo peso do tempo, mas
em que ainda reluz a centelha de um humano envelhecido. A vida não tem graus. É
una e, por isso, sempre merecedora de cuidado. E se, por uma moda ‘hippie’, se
perdeu essa consciência, o Estado e a sociedade têm o dever de a fazer
despertar. Quem sabe se, a pretexto da bizarra moda de não vacinar, nos
aperceberemos de quão bizarro é impedir de nascer quem pede proteção ao único
que lha pode conceder? Quanto maior o poder, maior o dever!